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domingo, 9 de dezembro de 2012

«A memória é redundante: repete os sinais para que a cidade continue a existir.»



Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 23

''lenha de cerejeira seca''

As cidades e a memória. 2.

   O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam astísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles.
Os desejos são já recordações.



Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990

segunda-feira, 9 de maio de 2011

      Como dizia o Italo Calvino, «para Tonino Guerra tudo se transforma em conto e em poesia: de viva voz ou escrito ou nas sequências do cinema, em prosa ou em verso, em italiano ou em dialecto romanholo. Há sempre um conto em cada uma das suas poesias; há sempre uma poesia em cada um dos seus contos. E poesia quer dizer uma experiência precisa e concreta e inesperada, contendo dentro de si um sentimento e com o tom de uma voz que nos fala.»


Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 15/6

segunda-feira, 18 de abril de 2011

« Acalma-te, sê gentil - disseram-lhe os outros.
-Tu tens sempre argumentos para criticar as empresas dos teus camaradas não podes impedir que alguém se ria um pouco das tuas...
-Eu não ofendo ninguém: limito-me a precisar os factos, com lugares, datas e provas!
-Fui eu que falei. Também eu vou provar!»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 93
«Nem defende nem ataca, nada tem sentido - disse Torrismundo. - A guerra durará até à consumação dos séculos, não haverá nem vencedor nem vencido, ficaremos uns em frente dos outros para sempre. E sem uns e outros não seriam nada. E doravante somos nós que esquecemos porque combatemos...Ouves estas rãs? Tudo o que fazemos tem tanta lógica e tanto sentido como o seu grasnar, os seus saltos da água para a margem e da margem para a água...»




Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 93

Não se pode estar seguro de nada...

« E de que queres tu estar seguro? - interrompeu-o Torrismundo. - Decorações, postos, pompas, títulos...Tudo é uma patarata. Os escudos, com os feitos e as divisas dos paladinos, não são de ferro: são de cartão, que se pode atravessar com um dedo, de lado a lado.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 92

sábado, 16 de abril de 2011

« - Eh pintainho, tens um belo encher de peito para a nossa paladina. A ela, agora, só lhe agrada uma couraça limpa por dentro e por fora. Não sabias que está apaixonada por Agilulfo?
   -Mas como pode ser...Agilulfo...Bradamante...Como é possível?
   -É possível quando uma mulher perdeu o desejo por todos os homens existentes, e o único desejo que lhe resta é por um homem que não existe...»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88
    «No limite do campo, Agilulfo passava lentamente. Sobre a armadura branca pendia um longo manto negro. Caminhava como quem não quer olhar, mas sabe que o olham, e crê dever mostrar que isso não lhe importa, quando, pelo contrário, importa-lhe sim, mas de uma maneira diferente daquela que os outros poderiam compreender.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88
« - Acertas no alvo, mas sempre por acaso.
   - Por acaso? Não falho uma flecha.
   -Mesmo que atirasses bem cem flechas, era sempre por acaso.
   -Então o que é por acaso? Quem consegue acertar sem ser por acaso?»




Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 88

« Assim, desde sempre, o jovem corre para a mulher...

« Assim, desde sempre, o jovem corre para a mulher: mas é bem o amor que ela lhe inspirara? Ou não é antes o amor por ele próprio, a busca de uma certeza de existir que só a mulher lhe pode dar? Corre e enamora-se o jovem, duvidando de si mesmo, feliz e desesperado; para ele a mulher é esta presença incontestável, e só ela pode dar-lhe a prova desejada. Mas também a mulher está e não está ali: ei-la, assim como ele, ansiosa e insegura. Como é que o jovem não se apercebe disso? Que importa qual, entre os dois, é o mais forte ou o mais fraco? Estão à mesma altura. Mas o jovem não sabe porque não quer saber: o que ele deseja, avidamente, é a mulher que existe, a mulher indubitável. Ela, ao contrário, sabe mais coisas; ou menos; de qualquer maneira sabe outras coisas; agora é uma maneira diferente de ser que ela procura; fazem, em conjunto, um concurso de tiro ao arco; ela ri-se dele e não o aprecia; ele não sabe que é para se divertir.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 87

sexta-feira, 15 de abril de 2011

«Em definitivo, a guerra é um tanto matadouro, um tanto rotina, e não vale a pena olhá-la de muito perto.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 84

Rambaldo arrasta um morto e pensa

Rambaldo arrasta um morto e pensa: «ó morto, eu corro, eu corro para chegar aqui, como tu, para me fazer arrastar pelos calcanhares. O que valem esta fúria que me impele, esta ânsia de batalhas e de amores, vistas de onde as observam os teus olhos fechados, a tua cabeça caída que bamboleia sobre as pedras? Eu o sei, ó morto, és tu que me fazes saber. Mas o que muda? Nada. Não existem outros dias além daqueles nossos dias que nos levam à cova, para nós, vivos, e também para vós, mortos. Que me sejadado a não desperdiça-los, não perder nada do que sou e do que poderei ser.Cumprir acções ilustres para o exército franco. E abraçar, abraçado pelaorgulhosa Bradamante. Espero que tenhas empregado bem os teus dias, ó morto.Para ti, os dados já foram lançados. Para mim, ainda rodopiam no copo. E euamo, ó morto, a minha ansiedade, não a tua paz.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 78

terça-feira, 5 de abril de 2011

«Combater com um companheiro ao lado é mais belo do que combater sozinho: encoraja e conforta. E o sentimento de ter um inimigo e o de ter um amigo fundem-se no mesmo calor.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 59/60

