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segunda-feira, 27 de junho de 2011

«(...) as palavras morreram-lhe nos lábios, as lágrimas e os soluços atacaram-no, precipitou-se para fora da sala como um louco.»

Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 116
   «Via-se que o pintor, primeiro, dera guarida na sua alma a tudo o que bebera do mundo exterior e que só depois, tirando-o da nascente da alma, o transformara num canto harmonioso e solene.»



Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 115
      «Um belo dia encontrou em cima da sua mesa uma carta da Academia das Belas-Artes em que lhe era pedido que, na sua qualidade de membro emérito, desse a sua opinião sobre uma obra nova, enviada de Itália, pintada por um russo que aperfeiçoara a sua arte nesse país. Este pintor era um dos seus antigos colegas, um artista que guardara desde os seus verdes anos a paixão pela arte, que mergulhara nela com toda a sua alma ardente de trabalhador, que se afastara dos amigos e da família, que abandonara os queridos hábitos e correra para as terras onde, sob os céus divinos, amadurecem os majestosos viveiros das artes - para aquela Roma divina de que basta apenas dizer o nome para que pulse forte e plenamente o coração do artista. Lá, como um eremita, embrenhou-se no trabalho e nos estudos, sem se deixar distrair com nada. Tanto se lhe dava que os outros cochichassem sobre o seu carácter, sobre a sua incapacidade de lidar com o próximo, sobre a violação das regras da boa educação mundana, sobre a humilhação que a sua roupa pobre e deselegante causava ao título de artista. Não lhe importava que os seus irmãos artistas estivessem ou não zangados com ele. Desprezava tudo, entregava-se todo à arte. Visitava incansavelmente as galerias, ficava horas absorto diante as obras dos grandes mestres, na busca, na perseguição do pincel milagroso. »



Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 113
  «(...) Vê se tens paciência. Reflecte bem sobre cada trabalho que fazes, deixa-te de elegâncias e deixa o dinheiro para os outros. O êxito não te foge.»



Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 81

terça-feira, 21 de junho de 2011

(como eu compreendo o pobre Piskariov...)


   «Oh, era demais!, já se tornava impossível de suportar. Piskariov precipitou-se para fora, de cabeça e sentidos vazios. Turvou-se-lhe a mente: sem atentar no caminho, sem tino, sem ver, sem ouvir, vagueou todo o dia. Ninguém sabe se dormiu ou não dormiu em qualquer sítio; só no dia seguinte o instinto cego o levou ao seu apartamento, pálido, com um aspecto medonho, o cabelo desgranhado, sinais de loucura no rosto. Fechou-se no quarto, sem deixar entrar ninguém, sem pedir nada. Quatro dias se passaram e o quarto fechado nenhuma vez se abriu; ao cabo de uma semana, o quarto continuava fechado. Chamaram por ele à porta, mas não houve resposta; por fim, arrombaram-na e encontraram o seu cadáver com a garganta cortada. A lâmina ensaguentada estava no chão. Pelos braços convulsamente abertos e pela cara terrivelmente desfigurada podia concluir-se que a sua mão fora certeira e que sofreu ainda muito antes de a sua alma pecadora lhe abandonar o corp
    Assim pareceu, vítima de louca paixão, o pobre Piskariov, quedo, tímido, modesto, ingénuo como um menino, que transportava em si a chispa do talento que talvez, com o correr do tempo, viesse a atear um fogo grande e brilhante. Ninguém chorou a sua morte; ninguém estava ao lado do seu corpo inanimado para além da figura vulgar do chefe de esquadra do bairro e do indiferente médico municipal. Levaram o caixão despercebidamente, sem ao menos as cerimónias religiosas, para o cemitério de Okhta; atrás do féretro apenas um guarda-soldado chorava, e mesmo esse porque bebera uma garrafa de vodca a mais.»


Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 50/1

segunda-feira, 20 de junho de 2011

   

   «Os sonhos acabaram por se tornar a vida dele e, desde então, a sua existência tomou um rumo estranho; pode dizer-se que dormia acordado e estava de vigília no sono. Se alguém o visse sentado em silêncio diante da mesa vazia, ou a andar pela rua, decerto o tomaria por um sonâmbulo, ou por um indivíduo destruído pelas bebidas fortes; o seu olhar estava privado de sentido, a sua distracção natural ampliou-se e, autoritariamente, expulsava da cara todos os sentimentos e movimentos. Apenas se animava com a chegada da noite.»


Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 45

A senhora

«A senhora passou o olhar em volta de todo o círculo de pessoas que ansiavam por atrair a sua atenção, mas logo o desviou, cansada e desatenta, e cruzou os olhos com os de Piskariov. Oh, que céu!, que paraíso!, dá-me forças, Criador, para o suportar!, pois isto não caberá na vida, destruirá, arrebatará a minha alma! Ela fez-lhe sinal, mas não com o gesto de mão ou um aceno de cabeça, não: o sinal relanceou pelos seus olhos demolidores, tão fino e imperceptível que ninguém o pôde ver, tirando Piskariov, que o viu e compreendeu.»




Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 41
«Aquela miscelânea incrível de rostos deixou-o completamente aturdido; parecia-lhe que um demónio qualquer esmigalhara todo o mundo reduzindo-o a mil fragmentos variados e que, depois, misturara sem critério e sem ordem todos esses fragmentos.»




Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 38
«Ficou-lhe retida no peito a respiração, tudo nele se converteu num tremor indefinido, todos os seus sentidos ardiam em fogo, tudo diante dele se vestiu de um nevoeiro.»



Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 32

domingo, 9 de janeiro de 2011

No Camino de Dios ficou o Chihuila

   «Corremos tudo o que podíamos. No Camino de Dios ficou o Chihuila, acaçapado atrás de um medronheiro, com a manta enrolada no pescoço, como se estivesse a defender-se do frio. Ficou a olhar-nos quando corríamos cada um para seu lado para dividirmos a morte. E ele parecia rir-se de nós, com os seus dentes descarnados, coloridos de sangue.
      Aquele desconcerto que nos aconteceu foi bom para muitos; mas a outros correu-lhes mal. Era raro que não víssemos pendurado pelos pés algum dos nossos em qualquer pau de algum caminho. Ali permaneciam até que se faziam velhos e se retorciam como couros para curtir. Os urubus comiam-nos por dentro, tirando-lhe as tripas, até deixar só a casca. E como os penduravam alto, ali estavam eles bamboleando-se ao sopro do ar durante muitos dias, às vezes meses, às vezes já só as tiras penduradas das calças meneando-se ao vento, como se alguém as tivesse posto a secar ali. E uma pessoa sentia que as coisas agora eram a sério, ao ver aquilo.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 220
«Sentíamos  aqueles seus olhos bem abertos, que não dormiam e que estavam acostumados a ver de noite e a conhecer-nos na escuridão.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 218
«Mas nós também lhes tínhamos medo. Era digno de se ver como se nos engasgavam os tomates na garganta só com ouvir o barulho das suas guarnições ou as ferraduras dos seus cavalos a golpearem as pedras de algum caminho, onde os esperávamos para lhes armar alguma emboscada. Ao vê-los passar, quase sentíamos que nos olhavam de esguelha como dizendo: «Já os farejamos, apenas nos estamos a fazer dissimulados.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 214
«Muito antes de chegarmos a San Buenaventura demo-nos conta de que os ranchos estavam a arder. Das tulhas da fazenda alçava-se mais alta a labareda, como se se estivesse a queimar um charco de aguarrás. As faíscas voavam e enroscavam-se na escuridão do céu, formando grandes nuvens alumiadas.
   Continuámos caminhando em frente, encandeados pela luminária de San Buenaventura, como se alguma coisa nos dissesse que o nosso trabalho era estar ali, para acabar com o que restasse.
   Mas ainda não tínhamos conseguido chegar quando encontrámos os primeiros a cavalo, que vinham a trote, com a soga amarrada na cabeça da sela e puxando uns homens com os pés atados que, de vez em quando, até caminhavam sobre as mão, e outros homens aos quais já tinham caído as mãos e que traziam a cabeça dependurada.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 212
«Tencionávamos deixar passar os anos para depois voltar ao mundo, quando já ninguém se lembrasse de nós.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 211

