sábado, 23 de novembro de 2024

Cisne

 Amei-te? Sim. Doidamente!

Amei-te com esse amor
Que traz vida e foi doente...

À beira de ti, as horas
Não eram horas: paravam.
E, longe de ti, o tempo
Era tempo, infelizmente...

Ai! esse amor que traz vida,
Cor, saúde... e foi doente!

Porém, voltavas e, então,
Os cardos davam camélias,
Os alecrins, açucenas,
As aves, brancos lilases,
E as ruas, todas morenas,
Eram tapetes de flores
Onde havia musgo, apenas...

E, enquanto subia a Lua,
Nas asas do vento brando,
O meu sangue ia passando
Da minha mão para a tua!

Por que te amei?
— Ninguém sabe
A causa daquele amor
Que traz vida e foi doente.

Talvez viesse da terra,
Quando a terra lembra a carne.
Talvez viesse da carne
Quando a carne lembra a alma!
Talvez viesse da noite
Quando a noite lembra o dia.

— Talvez viesse de mim.
E da minha poesia...


 

under - marin county lighthouse keeper

Para te amar ensaiei os meus lábios!

Povo

 Povo que lavas no rio,

Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!

Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!

Fui ter à mesa redonda,
Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!

Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços...
Mas a tua vida, não!

Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!

Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...
Vi certa curva em teu seio...
Mas a tua vida, não!

Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão...
Povo! Povo! eu te pertenço.
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida, não!

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado,
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!


Solidão



Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra… E continuas.
Todo o vento é poeira… E continuas.
A Lua, fria, pesa… E continuas.
Uma hora passa e outra… E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insônia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso… E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas… Mas sei por fim que sou do teu tamanho!

mortandade

saturnália

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais De Mim)

 «Um homem que é incapaz de suportar a dor de amar uma mulher, uma mulher que é incapaz de suportar a dor de amar um homem, devem ir alegremente à procura de outros parceiros, e assim descobrir uma forma de reforçarem a lealdade nos seus corações.»

Yasunari Kawabata. O Som da Montanha. Tradução de Francisco Agarez. D. Quixote., p. 16

sarrabiscos

 ''Se não cometes erros, não estás realmente a tentar.''

Coleman Hawkins

La décadanse

terça-feira, 19 de novembro de 2024

 


''nenhuma morte é tão longa quanto a vida''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 194

 « O amor, ditam os frios de coração, é ruinoso

qualquer momento em chamas

denunciará a imprecisa inquietação que nos toma


Os inocentes que se amam dizem

teu corpo está a nevar

tua alma é uma flor

um prado tranquilo sua noite »


 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 193

''um branco lunar''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 190

Consuelo e Antoine de Saint Exupéry


 

'' o amor é uma noite a que se chega só ''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 179

Tremoceiro-das-folhas-estreitas

 ''ponho a mão na boca
para suster um grito''

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 164

''como os dias nos pedem a dureza''

 

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 162

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

domingo, 17 de novembro de 2024

O Indesejado (António, Rei)

“Eu ia para a varanda conversar com o Papagaio Verde, não para lhe contar desditas que claramente não entrevia, mas para comungar numa idêntica solidão acorrentada.”


Jorge de Sena,
Conto «Homenagem ao papagaio verde»

sexta-feira, 15 de novembro de 2024


Portrait of Anna May Wong

 

 ONO NO KOMACHI (834? – ?)

O meu desejo de ti

é forte para contê-lo –

assim ninguém vai culpar-me

se à noite for ter contigo

pela estrada de meus sonhos.

 

Não há como vê-lo

nesta noite sem luar –

estou deitada e desperta,

os seios ardendo em desejo

e o coração em chamas.

 

 

Pensei ter colhido

a flor do esquecimento [*]

só para mim mesma;

mas encontrei-a a crescer

também no coração dele.

 

[*] wasuregusa, a palavra japonesa do poema que significa “flor do esquecimento” é o equivalente inglês de “forget-me-not” ou do português “amor-perfeito” – a subtileza decorrente da duplicidade do sentido do poema consoante seja lido na sua literalidade de metáfora ou na significação do real, é um exemplo esplendoroso da beleza inspirada desta poesia onde a concisão se desdobra numa multiplicidade de emoções e sentimentos.

