segunda-feira, 13 de julho de 2020

Antero de Quental

Antero Tarquínio de Quental (Ponta Delgada, 18 de abril de 1842 — Ponta Delgada, 11 de setembro de 1891) foi um escritor e poeta português do século XIX que teve um papel importante no movimento da Geração de 70. Durante a sua vida, Antero de Quental dedicou-se à poesia, à filosofia e à política. Esteve em Coimbra aos 16 anos, ali estudando Direito e manifestando as primeiras ideias socialistas. Ainda em 1866 mudou-se para Lisboa, onde experimentou a vida de operário, trabalhando como tipógrafo, profissão que exerceu também em Paris. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Português. Em 1869, fundou o jornal A República, com Oliveira Martins.. Cometeu suicídio no dia 11 de setembro de 1891, com dois tiros, num banco de jardim.

domingo, 5 de julho de 2020

dulcineia

“Porque eu amo infinitamente o finito”

“Porque eu desejo impossivelmente o possível”

“Essas coisas todas — / — Essas e o que falta nelas eternamente”

“Os amores intensos por o suposto em alguém”

“As paixões violentas por coisa nenhuma”

“A subtileza das sensações inúteis”

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
 […]” 

Fernando Pessoa
“[…] 
Quando eu me sento à janela, 
P'los vidros que a neve embaça
 Julgo ver a imagem dela
 Que já não passa… não passa…” 

Fernando Pessoa

''tão exausto de tudo e todos''

criticidade

Álvaro de Campos

O que há em mim é sobretudo cansaço —

O que há em mim é sobretudo cansaço —

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém,

Essas coisas todas —

Essas e o que falta nelas eternamente —;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada —

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...

9-10-1934

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 64.

 

''as belezas e as desgraças da modernidade.''

Édouard Boubat


''um surto da modernidade''

ODE TRIUNFAL

Álvaro de Campos

ODE TRIUNFAL


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

 

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

 

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

 

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

 

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos,

Da faina transportadora-de-cargas dos navios,

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

 

Horas europeias, produtoras, entaladas

Entre maquinismos e afazeres úteis!

Grandes cidades paradas nos cafés,

Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas

Onde se cristalizam e se precipitam

Os rumores e os gestos do Útil

E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!

Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!

Novos entusiasmos de estatura do Momento!

Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,

Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!

Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!

Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,

Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,

E Piccadillies e Avenues de L’Opéra que entram

Pela minh’alma dentro!

 

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!

Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!

Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;

Membros evidentes de clubes aristocráticos;

Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes

E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presença demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)

Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;

E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra

E afinal tem alma lá dentro!

 

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

 

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa dum regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

 

Notícias desmentidas dos jornais,

Artigos políticos insinceramente sinceros,

Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes —

Duas colunas deles passando para a segunda página!

O cheiro fresco a tinta de tipografia!

Os cartazes postos há pouco, molhados!

Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!

Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,

Como eu vos amo de todas as maneiras,

Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto

E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!

Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

 

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!

Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!

Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,

Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

 

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!

Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias secções!

Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente.

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

 

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes —

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela,

Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,

Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

 

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,

Orçamentos falsificados!

(Um orçamento é tão natural como uma árvore

E um parlamento tão belo como uma borboleta).

 

Eh-lá o interesse por tudo na vida,

Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras

Até à noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Platão era realmente Platão

Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

 

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

 

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,

Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

 

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

 

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!

Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

 

E ser levado da rua cheio de sangue

Sem ninguém saber quem eu sou!

 

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,

Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,

Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,

As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!

 

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! —

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosamente gente humana que vive como os cães

Que está abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

 

(Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.

Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.

A luz do sol abafa o silêncio das esferas

E havemos todos de morrer,

Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje...)

 

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!

Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.

E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios

De todas as partes do mundo,

De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,

Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.

Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!

Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

 

Eh-lá grandes desastres de comboios!

Eh-lá desabamentos de galerias de minas!

Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!

Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,

Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,

Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,

A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,

E outro Sol no novo Horizonte!

 

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

 

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,

Engenhos brocas, máquinas rotativas!

 

Eia! eia! eia!

Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!

Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!

Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

Eia todo o passado dentro do presente!

Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!

Eia! eia! eia!

Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!

Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.

Engatam-me em todos os comboios.