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O ESTUDANTE DE LATIM

«Das várias coisas boas que havia na loja em grandes quantidades, poucas delas subiam as íngremes escadas, pelo menos para Karl Bauer, porque a comida da Sra. Kusterer era pouca e nunca o saciava. Sem ser isso, viviam ambos muito amistosamente e ele tinha o quarto como um príncipe tem um palácio. Ninguém o incomodava, podia fazer o que quisesse e ele fazia muita coisa. Os dois abelheiros na gaiola seriam a coisa menos importante, mas ele também tinha uma espécie de oficina de marceneiro e no fogão fundia o chumbo e zinco e no Verão tinha licença e lagartos numa caixa - eles desapareciam sempre pouco tempo depois através de buracos que nunca eram os que apareciam na rede. Além disso tinha também o violino e quando não estava a ler ou a carpinteirar, estava seguramente a tocar violino a qualquer hora do dia ou da noite.
E assim o jovem passava com prazer todos os dias e nunca se aborrecia, até porque não lhe faltavam livros que copiava quando encontrava qualquer coisa. Lia bastante mas, na realidade, era-lhe tudo um pouco indiferente, a não ser os contos de fadas e lendas, assim como as tragédias em verso.»


Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.19/20

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sobre os dois beijos

«O facto de não podermos um com o outro tinha uma boa razão. Ele tratava-me com sobrançaria ou com uma bonomia insuportavelmente irónica, e como o meu entendimento ultrapassava a minha idade, esta maneira desprezível de lidar comigo magoava-me profundamente com o decorrer do tempo. Como bom observador também eu tinha descoberto algumas das suas intrigas e segredos, o que obviamente lhe era muito desagradável. Por vezes tentou ganhar-me através de um comportamento hipocritamente ansioso, mas eu não caía nessa. Se eu fosse um pouco mais velho e mais esperto, tê-lo-ia apanhado através da sua redobrada gentileza e tê-lo-ia feito cair - pessoas mimadas e com sucesso são tão fáceis de enganar! Mas eu tinha crescido apenas o suficiente para o odiar, e era ainda demasiado criança para conhecer outras armas como a aspereza e a obstinação, e em vez de lhe devolver as setas que me tinha mandado, devidamente envenenadas, enterrava-as mais profundamente na minha própria carne com a minha indignação impotente.»

Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.12

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Maria Lionça

«O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E nova via sacra começou na loja do correio.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
Miguel Torga in Contos da Montanha. 7ª. Edição. Gráfica de Coimbra. pp 21-23.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Uma mulher estranha

«Temos que voltar para casa. Os trenós rangem no gelo. Uma brisa suave atira-nos ao rosto com pequenos flocos de neve, e vemos então a luz das lâmpadas eléctricas como que através de um prisma. No cais, as casas iluminadas parecem enormes. Estreito levemente Natália pela cintura; mas não me atrevo a apertá-la mais. Sinto um milhão de sensações finas, subtis - mas as palavras não me ocorrem e não sei que lhe hei-de dizer. Em que está pensando a sua linda cabeça pequenita, que ela protegeu com o regalo? E forço-me por me lembrar do seu rosto, que agora não vejo e de que me esqueci completamente. Tenho junto de mim uma mulher que não conheço e que quero conhecer. Para quê? Para uma pequena e vulgar aventura amorosa? Não, não! Nada d'isso!
-Voltemos para casa.
-Sim, minha querida. Se me vierem à cabeça ideias vis a seu respeito, matar-me-ei.
Vejo que sofre, que é um ser que mal começou a viver e já tem o coração despedaçado. Lá em casa espera-a o marido moribundo. E um drama - e não se sabe qual dos dois sofre mais.»



N. Garin in Uma Mulher Estranha. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.128/129
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