sábado, 28 de outubro de 2017


os anjos não têm costas
          mas têm sempre asas

Curadoria: Manuel Costa Cabral

A PALAVRA SEDA


A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que a tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.

E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,

nada tem de superfície
luxuosa, falsa, académica,
de uma superfície quando
se diz que ela é «como seda».

Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas

há algo de muscular, 
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 252/3

''sedante''


''os sítios de casas mansas
que agonizam sem rancor;''



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 249

''fábricas para o suor''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 249

A MULHER E A CASA


Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada. 

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra:
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se de dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas: 
a vontade de corrê-la
por dentro, visitá-la.




João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 247/8

quinta-feira, 26 de outubro de 2017


«tudo se perde na terra,
em forma de alma, ou de nada.»



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 252

domingo, 22 de outubro de 2017

(...)

«Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra:
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 248

«Em tudo pára o ar de abandono
de meia-morte ou pleno-sono,»


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 244


1.

O amor de passagem,
o amor acidental,
se dá entre dois corpos
no plano do animal,


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 239

''vidros lúcidos''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 234

sábado, 21 de outubro de 2017

O sucesso é a soma de pequenos esforços repetidos dia após dia.

Robert Collier 

''o tempo que de nós se perde''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 200

"I'd Rather Go Blind"


Something told me it was over
When I saw you and her talking
Something deep down in my soul said, 'Cry, girl.'
When I saw you and that girl walkin' out

Whoo, I would rather, I would rather go blind, boy,
Than to see you walk away from me, child, no

Whoo, so you see, I love you so much
That I don't wanna watch you leave me, baby
Most of all, I just don't, I just don't wanna be free, no

Whoo, whoo, I was just, I was just, I was just
Sitting here thinkin' of your kiss and your warm embrace, yeah
When the reflection in the glass that I held to my lips now, baby,
Revealed the tears that was on my face, yeah

Whoo, and baby, baby, I'd rather, I'd rather be blind, boy
Than to see you walk away, see you walk away from me, yeah
Whoo, baby, baby, baby, I'd rather be blind boy
[Fade out:] Baby, baby, baby...

«a vida se dá tão vazia»


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 198

«como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.»


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 195

«O homem é o animal
mais vestido e calçado.»



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 194

«flor de planta que não
pode florir, e aborta.»



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 181

''Acordar morto.''

Grace Kelly by Howell Conant, Jamaica 1955


(...)

Há gente que se gasta
de dentro para fora.
E há gente que prefere
gastar-se no que choca:»





João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 179
(...)

«Há gente que se aquece
por dentre, e há em troca
pessoas que preferem
aquecer-se por fora.»



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 178

''estufas íntimas''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 178

''aspecto algodoento''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 163

ninfomania

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

"Montaigne escreve que é doloroso ter de permanecer num lugar em que tudo o que a nossa vista alcança nos diz respeito e a nós se refere. E mais adiante: a minha alma movia-se, sobre as coisas que me circundavam formei eu o meu próprio juízo e assimilei-as sem ajuda alheia. Uma das minhas convicções era que a verdade não podia de modo algum ceder à coacção e à força. E mais adiante: eu estou ansioso por me revelar, em que medida é-me indiferente, só é preciso que realmente me aconteça. E mais adiante: não há nada mais difícil, mas também mais útil, do que a autodescrição. Cada um tem de se examinar, de se comandar a si próprio e de se colocar no lugar devido. A isto estou eu sempre pronto, pois descrevo-me sempre e não descrevo os meus actos, mas o meu ser. "

-"Autobiografia"
- Thomas Bernhard

terça-feira, 17 de outubro de 2017


pedra-sabão

''Insolúvel: por muito o dissolvente;''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 152

aniagem


nome feminino

1.pano grosseiro para envolver fardos; linhagem
2.figurado grosseria

OS VAZIOS DO HOMEM


Os vazios do homem não sentem ao nada
do vazio qualquer: do casaco vazio,
do da saca vazia (que não ficam de pé
quando vazios, ou o homem com vazios);
os vazios do homem sentem a um cheio
de uma coisa que inchasse já inchada;
ou ao que deve sentir, quando cheia,
uma saca: todavia não, qualquer saca.
Os vazios do homem, esse vazio cheio,
não sentem ao que uma saca de tijolos,
uma saca de rebites; não têm o pulso
que bate numa de sementes, de ovos.

2.

Os vazios do homem, ainda que sintam
a uma plenitude (agora mas pertença)
contêm nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
o dela copiam certamente a estrutura:
toda em grutas ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolha, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios do homem ou o vazio inchado:
ou o vazio que inchou por estar vazio.



João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 150


(...)

«as lentes negras, lentes de diminuir,
as lentes de distanciar, ou do exílio.»


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 149

OS REINOS DO AMARELO


(...)

2.

Só que fere a vista um amarelo outro:
se animal, de homem: de corpo humano;
de corpo e vida; de tudo o que segrega
(sarro ou suor, bile íntima ou ranho),
ou sofre (o amarelo de sentir triste,
de ser analfabeto, de existir aguado):
amarelo que no homem dali se adiciona
o que há em ser pântano, ser-se fardo.
Embora comum ali, esse amarelo humano
ainda dá na vista (mais pelo prodígio):
pelo que tardam a secar, e ao sol dali,
tais poças de amarelo, de escarro vivo.




João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 148

''em suicídio permanente''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 144

''atar a hemorragia''


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 143

OS RIOS DE UM DIA


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 143

''cacto espinhento''

RIOS SEM DISCURSO

João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 139

sábado, 14 de outubro de 2017

SOBRE O SENTAR-/ESTAR-NO-MUNDO


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 35

«o hálito sexual da terra sob o arado.»


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 135
*

O que o canavial sim aprende do mar;
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar.
que menos lastradamente se derrama.


João Cabral de Melo Neto. Poesia Completa 1940-1980. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1986., p. 127
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