quarta-feira, 13 de março de 2024

Rapaz Raposa

Este rapaz feiticeiro
Desdenha falar comigo
Sim é por causa dele, Senhor
Que deixo a comida no prato.

Este rapaz raposa
Comigo comer não quer
Sim é por causa dele
Que já descanso não tenho


Shijing


Uma Antologia de Poesia Chinesa. Gil de Carvalho. Assírio & Alvim, Lisboa, 1989

segunda-feira, 11 de março de 2024

José Mário Branco - Poder

 Um herói

À mesura

Da sua estatura

Vai sempre à procura

Ond' inda ninguém foi


Um herói

Não descura

Um ou outro dói-dói

Uma dura aventura

Não mata mas mói


Caso venha a ser preciso

Arriscar qualquer coisinha

Na operação

Um herói no seu juízo

Leva sempre uma pilinha

Em cada mão

Com a cobertura da instituição

Mais aquilo do Deus-Pátria-Canhão

Um herói nunca se corta

Meio olho-vivo, meio mão-morta

A porta

Não importa


Um herói

Façanhudo

É de tudo capaz

Faz ao peixe miúdo

O que mais ninguém faz


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Um herói

Catrapás

Salta dos quadradinhos

Puxa os cordelinhos

E eles vêm atrás


Com algum equipamento

Assegura a quadratura

Da operação

E o simbólico instrumento

É uma armadura dura

Em cada mão

Um herói é o garante, o bastão

Dessa coisa do Deus-Pátria-Canhão

Nunca tеme, nunca se corta

Come pеixinhos da horta

Mulher morta

Não aborta


Poder

Quem o tem, tem ascendente

Poder

Quem o tem, faz-se valente

Bem usado

Mal usado

O poder é prepotente

Assim

Diz o povo amiúde

Assim

Herói era toda a gente

Mais val' rico e com saúde

Do que pobre e doente

You Don't Own Me

domingo, 10 de março de 2024



                     Francesca Woodman, From a calendar of 6 days, this is the 6th day, Rome, 1977
 

Não existe corpo em boa forma. Existe apenas espaço,
extensão, possibilidades infindas,
o facto de podermos tocar aquele ramo de bétula ali,
apanhar da valeta o calhau branco.
O corpo doente está em toda a parte: o quarto, o pátio, 
o caminho até ao poço, a casa e o céu azul-claro
estão repletos dele. O coração doente
é tão grande que tudo toca nele,
ofendendo-o e magoando-o. Um ramo de abeto que balouça
rente à vedação precipita-se e fere-te o rosto.
O vento que arremessa a vassoura de bruxa
atravessa num sopro o teu peito.
Os gritos das andorinhas atingem-te como marteladas.
A noite cai como um velho cobertor molhado  sobre os teus
                                                                                         olhos e boca.


Jaan Kaplinski [Estónia]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 200
«A destrutividade é o resultado de uma vida não vivida.
Aquilo que não pode crescer para fora cresce para dentro»


Jaan Kaplinski [Estónia]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 196

Conhecimento

 Soubesse eu ao certo como esta folha se desprendeu do seu ramo
E calar-me-ia secretamente para a eternidade: pois saberia o
                                                                                             suficiente.


 Hugo Von Hofmannsthal [Áustria]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 193

Nick Cave & The Bad Seeds - Wild God


 

''Eu não sou um homem. Não quero destruir-te.''

 Harold Norse [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 188

 «Eu não sou um homem. Choro quando me sinto infeliz.

Eu não sou um homem. Não me sinto superior às mulheres.»


Harold Norse [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 188

morangais

''evitas o folguedo''

 Giacomo Leopardi [Itália]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 170

''respirar ar viciado deprime-me''

 


Forough Farrokhzad [Irão]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 150
 «Fala comigo
O que haveria de querer de ti quem oferece a ternura de uma
                                                                                 carne viva»


Forough Farrokhzad [Irão]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 148

sábado, 9 de março de 2024


 

''no quadro 
e os estorninhos partiam em furiosa debandada
da velha árvore

Eu venho do meio das raízes de plantas carnívoras
e tenho o cérebro ainda a transbordar
com o guincho aterrorizado de uma borboleta
crucificado com alfinetas
num caderno''


Forough Farrokhzad [Irão]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 146
''das estações secas das experiências impotentes na amizade e no
                                                                                                     amor''

Forough Farrokhzad [Irão]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 145

''O meu coração está carregado, carregado.''

 Forough Farrokhzad [Irão]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 144

''Esvazio-me de todos os gritos dolorosos''

Forough Farrokhzad [Irão]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 143


 

 


1.
disposição ou tendência para evitar ou recusar o esforçoindolência, preguiça
2.
falta de zelo ou de atençãodesleixo, incúria, negligência

''É tão fácil perdermos se ficarmos quietos''

Fernando Valverde [Espanha]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 136
 ''está na hora de ser filho de alguém
e de ter um filho
e um esqueleto para ir ao mar,
para morrer
com cada osso sem pedir ajuda''


Fabio Morábito [México]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 132




 

 ''fechar todos os olhos que fui abrindo
para que ninguém me agredisse.''


