domingo, 3 de novembro de 2013

«Para ti, a separação significa que eu esteja sempre disponível, diz Paul, mas nunca durma contigo. O cigarro incandesceu e devorou-se a si mesmo na sua boca.
  Não fales, disse Adina, tenho a cabeça a estourar.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 221

''croassãzinhos salgados''

«O caminho conhece-se a si próprio, não tem distância. Os passos desfocam-se e são sempre iguais.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 194

O JOGO DAS VESPAS

  «No rosto da criança dos olhos muito afastados e das têmporas estreitas é patente logo de manhã a marca da solidão. A criança senta-se no banco no meio de outras crianças e senta-se sozinha. Os globos oculares estão vermelhos, os círculos castanhos lá dentro desbotados.
    Duas vezes por aula, Adina sente-se tentada a chamar a criança ao quadro. Vê-lhe nos olhos, que atravessam a janela, que os seus pensamentos não param deste lado do vidro. São olhos de quem tem muito que cismar. Então Adina chama ao quadro uma criança que se senta à frente da criança ausente. E depois uma criança que se senta ao lado da criança ausente. Nas têmporas estreitas da criança, os olhos partiram para tão longe que não dão por nada.»




Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 191

«Quando a alegria rebenta, fica sozinho consigo mesmo. Torna-se então um estranho.»

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 189
«Quando ela começou a envelhecer, começou o marido a manter-se jovem, disse Clara, remoçando cada vez mais a seu lado. Como se a tivesse espiado, poupado a própria pele à custa dela. Como se a minha mãe, também por ele, se tivesse deixado murchar. Não me quero tornar numa pessoa assim, disse Clara, não se deve ser assim. Depois tudo nele se precipitou. O que com ela era o seu forte, passou a ser o seu fraco. Chegou um verão à cidade, que era para ele como o primeiro. Não conseguiu aguentar-se sem ela nesse primeiro verão e seguiu-a para a sepultura.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 188/9

«Passam sobretudos em lugar de pessoas, é novembro que caminha dentro de sobretudos. Na segunda semana, ele é tão melancólico e velho que já com a manhã chega o entardecer.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 188
«O que a boca molhada grita é uma brasa sobre a língua. A sua cólera é ódio, e tão negro como o seu casaco.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 188
«Está ali na cidade um inverno em que a água nem sequer se resfria em gelo, em que os velhos carregam as vidas passadas como sobretudos. Um inverno em que os novos têm de odiar-se como à infelicidade, quando a suspeita de felicidade lhes sobrevém entre as têmporas.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 183

'' eu ouvia o espancamento, escrevi tudo.''

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 182

terça-feira, 29 de outubro de 2013

padre-nosso

Agradas-me

«Agradas-me, diz ele, e cospe para cima da pedra uma casca de girassol, és boa na cama. Há ali perto um banco e em cima do banco está uma garrafa vazia, és de certeza boa a foder, diz ele, e sobre o próximo banco empinam-se de ferro os pregos despidos onde antes havia uma tábua para sentar. Ela diz: desaparece e senta-se no terceiro banco vazio. Ela chega-se para o meio, ele cospe a casca de girassol para cima do banco, ela encosta-se para trás. Ele senta-se. Não lhe faltam para aí bancos, diz ela e chega-se para a ponta, ele encosta-se para trás e olha-a no rosto. Ela já não está encostada, desapareça ou eu grito, diz ela. Ele levanta-se, não faz mal, diz ele, não faz mal. Ri-se para dentro, abre as calças, segura o seu membro na mão. Então despeço-me, diz ele, e mija para o rio. Ela levanta-se, a língua sobe-lhe até aos olhos, de nojo, ao primeiro passo não vê as lajes de pedra. Sente a cabeça encher-se de água fria pelas duas orelhas. Ele sacode as pingas do membro. Eu pago-te, grita ele atrás dela, eu dou-te cem lei, eu mijo-te na boca.»
 
 
 
Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 178/9

''os olhos habituam-se à noite''

«Mas os ramos estalam e as gralhas voam para os ninhos e grasnam, pressentem o nevoeiro que lentamente se derrama sobre as árvores.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 171/2
«Despe o casaco e os colãs. Deita-se na cama. Os dedos dos pés estão frios, a camisa de noite, a cama
estão frias. Os olhos estão frios. Ouve o coração bater na almofada.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 168
«Despe o casaco e os colãs. Deita-se na cama. Os dedos dos pés estão frios, a camisa de noite, a cama
estão frias. Os olhos estão frios. Ouve o coração bater na almofada.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 168
 

«E este é um relógio pendurado na parede, e esta é uma chave pousada na mesa, e lá fora um dia quase a nascer, eu não estou louca, agora são oito horas, e todos os dias são oito horas, e eu nunca me embebedei, quero embebedar-me agora, e não só quando forem dez horas.»
 
 

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 164/5
«Aqui é preciso esquecer todos os dias, diz Ilie, de mim só sei uma coisa, que penso sempre em ti.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 158/9
«O sono também segue viagem, o suor de inverno tem um cheiro amargo, (...)»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 151/2

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Gérard de Nerval

«Era um homem que distendia as suas depressões (acabaria no suicídio) ...»

