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terça-feira, 10 de agosto de 2010

184

Todas as nuvens ardem



Todas as nuvens ardem
porque te encontrei,
deus desejante e desejado;
tochas altas e cárdeas
(escarlates, azuis, rubras, amarelas)
num alto grito de rumor de luz.

Do horizonte redondo vêm todas
em reunião fulgente,
a abraçar-se com voltas de esperança
à minha fé respondida.

(Mar deserto, com deus
em redonda consciência
que me fala e me canta,
que me dá confiança e dá certeza;
por ti passo de pé
alerta, em mim firmado,
satisfeito porque minha viagem
é para o homem continuado, que me espera
um porto de chegada permanente,
de encontro repetido.)

Todas as nuvens que existiram,
que existem e existirão,
me rodeiam com sinais de evidência;
elas são para mim
a afirmação que se ergue do profundo
fundo de ar em que vivo;
o subir verdadeiro do subir,
do subir do achado no alto profundo.


Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 168/9

182

O nome dos nomes conseguido

Se, por ti, criei um mundo para ti,
deus, tu tinhas que a ele vir, sem dúvida,
e tu vieste a ele e a mim,
porque o meu mundo era a minha esperança.

Eu acumulei a minha esperança
em língua, em nome falado, em nome escrito;
a tudo eu tinha dado nome
e tu tomaste o lugar
de todos esses nomes.

Agora posso deter já meu movimento,
como a chama se detém em brasa rubra
com um esplendor de inflamado ar azul,
na brasa do meu perpétuo estar e ser;
agora sou já o meu mar paralisado,
o mar em que eu falava, mas não duro,
paralisado em ondas de consciência em luz
e todas vivas, voltadas para cima, para cima.

Todos os nomes que dei
ao universo que por ti eu me recriava
estão a converter-se em um só e em um
deus.

O deus que é sempre ao fim,
o deus criado e recriado e recriado
por graça e sem esforço.
O Deus. O nome dos nomes conseguido.

Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 166/7

terça-feira, 3 de agosto de 2010

173

Pomba Ferida


Pelas rochas oiço-te arquejar,
a caminhar pra cima.
Sobe, não sou cruel,
oh pomba ferida.

Truncaram-te as asas côncavas?
Já não podes abri-las?
Vou, não sou trôpego,
oh pomba ferida!

Com os teus olhos deténs o sol
e páras a brisa.
Vem cá, não sou tardo,
oh pomba ferida!

Em minha boca tua sede aguarda-te,
tua sede que é minha.
Entra, não sou seco,
oh pomba ferida!


Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 156/7

170

REQUIEM


Quando todos os séculos regressam,
anoitecendo, à sua beleza,
sobe ao âmbito universal
a funda unidade terrena.

Então a nossa vida alcança
a alta razão de sua existência:
todos somos reis iguais
na terra, rainha completa.

Vemos-lhe as têmporas infindas,
escutamos-lhe a voz imensa,
sentimo-nos acumulados
pelas suas mãos verdadeiras.

Seu mar total é o nosso sangue,
a nossa carne é a sua pedra,
respiramos o seu ar uno,
seu fogo único incendeia-nos.

Ela está com todos nós,
todos nós estamos com ela;
ela é bastante para dar-nos
a todos a substância eterna.

E tocamos o zénite último
com a luz de nossas cabeças
e detemo-nos todos certos
de estar no que nunca se deixa.


Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 153

168

Rosa Íntima

(Todas as rosas são a mesma rosa
amor! a única rosa.
E tudo está nela contido,
breve imagem do mundo,
amor! a única rosa.)

Rosa, a rosa ...(Mas aquela rosa...)
A Primavera volta
com a rosa
escarlate, rósea, amarela, escarlate, branca;
e todos com a rosa se embriagam,
a rosa igual a outra rosa.
Uma rosa é igual a outra rosa?
Todas as rosas são a mesma rosa?
Sim (mas aquela rosa...)

A rosa que numa mão se isola,
que se cheira até ao fundo seu e nosso,
a rosa para o seio do amor,
para a boca do amor e da alma.
(...E para a alma era aquela rosa
que docemente entre as rosas se escondia,
e que uma tarde depois não se viu mais.
De que amarelo aquela fresca rosa?

Tudo, de rosa em rosa, louco vive,
a luz, a asa, o ar,
a onda e a mulher,
e o homem, e a mulher e o homem.
A rosa prende, bela
e delicada, para todos,
seu corpo sem penumbra e sem segredo,
a um tempo suave e pleno,
íntimo e evidente, ardente e doce.
Esta rosa, essa rosa, a outra rosa...
Sim (mas aquela rosa...)



Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 150/151

quinta-feira, 3 de junho de 2010

144

Ao lado do meu corpo morto,
minha obra viva.
O dia
de minha vida completa
no nada e no todo
(a flor fechada com a flor aberta);
o dia da alegria de partir,
pela alegria de ficar
(de ficar para partir); o dia
do dormir saboroso, sabendo-o, para sempre,
inefável sono maternal
da casca inútil e do botão seco,
junto ao eterno fruto
e à mariposa infinda!



Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 127

segunda-feira, 31 de maio de 2010

141

LUA CHEIA


A porta está aberta;
o grilo, cantando.
Andas toda nua
pelo campo?

Como uma água eterna,
por tudo entra e sai.
Andas toda nua
pelo ar?

A alfavaca não dorme,
a formiga trabalha.
Andas toda nua
pela casa?



Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p.25

132

A morte é uma nossa mãe antiga,
nossa primeira mãe, e que nos ama
através das outras mães, século a século,
e nunca, nunca nos esquece;
mãe que vai, imortal, entesourando
- para cada um de nós somente -
o coração de cada mãe já morta;
que está mais perto de nós,
quantas mais mães nossas morrerem;
para quem cada mãe apenas é
uma arca de carinho a ser roubada
- para cada um de nós somente -;
mãe que nos espera,
qual mãe final, com um abraço imensamente aberto,
que há-de cerrar-se um dia, breve e duro,
sobre as nossas costas, para sempre.


Juan Ramón Jimenez. Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 119/20

126

Como aprendemos a morrer
em ti, sono!
Com que beleza magistral
nos vais levando - por jardins
que nos parecem cada vez mais nossos -
ao conhecimento profundíssimo da sombra!


Juan Ramón Jimenez.Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 115

quarta-feira, 14 de abril de 2010

136

Eu não serei eu, morte,
até que te unas com a minha vida
e assim me completes todo;
até que a minha metade de luz se feche
com minha metade de sombra
- e eu seja equilíbrio eterno
no espírito do mundo:
umas vezes, meu meio eu, radiante;
outras, meu outro meio eu, no esquecimento.-

Eu não serei eu, morte,
até que tu, em teu labor, vistas
de ossos pálidos minha alma.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 122

133

Quero dormir, esta noite
que tu estás morto; dormir;
dormir, dormir paralela-
mente ao teu sono completo;
a ver se te alcanço assim!


Dormir, aurora da tarde;
fonte do rio, dormir;
dois dias que brilhem juntos
no nada, duas correntes
que cheguem juntas ao fim;
dois todos, se é algo isto;
dois nadas, se tudo é nada...

Quero dormir teu morrer!


Juan Ramón Jimenez
in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 120

segunda-feira, 22 de março de 2010

92

Eu não sou eu.
Sou este
que vai a meu lado sem eu vê-lo;
que, por vezes, vou ver,
e que, às vezes, esqueço.
O que se cala, sereno, quando falo,
o que perdoa, doce, quando odeio,
o que passeia por onde estou ausente,
o que ficará de pé quando eu morrer.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.96

segunda-feira, 15 de março de 2010

66/ Solidão

(1 de Fevereiro)


Estás todo em ti, mar,e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!


Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.82

(Oberón a Titania)
Deixo correr meu sangue,
para que te persiga...
Não esperes que derrame
a última gota, pra fazer-te minha!




Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.69

domingo, 7 de março de 2010

30 / Mãos

Ai, tuas mãos carregadas de rosas! São mais puras
tuas mãos do que as rosas. E entre as folhas brancas,
surgem como se fossem estilhaços de estrelas,
asas de mariposas alvas, sedas cândidas.

Caíram-te da Lua? Ou acaso brincaram
numa Primavera celestial? São da alma?
...Têm vago esplendor de lírios de outro mundo;
deslumbram o que sonham, refrescam o que cantam.

Minha fronte serena-se, como um céu vespertino,
quando tu com tuas mãos entre suas nuvens andas;
se as beijo, a púrpura de brasa desta boca
empalidece do seu brancor de pedra de água.

Tuas mãos entre sonhos! Atravessam, quais pombas
de fogo branco, minhas visões turbadas,
e, na aurora, abrem-me, como com luz de ti,
a claridade suave do oriente de prata.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.53/54

sábado, 6 de março de 2010

13

A lua dourava o rio
- tão fresco da magrugada! -
Pelo mar vinham as ondas
tingidas da luz da alva.

O campo débil e triste
acendia-se. Ficava
o canto gasto de um grilo,
a queixa escura de uma água.

Fugia o vento à sua gruta,
o horror à sua cabana;
no verde dos pinheirais
entreabriam-se as asas.

Iam morrendo as estrelas,
roseava-se a montanha;
além no poço do horto,
uma andorinha cantava.

Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.39
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