domingo, 30 de março de 2014

xeque-mate

«Elias é aquilo: um homem a ouvir-se de memória e quantas vezes com estranheza.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 108

água rançosa

Alcateia de raposas

Le Feu Follet, Louis Malle (1963).


LÍQUENES

I

Algures,
no lugar
mais frio
da memória,
mas 
nítido
como um centímetro
quadrado de neve
que pede
a própria luz
à algidez interior,
surge
a paisagem
de líquenes,


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296
«Flauta
de vértebras»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 302

ESPAÇO

I

«A noite 
impôs ao céu
uma servidão
de inúmeras
estrelas»,
e a via láctea
aprende
como nasce
um cometa
dilacerante,
«que o meu corpo
se despedace
nas pontas
das estrelas»,


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 301

ilhas caligráficas

(...)

«desistes 
de me 
reconhecer
e segues 
nesse passo
que mal pisa
o silêncio,»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296

“Tive sempre o sentimento de não estar conforme com a ordem estabelecida – Quer seja politicamente definida pela monarquia, pelas repúblicas ou pela ditadura, quer sirva economicamente de pasto ao “homo faber” e aos seus satélites, quer esteja teologicamente desmitizada pelas raposas da inteligência. Por isso precisei de nadar contra uma corrente cada vez mais forte (…) em plena “terra de ninguém” (…) muitas vezes com a pergunta de Molière, sete vezes repetida: “Que diabo estou eu a fazer nesta galera?” De ano para ano tenho suportado, também, o sofrimento que Hölderlin atribui a Hyperionte: o sentimento de ser estrangeiro na própria pátria.”

Ernst Jünger

LES AMANTS, 1958 (LOUIS MALLE)


deslembradas

PUZZLE

I

O sono
cresce como
se 
uma anestesia
ténuescura
se
propagasse 
do cérebro
pela rede nervosa
friamente
até aos dedos
e o tacto
dos homens
esquecesse


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 287

VI

ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inutilmente
dentro
da garganta
vazia

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 272
alguém atirou um cão
morto às profundidades

Malcolm Lowry

II

Imaginar 
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória 
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota 
nas flores antecipadas.

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 236

sexta-feira, 28 de março de 2014


barba de espinhos

Adeus anilha de ouro

«Curvou-se e levou as pontas dos dedos ao tornozelo marcado: Adeus anilha de ouro, deus voto de alcova, que regresso ao meu natural.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105

«Ela desde que é pessoa sabe que este país é de espertos e todo em moral que até chateia. Precisava mas era de ser pasteurizado com merda de ponta a ponta, que era como a Mena dizia.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102/3




quinta-feira, 27 de março de 2014



"Il y avait une ombre,
dont il était impossible de faire le portrait;
quand il n'y avait plus de lumière,
l'ombre tombait par terre."


Eckhart 

«Uma data de frustados que até na cama têm medo da CENSURA, »


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102

sabujo


nome masculino
1. cão de montaria
2. figurado indivíduo servil, bajulador; capacho; lambe-botas

(Do latim medieval segusĭu- [cane-], «[cão] de Segúsia», cidade da Pérsia antiga, hoje Susa»)


leitosamente 
um pouco larga
cheirando sempre 
ao ar da cama


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 33

mulher ventríloqua

dá-me a linguagem

dá-me a linguagem
do centro das pedras
aquela secura
a clivagem certa

dá-me os rebordos
cortantes das pedras
seu voo ofensivo
o fácil arremesso

dá-me a centelha
da pele das pedras
aquela dureza
com que são objectos



Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 31

para que saibas e fujas se quiseres

Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29

em curvas de regresso ininterruptas

Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29

ou era o sono aos poucos

ou era o sono aos poucos descobrindo
densas camadas de um vão delírio aceso?
ou era o frio nos lençóis de linho
e a tua carne em sombra? o linho mesmo?

seria o rasto trémulo, o caminho
inviolado? os animais espessos
de frio em cada pedra? um gesso mais salino
pelos caules do linho reconduzindo os dedos?

mas como o gesso em pó se vai abrindo
(a tua orelha é um búzio escurecendo)
como um novelo tem apenas fios
e fio a fio o vai roendo o tempo

no esfrangalhar da luz te fragmento:
a tua orelha salinamente atlântica
como sal encrespado um búzio escurecendo
demorado nas pedras (as falanges)

o tempo recobrado é recolhido dentro
de endurecidas paredes cranianas
forrado de meninges é centro do seu centro
e só de prolongar-se te estilhaça

pois estes sons dirigem-se ao teu próprio tempo
à duração que os membros entrelaça
ao ondular do próprio desconcerto
com que, no amor, por vezes desatinam

poupadamente os campos do silêncio
no território de um ao outro tímpano
vai ser preciso distender o tempo
vai ser preciso tirar tudo a limpo

de um movimento a outro movimento.
nem a pressão crescente destes cinco
dedos da mão consente que se guardem
quantos cabelos o tempo ramifica


Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 27/8

subsal, sobressalto, subnutrição, subvidas, submarço, subcutâneo

cosa mentale

''Only through time time is conquered''

T.S. Eliot

''obscuro rigor do coração''


quarta-feira, 26 de março de 2014

Scotch Dimple

  «Agora a cachorra aluada erra pela encosta das campas rasas com toda a matilha atrás. O coveiro olha de cá de cima, apoiado na enxada. Não se vêem senão caudas como vírgulas a acenar por entre campas e crucifixos de pedra, e há uma poalha de borboletas a tremeluzir ao sol.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99

''infantes de bibe''

''pénis decrépito fardado de almirante.''


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99

etecetera

mula-de-enterro

   «Está nisto quando uma cadela ao cimo da ruazinha, seguida por um arraial de ladrantes. Uma rafeira minúscula, no cio evidentemente, e vem a trote desgraçado, sem destino. Atrás dela a canzoada escorraça-se, fervem dentadas, e mais para trás ainda vê-se um perdigueiro coxo à babugem. E a cadelita, troquetroque, segue sem vontade, transportando a natureza. Descansa um pouco, senta-se. O cortejo dos cães faz alto à volta dela, é um ofegar de línguas penduradas, à espera. Alguns aguardam nas passagens entre os jazigos, outros tocam-na com os focinhos pelo traseiro para a fazerem levantar e tentarem a sua sorte; à falta de melhor os perseguidores mais desiludidos montam no parceiro mais à mão e procuram governar-se por ali. O perdigueiro, esse observa à distância a coçar a barriga com a pata coxa, cheio de convicção.»



José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 98

caim-caim

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