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domingo, 3 de novembro de 2019
«Lembro-me com rigor do nosso primeiro encontro, da primeira vez que nos fitámos nos
olhos. Eu devia ter uns cinco anos e andava com a minha mãe e as tias no lameiro […] De
repente, minha mãe disse-me: - Vem além o teu pai. – É impossível que não tivesse já
ouvido aquela palavra, mas a mim sempre me pareceu que a escutara então pela primeira
vez. […] Recusei [dinheiro], virando-lhe as costas. Sem uma palavra, corri para minha
mãe: só ela era meu pai, o homem que vinha de ver pela primeira vez ia recusá-lo a vida
inteira. Inteiramente»
«Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que
prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse
tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga de minha
mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os
meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para
dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde
a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitectura
extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em reflectir; o
amor pela brancura da cal, a que se mistura invariavelmente, no meu espírito, o canto duro
das cigarras; uma preferência pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e
limpas de um cerimonial arcaico - o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e
da alma. Dessa infância trouxe também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas
formas é sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergulha inteiro
nas suas águas, talvez porque então o mundo não estivesse dividido, a luz cindia (dividida),
o bem e o mal compartimentados; e, ainda, uma repugnância por todos os dualismos, tão do
gosto da cultura ocidental, sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo
num coração de homem. A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia,
é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não
consumada»
ANDRADE, Eugénio – Poesia e Prosa. 3ª ed. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, vol. 3, p. 123-124.
ANDRADE, Eugénio – Poesia e Prosa. 3ª ed. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, vol. 3, p. 123-124.
O INOMINÁVEL
Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és os silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura. Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
- nem sequer sabemos se tens nome.
ANDRADE, Eugénio de – Poesia. 2ª ed. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 497
Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és os silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura. Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
- nem sequer sabemos se tens nome.
ANDRADE, Eugénio de – Poesia. 2ª ed. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 497
Etiquetas:
Eugénio de Andrade,
poema,
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sábado, 5 de maio de 2018
Um encontro de poetas na Casa de Mateus, anos 80. Alberto Pimenta com Vasco Graça Moura, Alexandre O’Neill, Miguel Torga, Eugénio de Andrade e Pedro Tamen
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
Branco no Branco, o poema XXV
Raivosos, atiraram-se contra a sombra
de umas acácias que por ali havia,
o corpo dorido de tanto desejar.
Olharam em redor, ninguém os vira,
a terra era de areia, a sombra dura,
também a carne endurecera
e secara a boca, só os olhos
tinham ainda alguma água fresca
Os dedos cegos foram os primeiros
a rasgar, ferir, e logo os dentes
morderam, nem sequer
ao sexo deram tempo de penetrar.
Eram muito jovens; a terra não,
a terra estava exausta,
o coração mordido pelas vespas,
só queria morrer.
Eugénio de Andrade
Raivosos, atiraram-se contra a sombra
de umas acácias que por ali havia,
o corpo dorido de tanto desejar.
Olharam em redor, ninguém os vira,
a terra era de areia, a sombra dura,
também a carne endurecera
e secara a boca, só os olhos
tinham ainda alguma água fresca
Os dedos cegos foram os primeiros
a rasgar, ferir, e logo os dentes
morderam, nem sequer
ao sexo deram tempo de penetrar.
Eram muito jovens; a terra não,
a terra estava exausta,
o coração mordido pelas vespas,
só queria morrer.
Eugénio de Andrade
«Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do carpinteiro perdia-se
nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto
era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força
de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se
cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os
olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas,
pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo
o céu branco de agosto.»
Eugénio de Andrade, Poesia, p. 394-395.
nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto
era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força
de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se
cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os
olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas,
pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo
o céu branco de agosto.»
Eugénio de Andrade, Poesia, p. 394-395.
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