Fabio Morábito [México]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 132
''reunir-me com a minha mãe noutro tempo,
com um eu mesmo que enterrei
e que ela guarda 
sem dizer nada'' 


Fabio Morábito [México]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 132
 ''um século de interioridade
a cumprir-se.
Ressequiu-se dos seus filhos
e vive longe''

Fabio Morábito [México]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 131
 ''A usura mata a criança no ventre
Impede o galanteio do rapaz
Trouxe o marasmo para a cama, pôs-se
entre a jovem noiva e o seu noivo''


Ezra Pound [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 127

''faz-se o nosso pão cada vez mais de farrapos bolorentos''

 

Ezra Pound [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 126

sexta-feira, 8 de março de 2024




 

Carole King - Will You Love Me Tomorrow?

palinódia

 «(...)  que eu, deste meu sofrer assim, sofro cada vez
                                                                menos: que me 
suporto cada vez melhor)»


Edoardo Sanguineti  [Itália]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 116

''fábula-cadáver''

 Edoardo Sanguineti  [Itália]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 108

''dulcíssimos tormentos da vida''

 Edoardo Sanguineti  [Itália]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 107

 «Talvez seja o que não dizemos

aquilo que nos salva.»


Dorianne Laux  [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 100

Tori Amos - Gold Dust


 

 Carnac

fragmentos


1

Mar à beira do nada,
Que se mistura ao nada,

Para melhor saber o céu,
As praias, os rochedos,

Para melhor os receber.


2

Algum dia brincaremos,
Por uma hora que seja,
Nada mais que alguns minutos,
Oceano solene,

Sem que tenhas tu esse ar
De outra coisa te ocupar?


3

Sabes de mais que todos te preferem,
Que mesmo aqueles que te deixaram

Nos trigos te reencontram,
Na erva te procuram,
Na pedra te escutam,
Sem que jamais consigam agarrar-te.


4

Tem qualquer coisa a ver
Com a noção de Deus,

Água que já não és água,
Poder desprovido de mãos e de instrumentos,

Peso sem emprego
Para quem o tempo não existe.


5

Sejamos justos: sem ti
De que me servia o espaço
E as rochas de que serviam?


6

Não temos margens, na verdade,
Nem tu nem eu.


7

Ouve bem o que faz
A pólvora explodindo.

Ouve bem o que faz
O frágil violino.


8

Sei bem que há outros mares,
Mar do pescador,
Mar dos navegadores,
Mar dos marinheiros e guerreiros,
Mar dos que querem morrer no mar.

Não sou um dicionário,
Falo só de nós dois

E quando digo o mar
É sempre o de Carnac.


9

As mesmas terras sempre
A teres de acariciar.

Jamais um corpo novo
Que possas ensaiar.


10

As profundezas, que procuramos,
Serão as tuas?

As nossas têm poder de chama.


11

Demasiado largo
Para ser cavalgado.

Demasiado largo
Para ser estreitado.

E flácido.


12

Se acaso acreditas no valor dos sons
Deves sentir-te arrepiar
Só de ouvir este nome de mar.


13

Tu vais e vens
Mas dentro de limites

Fixados por uma lei
Que não chega a ser tua.

Nós temos em comum
A experiência do muro.



guillevic
carnac (1961)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003

Fonte: ver aqui


fecharia os olhos sob os anéis dos astros e entre os violinos
 e os fortes poços da noite, descobriria a ardente ideia da
 minha vida.

Herberto Helder


 

Histórias de famílias

 Tive um namorado que me contava histórias da sua família,
uma vez uma discussão acabou com o pai dele
a agarrar num bolo de aniversário todo enfeitado com as duas mãos
e a atirá-lo pela janela do segundo andar. Isso,
pensei, é o que acontece numa família normal: raiva
arremessada pelo parapeito da janela, aterrando como um presente
que vai decorar o passeio lá em baixo. Na minha,
eram punhos e golpes directos contra a boca do estômago,
e nunca ninguém perdoou a ninguém. Mas, nas histórias dele, eu
acreditava que as pessoas se amavam verdadeiramente umas às outras,
mesmo quando berravam e forçavam as portas dos armários
com os pés, ou levantavam uma cadeira como se fosse uma garrafa
de espumante barato, martirizando uma parede,
os degraus explodindo nos seus espaços vazios.
Disse-lhe que isso me parecia inofensivo, a pompa e a fúria
dos apaixonados. Ele respondeu que fôra uma maldição
ter nascido italiano e católico e quando olhou
pela janela o que viu foi esse momento
barbaramente destruído. Em contrapartida, tudo o que eu pude ver
foi um maravilhoso bolo de três andares a deslizar como um navio
maltratado até ao passeio, as velas partida, afundando-se
cada vez mais no gelo, algumas ainda a arder.
 