Içam-me em todos os cais.

Giro dentro das hélices de todos os navios.

Eia! eia-hô! eia!

Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

 

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!

Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

 

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

 

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!

Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

 

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

 

                        Londres, 1914 — Junho.

6-1914

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

 - 144.

1ª publ. in Orpheu, nº1. Lisboa Jan.-Mar. 1915. Lacunas completadas segundo: Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição Crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993

“Álvaro em botão”

sábado, 4 de julho de 2020

Vivem em nós inúmeros; 
Se penso ou sinto, ignoro
 Quem é que pensa ou sente. 
Sou somente o lugar
 Onde se sente ou pensa. 

Tenho mais almas que uma. 
Há mais eus do que eu mesmo.
 Existo todavia 
Indiferente a todos, 
Faço-os calar: eu falo. 

Os impulsos cruzados 
Do que sinto ou não sinto
 Disputam em quem sou. 
Ignoro-os. Nada ditam 
A quem me sei: eu 'screvo. 

Fernando Pessoa

RHI Stage | Concert by Captain Boy


“o mais histericamente histérico de mim”

Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, “o mais histericamente histérico de mim” , nas palavras de Pessoa, visto que Campos era a personificação de uma histeria, pois sendo ele, Fernando Pessoa, homem, a histeria tomava contornos de silêncio e poesia.

“I know not what tomorrow will bring” (“Não sei o que o amanhã trará”)

“Traga-me mais vinho, porque vida é nada” (Fernanda Pessoa)
 “Queriam-me casado, fútil cotidiano e tributável?”, dizia Campos em Lisbon Revisited 1923 (Pessoa, 2006 [c], p 149), explicitando sua singular maneira de amar. 

ocultista

''Outros nomes''

Chavalier de Pas (Cavaleiro do Nada), com o qual trocava correspondências dele para ele mesmo.

Primeiro heterônimo de Fernando Pessoa.

anelo

O QUE JÁ FOI

Já fui outro. Isso, há um bocado de tempo. Eu nem consigo me lembrar do
 que eu sentia. Eu era outro.


Inimigo Rumor Leandro Sarmatz. Livros Cotovia., p. 106
«O Inferno aos poucos se mudou para as proximidades da Estação e punhais rebrilharam ao sol.»

Inimigo Rumor Luiza Franco Moreira. Livros Cotovia., p. 105

domingo, 21 de junho de 2020


Sérgio Godinho - Assim Como Um Postal Para o Canadá

«Se estou sozinho
E num beco que me encontro
Vou porta a porta perguntando a quem me viu
Se ali morei, se eu era o mesmo e em que ponto
O meu desejo fez as malas e fugiu»

As Armas do Amor - Sérgio de Godinho



Desarmem
Os campos minados da ignorância
Onde se infiltra friamente
O preconceito, esse sim, fatal, letal, brutal
E não há senso que lhe valha
O preconceito desempalha
Animais incongruentes
Atacando pela trilha
De uma ilha outrora virgem
Aparência de virtude
O preconceito nunca falha
Flecha certeira, na esteira da inocência
Aparência de virtude
E por mais que se escude
Na justificação pseudo-ética
Cosmética, caquética
Do seu valor de guardião das morais
Vitais p'ra lá do ano 2000
O preconceito não tem estado civil
É casado com a morte
Divorciado da vida
É viúvo de si mesmo
É solteiro e por junto separado
Suicida
Desarmem o preconceito
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro e secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Desarmem
As metralhadoras côr-de-cinza
Que defendem a condescendência
Cautelosa, lacrimosa
Das decisões oficiais
Carimbadas despachadas
E só por isso legais
Mas que vão milhas atrás
Das atrozes realidades
Que o corpo grita
E a alma berra
A condescendência não desferra
No cofre forte onde se encerra
A planificação ponderada
De um problema complexo
Há soluções de fachada
Dois mil mortos perfilados na parada
Há palestras sobre sexo
É um problema complexo
Não se dane se ninguém resolve nada
Ano após ano
Dois mil mortos perfilados na parada
Um por ano
Nossa escada em caracol para o nirvana
Desarmem a condescendência!
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro e secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Desarmem
A pose altiva
Emproada gargalhada
Que veste a incompetência
Incipiência disfarçada de suma
Sabedoria, quem diria
Quem diria que debaixo de uma só alegoria
Tanto exemplo existiria
Exemplos de incompetência
São aos montes, são às serras
Impossíveis de escalar
Passos vãos, inúteis guerras
A incompetência é incapaz de se olhar
O cadáver inocente
É olhado pelo soldado incontinente
Pelo menos é um olhar
A incompetência, nem pensar
Nem pensar em juntar o resultado à vontade
O sonhado à realidade
E do real partir para a utopia
Menos mal, assim seria, menos mal
Desarmem a incompetência!
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Desarmem
A boa consciência arrogante
Altissonante, complacente
Da intolerância religiosa, da intolerância civil
Da intolerância, tanto faz
Desdenhosa e incapaz
De intuir na diferença
A trave-mestra desta vida
Sal da vida
A intolerância é uma água envenenada
Rota em jorros mas dos gritos só sai água silenciosa
A mais perigosa
Engrossa rios, traz detritos
Traz a caixa das esmolas
Flutuando já tombada
Penetra casas e escolas
Leva livros ditos sagrados
Mas levados mais à letra
Que a própria letra das suas margens
E assim pondo-se à margem
Dos próprios rios sagrados
Desarmem a intolerância!
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro e secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Compositores: Sérgio Godinho

