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quinta-feira, 20 de maio de 2010

sobre a poesia franco alexandrina (crítica literária)

« (...) as palavras com que nos faz partilhar o seu enfrentamento de mundo, a densidade emocional com que nos lembra a exaltante mágoa do encontro dos corpos, a encantação de que nos faz testemunhas e participantes, fazem da sua obra poética um dos exemplares trágicos do esquecimento a que a nossa recente poesia se encontra votada.»


Joaquim Manuel Magalhães. António Franco Alexandre. Os Dois Crepúsculos. Sobre Poesia Portuguesa Actual e Outras Crónicas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981., p.251

quarta-feira, 19 de maio de 2010

« (...) em 1932 Michaux escreve a seu editor dizendo que não compreendia mais francês. Quase 20 anos depois, em 1950, o poeta escreve novamente: "Le français m'est devenu à moitié étranger, culotté, outrecuidant presque. Je ne suis plus à sa hauteur." (ROGER, 1998: 76)
Como sublinha Jérôme Roger, é contra o dogma da clareza da língua francesa, de sua sintaxe incorruptível, de sua lógica perfeita que Michaux pretende fazer dela um outro uso, instaurando um novo modo de estar na língua. O autor experimenta então uma sintaxe esgarçada, dilatada, e chega a criar um léxico próprio, tornando-se uma espécie de estrangeiro em sua própria língua. Pois não é exatamente isso que propõe Gilles Deleuze e Claire Parnet numa passagem muito comentada do livro Dialogues? "Nous devons être bilingues même en une seule langue, nous devons avoir une langue mineure à l'intérieur de notre langue, nous devons faire de notre propre langue un usage mineur." (Deleuze, 1977: 11)

Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., pp. 100

terça-feira, 18 de maio de 2010

« (...)antologia de poesia portuguesa organizada por Herberto Helder, a saber: Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa. A presença das "vozes comunicantes" reveladas nesse livro atesta que um poeta nunca está sozinho, por mais que a sua obra pareça destacar-se do cenário em que se insere, ou seja, por mais que ela nos dê a impressão de ser totalmente inovadora quando comparada à tradição. Entretanto, esse "solipsismo extremado" – para evocar um termo de Harold Bloom – que alguns poetas parecem apresentar, e até mesmo desejar, é ilusório, uma vez que todo poeta está sempre submetido a uma relação dialéctica com outros poetas, seja ela de afirmação ou negação, de repetição ou adulteração.»

Izabela Guimarães Guerra Leal. Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., p. 16

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A propósito de um início de leitura (viagem), pelo livro Cálamo de Walt Whitman, encontra-se às tantas, uma opinião crítica (algumas, que se diziam na altura) que me deixou estupefacta, a olhar e a reler a 'bosta', com alguma incredulidade:

«O autor devia ser corrido a pontapés de qualquer sociedade decente, por pertencer a um nível inferior ao das bestas. Não há inteligência nem método nesta tagarelice desarticulada e cremos que deve tratar-se de um pobre louco fugido do manicómio em pleno delírio» (Intelligencer, Boston, 1855)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O mar é uma das referências mais constantes do universo lírico de Luís Miguel Nava. O mar e todos os elementos que naturalmente lhe estão associados: ondas, rebentação, falésias, etc.

À volta do campo semântico gerado pelo mar, gravitam dois temas essenciais: a infância e o amor. Logo no poema inaugural de Películas se pode ler “… isto explode e entra/nesta página o mar da minha infância, meigo/no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender um texto na memória”.Numa poesia tão ostensivamente corporal, o mar também entra no corpo e mistura-se com ele. O mar ora é objecto motor que arrasta consigo, deflagrando, os lugares e as presenças mais impressivas da infância, ora é objecto movido. Em qualquer dos casos, é o mar uma força inexpugnável: “…às vezes extravio-me, ao enfiar pela memória/as ondas saem-me ao caminho”, ou “..o mar de que deflagram/as ondas por acção da memória”. A estreita relação existente entre o mar e as recordações parece ser bem clara, pois “..disponho alguns retratos junto ao mar, o mar/rebenta-lhes em cima e atravessa-os, fica dentro/deles”. É ainda a energia do mar que traz consigo a figura da mãe, e também, embora com muito menos força, a figura do pai, duas das presenças mais relacionadas com a infância.

Como representação da pele, o mar conduz-nos ao domínio dos afectos.


António Manuel Ferreira. Luís Miguel Nava: até à raiz da alma. Universidade de Aveiro. Diagonais das letras portuguesas contemporâneas, p. 129

terça-feira, 11 de maio de 2010

Luís Miguel Nava: até à raiz da alma

Nava abriu um caminho: um percurso estranho e contudo reconhecível, que conduz ao interior menos visitado do homem, alargando, ao mesmo tempo, as formas de comunicação com o quotidiano, ao aprofundar intensamente os vínculos que nos unem ao nosso próprio corpo. Habituados a um lirismo muitas vezes feito de metáforas domesticadas pelo uso reiterado, invade-nos uma sensação de desconforto ao entrarmos pela primeira vez no universo de uma poesia, que faz do corpo o centro de irradiação de todos os sentidos e de todas as demandas. É a partir do corpo que se organiza, de forma meticulosa e obsidiante, o mundo habitável e habitado desta poesia. Não se trata, no entanto, de um corpo solar e epidérmico, símbolo gasto de devaneios eróticos, reconhecidos por uma tradição de séculos. Trata-se de um corpo radiculado, cavernoso, húmido e exposto, desde o labirinto dos nervos, até às janelas que a memória abre sobre a pele. (pp.125)


António Manuel Ferreira. Luís Miguel Nava: até à raiz da alma. Universidade de Aveiro. Diagonais das letras portuguesas contemporâneas

domingo, 2 de maio de 2010

excerto do texto: 'Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira)'

« (...)na poesia de Luís Miguel Nava o movimento consiste, exactamente, em aproximar de tal modo o corpo do olhar, que doravante só é possível uma visão parcelar que reduz o todo a imagens fragmentadas. Assim tratado como objecto, o corpo evocado pela escrita despoja-se da sua espiritualidade. O olhar é aqui desfigurador porque irremediavelmente próximo (ou à distância, mas como se estivesse próximo por meio de uma poderosa lente de ampliação). Talvez esta distância tão próxima seja também tão íntima que não se pode ser observador sem se tomar simultaneamente observado. A desfiguração atinge, assim, o sujeito poético e a ferida aberta propaga-se ao espírito, ou talvez aconteça exactamente o contrário: é a desfiguração do espírito que contagia o corpo e se estende à pele.

Em Vulcão podemos ler:

O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…

De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:

A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.


Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» - eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.

Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos. [2]

Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:

Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior

e ainda:

graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..

Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele

Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:

A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.

No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. [3]

Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente». [4]

A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano. [5] Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.

Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:

Na penumbra do teu corpo é que tudo começa…

Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:

Como os teus ombros ontem estavam longe,
como os teus seios hoje ficam perto!
O desejo é uma lente que te acerca,
a ternura é um filtro que te esconde…


Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:

…Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.

Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:

Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!

O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:

A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.

Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.

Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler

Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..

É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.

Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:

Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…

Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele - o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade - como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:

…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,

Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:

O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.

E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:

O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,

Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:

ir imitando o céu assim como podia.

No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.

Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.

Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:

pois no teu corpo existe o mundo todo.


Rosa Alice Branco. Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira) - texto publicado na Agulha,revista de cultura # 38 - fortaleza, são paulo - abril de 2004 .
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