(...)

«(...) e possuir uma personalidade estranha, tocada de períodos de loucura, que precisamente dava a tudo quanto escrevia um para além que andava arredado das letras de então.»

quarta-feira, 23 de outubro de 2013


''carnação da boca''

''o escuro é o primeiro lugar do medo.''

nómadas

fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.
 
de A criança em Ruínas


José Luís Peixoto. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 324

5


encostávamos o dorso às paredes da casa
para sentir algo mais forte que nós
contra os medos que a pique nos devoram o
canto do olhar

éramos indefesos rebentos
enxertos que viviam da polpa dos sonhos
e ninguém podia entender-nos
 
de contra o esquecimento das mãos


João Ricardo Lopes. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 315

37.

psicanálise do Movimento: quem é louco e em que parte do Corpo.
qual o órgão louco?
o espaço louco?

de Livro da Dança




Gonçalo M. Tavares. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 301

14.

A história da dança não é, não pode ser, o Percurso dos Movimentos
traçado no chão.
É, tem de ser, o Percurso dos Movimentos Traçados no ar.
Acreditar que os Pássaros são restos de COREOGRAFIAS. Imagens
do corpo que ficam atrás, suspensas.
(As nuvens ainda, tudo o que é alto, o céu.)
Os pássaros são restos de COREOGRAFIAS.

de Livro da Dança


 Gonçalo M. Tavares. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 299

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Max Ernst dans son atelier, Paris.


«Reflectido nos teus olhos, o céu
era um lugar inabitável.»



Rui Pires Cabral. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 238

''Tu já estavas prometido à tristeza''

Sing me to sleep

à Marjan, onde quer que esteja

o tojo abundava nas vertentes,
havia as rochas, os montes amarelos,
o rumor fundo dos bichos na arcadura
das chãs.

entre o meu silêncio e o teu
cresceu um verso com a tua boca
perto dos meus sentidos.

sabíamos que a chuva regressaria
eventualmente, as tuas cartas
ainda as tenho.

de Geografia das Estações



Rui Pires Cabral. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 236

segunda-feira, 21 de outubro de 2013


Dia dos namorados

Vingo com versos os dias em que a tristeza me não deixou fazer nada
e há sempre tanto por fazer escrever um livro ouvir falarem desta poesia
que me é sempre mais estranha do que qualquer outra se dela falo a
                                                                                                              
                                                                                                                [própria vida
porque aqui não se pode amar senão deixar-se amar
vingo com versos o vento que se vai afastando o verão e segue o tempo
e o homem que nunca fui senão a pensar que só vive nestas páginas
traz na mão um ceptro de palavras futuras
porque aqui não se pode amar senão deixar-se amar
mas vingo primeiro as vozes azuis junto à praia onde sonhei poder
                                                                                                                
                                                                                                                    [ter-te
e sei que jamais saberei a verdade que seria desconhecer o teu rosto
primeiro moreno depois de todas as cores onde te vi e te quis
porque aqui não se pode amar senão deixar-se amar
e vingo esperar pelo meu amor à porta deste coração que nunca viste
mesmo quando o mar me abraçava e me devorava de beijos e tinhas
                                                                                                         ciúmes
que hoje todas to retribuirão pelo menos um beijo àqueles que amam
sem que deixem de sentir ciúme desse ciúme mais antigo
porque aqui não se pode amar senão deixar-se amar
vingo quem hoje do belo não tenha um corpo
e abra este livro e me ajude a cravar os versos no teu rosto
julgando esta vida mais estranha do que qualquer outra
porque aqui não se pode amar senão deixar-se amar.

de A Arma do Rosto


Paulo José Miranda. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 227

Amor, vi morrer a flor.

Paulo José Miranda. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 225

Eduquei a sensibilidade para sofrer mais tarde

Paulo José Miranda. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 221

«Adina quer ser o caçador, pensa Clara.
  Tens mais medo do que eu, diz Adina. Não olhes para lá, não olhes mais para a raposa.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 142

« Tens medo, diz Adina, pareces a morte. E Clara assusta-se, o olhar é retilíneo e cortante. Clara vê um rosto que se foi embora. Está distorcido, as faces sozinhas, os lábios sozinhos, a um tempo inanimados e ávidos. Um rosto de perto e de frente igualmente vazio, como uma fotografia sem nada lá dentro.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 141
«Desejava a raposa há tanto tempo que a alegria de a receber no dia seguinte era já meia razão para ter medo.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 140

passarinhar


 1. andar à caça de pássaros
2. popular andar de um lado para o outro sem fazer nada

«o que sabemos nós não perguntamos.»

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 123
«Na janela da frente está uma mulher a regar as petúnias. Já não é nova e ainda não é velha, dizia Paul há uns anos atrás. Já então ela tinha o cabelo ruivo-acastanhado de ondas grandes, então, quando Paul ainda vivia em casa de Adina. E o vidro da janela já então tinha aquela rachadura oblíqua. Passaram-se cinco anos, que não tocaram o rosto daquela mulher. O cabelo não ficou mais liso, mais desmaiado. E as petúnias brancas são todos anos outras e, contudo, as mesmas.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 120
Powered By Blogger