''Depois da dor, como conservar a inocência?''

«Olha os amores são facas de dois gumes
Têm de um lado a paixão, do outro os ciúmes
São desencantos que vivem encantados
Como velas que ardem por dois lados.»

CHANTAL AKERMAN

 “Faço cinema porque não tenho coragem de cumprir a escrita”, diz na sua LETTRE D’UNE CINÉASTE (1984). “Acredito mais nos livros que nas imagens. A imagem é um ídolo num mundo idólatra. Num livro não há idolatria, ainda que queiramos idolatrar as personagens. Quando imergimos num grande livro, experimentamos um acontecimento, um acontecimento extraordinário”

sábado, 20 de junho de 2020

Jacopo VASSILEV. The Water Girl from Cooperative, Bulgarie - 1985


''chamas divisórias''

Paulo de Medeiros, Vendavais.

''estratégias de domínio e domesticação de massas ''

''a desfiguração de estátuas''

Michael Taussig

''(...) manutenção do âmago inumano que serve de fundação às nossas sociedades.''

 Paulo de Medeiros, Vendavais.
If you come as softly
As the wind within the trees
You may hear what I hear
 See what sorrow sees.

Audre Lorde 

mise en abyme

desrazão

“arqueologia da percepção”

 Foucault – leituras da história da loucura

Maladie mentale

Édouard Boubat. Nazaré, Portugal 1956.


O enclausuramento do louco na época clássica

obra foucaultiana

a análise do fascínio exercido pelos textos literários na obra foucaultiana:

 “é, sobretudo, uma bibliofilia: um amor – borgiano – às bibliotecas, a seus textos que subvertem datas e enquadramentos”


“O discurso diferente”, de Renato Janine Ribeiro (in: RIBEIRO, R.J. (org.), Recordar Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985).
C O N S O L O
Chegarão as horas
em que as velhas feridas,
essas que esquecemos em tempos,
ameaçarão consumir-nos.
Chegarão os dias
em que nenhuma balança
da vida e das tristezas
poderá inclinar-se para um ou outro prato.
Transcorrerão as horas
e passarão os dias.
Mas um desejo permanecerá:
a mera persistência.
Hannah Arendt, Poemas | Fulgor - Quotidiano 

ceramista

(...)

«Meu amor eu gosto tanto
Da forma como tu gostas
Mas por favor anda buscar
As tuas unhas às minhas costas.»

Sérgio Godinho

Histoire de la Folie

Michel Foucault
“O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal.” 

(MACHADO DE ASSIS, O alienista)
“O alienado mais violento e mais temível se tornou, por vias suaves e conciliatórias, o homem mais dócil e digno de interesse por uma sensibilidade tocante.”