 

 

Escolho agora de ISUMI SHIKIBU (974? – 1034?) apenas alguns poemas de solidão e desejo, com uma que outra amarga reflexão, deixando de fora poemas onde a presença do efémero na natureza transmite, de forma singular, a vulnerabilidade do viver:

 

Se o cavalo dele

tivesse sido domado

pela minha mão –

eu tê-lo-ia ensinado

a não seguir mais ninguém.

 

 

Mesmo quando um rio

de lágrimas atravessa

e molha este corpo,

não chega para apagar

todo o fogo do amor.

 

 

Porque não terei

pensado nisto já antes?

Este corpo meu

ao recordar tanto o teu

tem a marca que deixaste.

 

 

Penso: “nos meus sonhos

poderemos encontra-nos” …

Virando a almofada,

eu ando às voltas na cama

incapaz de adormecer.

 

 

Consumi o corpo

a desejar o regresso

do que não voltou.

É agora um vale profundo

o que foi meu coração

 

Deixada aqui

a envelhecer no mundo

sem ti ao meu lado,

as flores perdem a beleza

tingidas de negra cor.

 

Os poemas encontram-se no livro  O Japão no Feminino – I – Tanka  poesia dos séculos IX a XI, publicado por Assírio & Alvim  em 2007 com organização e versão portuguesa de Luísa Freire.

surripiado aqui
 41

Enquanto contemplo
a forte chuva a cair,
meu coração também morre
na cor que não será vista
nas flores desta Primavera.


Ono No Komachi, in O Japão no Feminino I. Tanka, trad. Luísa Freire, ed. Assírio & Alvim


 

eurocracia

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O poder foi-se-te.

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 147

 


1.
que não teve princípio nem há de ter fimque dura muito
2.
figurado perpétuoincessante

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Sei que vai morrer de tristeza.

 «Sei que vai morrer de tristeza. Hoje em dia chamam-lhe depressão, mas aqui sempre foi morrer de tristeza.»


Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.109


Josephine Cardin

 

''Que sofra em morto o que devia ter sofrido em vida.''

 Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 70

 « Nós, as mulheres desta família, enviuvamos depressa. Os nossos homens consomem-se como os círios das igrejas, pouco tempo depois de nos termos casado tudo o que resta deles é uma nódoa nos lençóis que não sai mesmo que desfaçamos as mãos a esfregá-la.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.69

 «Enviai os vossos anjos sobre eles, secai os campos, fazei com que a cevada fique sem grão e a vinha sem uvas, não lhes deis descanso mesmo depois de mortos.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 64

''ouvia-se o murmurinho da sexta-feira das dores''

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 64

 ''Não sei porque razão vemos o que vemos''

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 63


Nan Goldin, Falling buildings, Rome (2004)

 

  «Desgraçada, se não estivesses morta matava-te, dizia a velha, mas não servia de grande coisa, como se pode ameaçar uma sombra que se arrastou até aqui vinda sabemos lá de que inferno.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 62

O Pedro não queria casar comigo, mas nunca mo disse.

  «Casámo-nos de noite e sem convidados. Não houve convites, naquela desonra não havia nada para celebrar. A minha mãe costurou-me o vestido, negro por causa do luto e largo por conta da vergonha.»

 Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 57

os indesejados

malcriadez

 «A dor continuou a aumentar, sentia que a cabeça estava cheia de vidros, cheia de tesouras.»

  Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 40

domingo, 10 de novembro de 2024


 

Get Your Head Out

Liberdade, a insuportável.

 José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 144

 « Que os biliões nos não matem, a nós, os dos biliões.
Nós que estamos milénios atrasados de Nós mesmos.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 135
 Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 160
 Lançaste ao fogo cidades
afogaste os exércitos
no vermelho mar da sua ira
hipotecaste terras tão preciosas
para estares junto de mim


José Tolentino Mendonça.
 A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 157


 

UMA VELA ACESA

 Onde nada ameaça
sobrevém inesperado o temor:
um coração desce
à morada de outro coração



José Tolentino Mendonça.
 A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 152
 Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 148
 é assim que rodo
à volta de lugares desconhecidos
nenhum corte me doeu
nunca estive sozinha

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 131

CALLE PRINCIPE, 25

 Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos 
a esquecer alguém 
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 102

FOGUEIRAS E GELOS

 Contra o coração
abraçava ramos de flores magras e azuis
sentimentos muito triviais
e por vezes a maior escuridão

Perseguia sem cessar certos gestos
que na paz
seriam seus 

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 85

The Cure - Alone

mas tu não, tu nunca choraste 
por amores que se perdem


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 84
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