 
 
Dorianne Laux
trocando dólares por cêntimos
alguma poesia norte-americana
trad. luís filipe parrado
contracapa
2020

Fonte: aqui

“For the sake of strangers”

Não importa a dor, seu peso,
somos obrigados a carregá-la.
Erguemo-nos e ganhamos impulso, a força monótona
que nos empurra através da multidão.
Mas então um garoto me dá instruções
com tanto entusiasmo. Uma mulher segura a porta de vidro aberta,
pacientemente esperando meu corpo vazio passar por ela.
Ao longo do dia, isso continua, cada ato de bondade
se estendendo em direção a outro — um estranho
cantando para ninguém enquanto passo pelo caminho, árvores
ofertando suas flores, uma criança
que ergue seus olhos amendoados e sorri.
De alguma forma, eles sempre me encontram, até parecem
estar à espera, determinados a me afastar
de mim mesma, daquilo que me chama,
como deve ter um dia chamado por eles —
esta tentação de afastar-me da borda
e cair sem peso, longe do mundo.


Dorianne Laux

POEIRA

Alguém falou comigo ontem à noite,
disse-me a verdade. As palavras foram escassas,
mas reconheci-a.
Percebi que deveria arranjar maneira de me levantar,
anotá-la, mas era tarde,
e eu estava estafada do dia inteiro
a trabalhar no quintal, mudando pedras de lugar.
Agora, recordo apenas o sabor:
não doce nem picante, ao jeito da comida.
Algo mais próximo de um pó fino, de poeira.
E não fiquei exultante nem assustada,
mas meramente enlevada, ciente.
Por vezes sucede assim:
aparece-nos Deus à janela,
todo ele um clarão e asas negras,
e sentimo-nos demasiado cansados para a abrir.


Dorianne Laux  [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 99


                                                        Jean Dieuzaide,  French photographer

O AMOR APÓS O AMOR

(...)

«dizendo, senta-te aqui. Come.
Amarás novamente o desconhecido que foi o teu eu.
Serve o vinho. Serve o pão. Devolve o teu coração
a si próprio, ao desconhecido que te amou»


Derek Walcott [Santa Lúcia]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 94

''romãzeira em flor ''

(...)
« Delicada como um brinco,
                              transporta o seu vazio como um filho
Do qual se livrasse.»


Charles Wright [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 80

JUNTOS

Gostava de ter a capacidade
                                         de ver através da minha morte.
Um clarão de luz, uma força de chama
que destacasse as pontas de diamante
                                              das folhas caídas e do rio de estrelas.

Este é o ano em que vou arrancar o gelo dos seus passeios.
Este é o ano em que lhe descalcei os sapatos.
Este é o ano em que comecei a fazer-lhe companhia,
                                                                   e a pentear-lhe o cabelo.

 Charles Wright [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 77

RETARDATÁRIO


«O mundo já lá estava
Sereno na sua alteridade.
Só tiveste de chegar
No comboio da tardinha
Aonde não eras esperado.»


Charles Bukowski [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 72


                                                                  Chinese photographer Jing Huang

«Uma trouxa de ossos, por sustento
Uma garrafa de cerveja cheia de sangue.»


 Charles Bukowski [EUA]


Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 71

OS RELÓGIOS DOS MORTOS

(...)
«A cidade está tão sossegada, disse eu.
Como os relógios dos mortos, replicou a minha mulher.
Avó que estás na parede,
Ouvi as neves da tua infância
A começarem a cair.»


Charles Bukowski [EUA]


Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 70

(...)

« mas a idade é o resultado
daquilo que fazemos.
eles envelheceram 
mal
porque perderam 
o foco 
da vida,
recusaram-se a ver.

não têm a culpa?

quem é que tem a culpa?
eu?

pedem-me que
os poupe
ao meu ponto de vista
por medo do 
medo deles.

a idade não é crime

mas a vergonha
de uma vida
desperdiçada
deliberadamente

no meio de tantas
vidas
desperdiçadas
deliberadamente

é.»


Charles Bukowski [EUA]


Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 66/7

ATIRA-TE

 
se é para tentar, vai até ao
fim.
caso contrário, nem vale a pena começar.

se é para tentar, vai até ao
fim.
o que talvez implique perder namoradas,
mulheres, parentes, empregos e
quiçá o juízo.

vai até ao fim.
talvez implique ficar 3 ou 4 dias sem comer.
talvez implique enregelar num
banco de jardim.
talvez implique a prisão,
talvez implique a irrisâo,
a troça,
o isolomaento.
o isolamento é a prenda,
tudo o mais é um teste à tua
resistência, à 
vontade que tens de chegar
lá.
e hás-de chegar lá
apesar da rejeição e das ínfimas probabilidades
(...)

Charles Bukowski [EUA]

Vasco Gato. Lacre. Traduções e Versões de Poesia. 5ª Edição. Língua Morta., p. 64

Faz-de-Conta


Albino sword swallower at a carnival, 1970
Diane Arbus

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