(Dr. Ph. PINEL, Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental)

o início da era manicomial

A extracção da Pedra da Loucura

2º Andar Direito - Sérgio Godinho

Ele vinte anos, e ela dezoito
E há cinco dias sem trocarem palavra
Lembrando as zangas que um só beijo curava
E esta história começa no instante
Em que o homem empurra a porta pesada
Entra no quarto onde a mulher está deitada
A dormir dum sono ligeiro
A dormir dum sono ligeiro
E no quarto, às cegas
O escuro abraça-o como que a um companheiro
Que se conhece pelo tocar e pelo cheiro
E é o ruído que o chão faz que lhe traz
O gosto ao quarto depois duma rutura
Faz-lhe sentir que entre os dois algo ainda dura
Dos dias em que um beijo bastava
Dos dias em que um beijo bastava
E agora, da cama
Vem uma voz que diz sussurrando, és tu?
E a luz acende-se sobre um braço nu
E a mulher pergunta, a que vens agora?
É que não sei se reparaste na hora
Deixa dormir quem quer dormir, vai-te embora
Amanhã tenho de ir trabalhar
Amanhã tenho de ir trabalhar
Não fales, que o bebé ainda acorda
Não grites, que o vizinho ainda acorda
E não me olhes, que o amor ainda acorda
Deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais
Deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais
E o homem, de pé
Parece um rapazinho a ver se compreende
E grita e diz que ele também não se vende
Que quer a paz mas de outra maneira
E nem que essa noite fosse a derradeira
Veio afirmar quer ela queira ou não queira
Que os dois ainda têm muito a aprender
Que os dois ainda têm muito a aprender
Se temos, diz ela
Mas o problema não é só de aprender
É saber a partir daí que fazer
E o homem diz, que queres que responda?
Não estamos no mesmo comprimento d'onda
Tu a mandares-me esse sorriso à Gioconda
E eu com ar de filme americano
E eu com ar de filme americano
Somos tão novos, diz o homem
E agora é a vez de a mulher se impacientar
Essa frase já começa a tresandar
É que não é só uma questão de idade
O amor não é o bilhete de identidade
É eu ou tu, seja quem for, ter vontade
De mudar e deixar mudar
De mudar e deixar mudar
Não fales, que o bebé ainda acorda
Não grites, que o vizinho ainda acorda
E não me olhes, que o amor ainda acorda
Deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais
Deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais
E assim, se ouviu
Pela noite fora os dois amantes falar
E o que não vi só tive que imaginar
É preciso explicar que sou eu o vizinho
E à noite vivo neste quarto sozinho
Corpo cansado e cabeça em desalinho
E o prédio inteiro nos meus ouvidos
E o prédio inteiro nos meus ouvidos
Veio a manhã e diziam
Telefona ao teu patrão, diz que hoje não vais
Que viveste uns dias assim tão brutais
E que precisas de convalescença
Sei lá, inventa qualquer coisa, uma doença
Mete um atestado ou pede licença
Sem prazo nem vencimento, se preciso for
Sem prazo nem vencimento, se preciso for
(Espero que não seja preciso
Porque não sei como é que eles vão viver sem os dois salários)
Vá fala que o bebé está acordado
O vizinho deve estar já acordado
E o amor, pronto, também está acordado
Mas tem cuidado, trata-o bem muito bem, de mansinho
Que ainda agora vai pisar outro caminho

Compositores: Sérgio Godinho

domingo, 14 de junho de 2020


'' perdido em colecções de amorios até ao fastio''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 72

«Estragado com facilidades, desde a infância pródiga (...)»


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 72

Não, não eram dele


«Não, não eram dele aqueles cabelos penteados para a fotografia, com uma carapaça de fixador correctíssima, que lhe acentuava o feitio triangular do rosto, nem o botão de ouro na camisa de lavrador e a jaqueta espartilhada, que ele já só vestia ultimamente «para se mascarar», em dias consagrados ao clã familiar.»

Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 71

«(...) com a testa  inundada de caracóis suados, negros como serpentes negras.»

Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 70

''o jogo da dureza tem os seus atractivos.''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 69

Chá de Mentrasto


bioco

 /ô/
bi.o.co
ˈbjoku
nome masculino
1.
mantilha usada para cobrir a cabeça e parte do rosto
2.
figurado hipocrisiafalsa modéstia
3.
figurado gesto ameaçadorameaça
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