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domingo, 3 de novembro de 2013

«Clara adormece umas ruas mais à frente com a mesma imagem perfurada. O toque do telefone trespassa-lhe o sono. Os cravos inchados de vermelho erguem-se no escuro, a água brilha dentro da jarra. Estou em Viena, diz Pavel, em breve irá alguém a tua casa e dar-te-á o meu endereço e um passaporte, tens de vir imediatamente, senão já cá não estarei.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 232/3
«Eras capaz de abrir os dois cadáveres, perguntou Adina, Paul abriu e fechou a tesoura das unhas, seria pior do que ter de olhar as entranhas da minha mãe e do meu pai, disse ele. O meu pai batia-me muitas vezes, eu tinha medo dele. Às refeições, quando eu via a sua mãe segurar o pão, o meu medo passava. Nesse momento ele era como eu, nesse momento éramos iguais. Mas quando me batia, eu não conseguia imaginar que era também com aquela mão que ele levava o pão à boca.
   Paul respirou fundo do cansaço de tantos dias. No lugar onde outros têm o coração, eles têm um cemitério, disse Adina, só têm mortos entre as suas têmporas, pequenos e sanguinolentos como framboesas enregeladas. Paul esfregou as lágrimas dos olhos, causam-me repugnância e eu sinto-me compelido a chorá-los. De onde vem esta comiseração, pergunta ele.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 232
«Para ti, a separação significa que eu esteja sempre disponível, diz Paul, mas nunca durma contigo. O cigarro incandesceu e devorou-se a si mesmo na sua boca.
  Não fales, disse Adina, tenho a cabeça a estourar.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 221
«O caminho conhece-se a si próprio, não tem distância. Os passos desfocam-se e são sempre iguais.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 194

O JOGO DAS VESPAS

  «No rosto da criança dos olhos muito afastados e das têmporas estreitas é patente logo de manhã a marca da solidão. A criança senta-se no banco no meio de outras crianças e senta-se sozinha. Os globos oculares estão vermelhos, os círculos castanhos lá dentro desbotados.
    Duas vezes por aula, Adina sente-se tentada a chamar a criança ao quadro. Vê-lhe nos olhos, que atravessam a janela, que os seus pensamentos não param deste lado do vidro. São olhos de quem tem muito que cismar. Então Adina chama ao quadro uma criança que se senta à frente da criança ausente. E depois uma criança que se senta ao lado da criança ausente. Nas têmporas estreitas da criança, os olhos partiram para tão longe que não dão por nada.»




Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 191

«Quando a alegria rebenta, fica sozinho consigo mesmo. Torna-se então um estranho.»

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 189
«Quando ela começou a envelhecer, começou o marido a manter-se jovem, disse Clara, remoçando cada vez mais a seu lado. Como se a tivesse espiado, poupado a própria pele à custa dela. Como se a minha mãe, também por ele, se tivesse deixado murchar. Não me quero tornar numa pessoa assim, disse Clara, não se deve ser assim. Depois tudo nele se precipitou. O que com ela era o seu forte, passou a ser o seu fraco. Chegou um verão à cidade, que era para ele como o primeiro. Não conseguiu aguentar-se sem ela nesse primeiro verão e seguiu-a para a sepultura.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 188/9
«Passam sobretudos em lugar de pessoas, é novembro que caminha dentro de sobretudos. Na segunda semana, ele é tão melancólico e velho que já com a manhã chega o entardecer.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 188
«O que a boca molhada grita é uma brasa sobre a língua. A sua cólera é ódio, e tão negro como o seu casaco.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 188
«Está ali na cidade um inverno em que a água nem sequer se resfria em gelo, em que os velhos carregam as vidas passadas como sobretudos. Um inverno em que os novos têm de odiar-se como à infelicidade, quando a suspeita de felicidade lhes sobrevém entre as têmporas.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 183

'' eu ouvia o espancamento, escrevi tudo.''

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 182

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Agradas-me

«Agradas-me, diz ele, e cospe para cima da pedra uma casca de girassol, és boa na cama. Há ali perto um banco e em cima do banco está uma garrafa vazia, és de certeza boa a foder, diz ele, e sobre o próximo banco empinam-se de ferro os pregos despidos onde antes havia uma tábua para sentar. Ela diz: desaparece e senta-se no terceiro banco vazio. Ela chega-se para o meio, ele cospe a casca de girassol para cima do banco, ela encosta-se para trás. Ele senta-se. Não lhe faltam para aí bancos, diz ela e chega-se para a ponta, ele encosta-se para trás e olha-a no rosto. Ela já não está encostada, desapareça ou eu grito, diz ela. Ele levanta-se, não faz mal, diz ele, não faz mal. Ri-se para dentro, abre as calças, segura o seu membro na mão. Então despeço-me, diz ele, e mija para o rio. Ela levanta-se, a língua sobe-lhe até aos olhos, de nojo, ao primeiro passo não vê as lajes de pedra. Sente a cabeça encher-se de água fria pelas duas orelhas. Ele sacode as pingas do membro. Eu pago-te, grita ele atrás dela, eu dou-te cem lei, eu mijo-te na boca.»
 
 
 
Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 178/9
«Mas os ramos estalam e as gralhas voam para os ninhos e grasnam, pressentem o nevoeiro que lentamente se derrama sobre as árvores.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 171/2
«Despe o casaco e os colãs. Deita-se na cama. Os dedos dos pés estão frios, a camisa de noite, a cama
estão frias. Os olhos estão frios. Ouve o coração bater na almofada.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 168
«Despe o casaco e os colãs. Deita-se na cama. Os dedos dos pés estão frios, a camisa de noite, a cama
estão frias. Os olhos estão frios. Ouve o coração bater na almofada.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 168
«E este é um relógio pendurado na parede, e esta é uma chave pousada na mesa, e lá fora um dia quase a nascer, eu não estou louca, agora são oito horas, e todos os dias são oito horas, e eu nunca me embebedei, quero embebedar-me agora, e não só quando forem dez horas.»
 
 

Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 164/5
«Aqui é preciso esquecer todos os dias, diz Ilie, de mim só sei uma coisa, que penso sempre em ti.»



Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 158/9
«O sono também segue viagem, o suor de inverno tem um cheiro amargo, (...)»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 151/2

segunda-feira, 21 de outubro de 2013


«Adina quer ser o caçador, pensa Clara.
  Tens mais medo do que eu, diz Adina. Não olhes para lá, não olhes mais para a raposa.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 142
« Tens medo, diz Adina, pareces a morte. E Clara assusta-se, o olhar é retilíneo e cortante. Clara vê um rosto que se foi embora. Está distorcido, as faces sozinhas, os lábios sozinhos, a um tempo inanimados e ávidos. Um rosto de perto e de frente igualmente vazio, como uma fotografia sem nada lá dentro.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p. 141
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