«O rio baixava os olhos de vergonha: não sabia ler o alfabeto das aves. As es-
trelas nos fitavam com afinco, como se não houvesse outros olhos além dos meus.
Os vaga-lumes não acenderam o guizo. Os bois enviesaram as narinas. O nevoeiro
aquecia o mundo. O bosque dos seios, sem saída. A cintura quebrada, a porta, comigo
dentro. Não controlamos a fúria, baixando o escudo dos dentes. A espuma cobiça os
teus cabelos, as tranças continuam crescendo. A água é mais veloz no corpo da mulher.
Os insectos de grave som corriam no varal dos ouvidos. Os pés sorrateiros, incansáveis,
cavavam o tambor. Arrisquei tudo o que eu não era. O limo folheava os contornos da
nuca. Do quadril ao pescoço, avançavas o fio elástico da foice. As unhas afundavam
a pele ao rumor do osso. Eu cheirava ervas, musgo, urina do mato. Não havia
consciência a sangrar naquele momento. Pálido, pão dormido. O relógio ficou cego
às 23:30.»
Inimigo Rumor. Fabrício Carpinejar. Livros Cotovia., p. 71