domingo, 3 de abril de 2011

«(...) O vale abria-se, estriado pelos férteis campos de aveio e sebes dos medronheiros, onde o vento corria em grandes rajadas, carregadas de pólen e de borboletas. No céu flutuava a espuma das nuvens brancas.»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 41
« - Dai-lhe uma gamela de sopa! - disse, clemente, Carlos Magno.
    Com caretas, contorções e propósitos incoerentes, Gurdulú retirou-se para comer, debaixo de uma árvore.
    - Mas que faz ele, agora?
     Estava procurando meter a cabeça dentro da gamela, pousada no chão, como se quisesse entrar dentro dela. O bom jardineiro aproximou-se e puxou-o por um ombro: - Quando é que compreenderás, Martinzúl, que és tu que deves comer a sopa, e não a sopa te comer? Não te lembras? Deves levá-la à boca com a colher.
    Gurdulú começou a meter colheradas na boca, com avidez. Utilizava a colher com tanta fúria que, às vezes, errava o alvo. No tronco da árvore, sob a qual estava sentado, abria-se uma cavidade, mesmo à altura da sua cabeça. Gurdulú pôs-se a deitar colheradas de sopa no buraco do tronco.
 -Aquela não é a tua boca! É a árvore - disse o jardineiro.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 40

sábado, 2 de abril de 2011

Tenho notado que, por todo o lado, os seus nomes mudam conforme as estações. Dir-se-ia que todos estes nomes passam por ele, sem nunca conseguirem fixar-se. É-lhe indiferente o nome que lhe dêem. Chamaste-lo e ele julgou que chamaste uma cabra: direi «queijo» ou «torrente» e ele responderá: «Estou aqui!»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 38
«Ele, Agilulfo, tinha sempre necessidade de sentir perante si as coisas como um espesso muro, ao qual contrapunha a força da sua vontade. Só assim conseguia manter uma segura consciência de si mesmo. Se, pelo contrário, o mundo que o envolvia se espumava, se tornava incerto, ambíguo, então também ele se sentia imergir na doce penumbra, e não conseguia mais fazer brotar, deste vazio, um pensamento distinto, um movimento voluntário, uma ideia fixa. Sentia-se mal: eram aqueles os momentos que tinha a sensação de que ia desaparecer. Só às custas de um supremo esforço conseguia não se dissolver. Então punha-se a contar: folhas, pedras, lanças, pinhas, qualquer coisa que estivesse à sua frente; ou a pô-las em fila, a ordená-las em quadrados ou em pirâmides. Aplicar-se a estas observações meticulosas permitia-lhe vencer o mal-estar, dominar a insatisfação, o marasmo, e encontrar a lucidez e a compostura habituais.
      Assim o viu Rambaldo: com gestos medidos e rápidos, dispunha as pinhas em triângulo e somava com obstinação as pinhas dos quadrados dos catetos, confrontando-as com as do quadrado da hipotenusa. Rambaldo compreendia que tudo se processava segundo rituais, convenções, protocolos, e, debaixo disto, o que é que havia, afinal de contas? Sentia-se tomado por uma angústia indefinida, sabendo-se fora de todas estas regras do jogo...Mas então, também o querer vingar a morte de seu pai, o ardor de combater, de se alistar, entre os guerreiros de Carlos Magno, não seriam mais do que um ritual, para não desaparecer no nada? Um pouco como o tirar-e-pôr das pinhas do cavaleiro Agilulfo? Oprimido pela perturbação de tão inesperadas perguntas, o jovem Rambaldo deitou-se no chão e começou a chorar.
     Sentiu qualquer coisa pousar-lhe nos cabelos, uma mão, uma mão de ferro mas leve. Agilulfo estava de joelhos diante dele.
      -Que tens, rapaz? Porque choras?
      Os estados de depressão, de desespero ou de furor nos outros seres humanos davam imediatamente a Agilulfo uma calma e uma segurança perfeita. O sentir-se imune à depressão e à angústia, a que estavam sujeitas as pessoas existentes, levaram-no a tomar uma atitude superior e protectora.
      -Perdoai-me - disse Rambaldo -, é sem dúvida fadiga. Em toda a noite não consegui fechar os olhos e agora encontro-me desorientado. Pudesse ao menos dormir um pouco...Mas agora é dia. E vós que tendes velado, como fazeis?
      -Eu ficaria perdido se adormecesse, nem que fosse por um momento - disse docemente Agilulfo -, não estaria mais em lado nenhum, perder-me-ia para sempre. Por isso eu passo bem acordado cada minuto do dia e da noite.
      -Deve ser mau...
       -Não! - A voz tornou-se seca e dura.
       -E a vossa armadura? Nunca a tirais de cima de vós?
       Tornou a murmurar:
       -Não tem nada dentro. Tirar ou pôr, para mim, não tem sentido.
        Rambaldo levantara a cabeça e olhava pela abertura da viseira, como se procurasse, naquela escuridão, a centelha de um olhar.
       - E como pode ser?
       - E como pode ser de outra maneira?
        A mão de ferro da armadura branca estava pousada ainda sobre os cabelos do jovem. Rambaldo sentia-a sobre a sua cabeça, apenas como uma coisa, sem lhe comunicar qualquer calor humano, consolador ou importuno que fosse. No entanto, sentia como se lhe propagasse uma tensa obstinação.»



Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 27-30

«Aquele é um cavaleiro que não existe.»

« - Mas como não existe? Eu ouvio-o. Existia.
   - O que é que viste? Ferragens...É alguém que existe sem existir, compreendes miúdo?»


Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 24

sexta-feira, 1 de abril de 2011

            «...De vez em quando, Agilulfo parava perplexo sem saber se devia comportar-se como quem, só pela sua presença, sabe impor o respeito pela disciplina, ou como quem, encontrando-se onde nada tem a fazer, recua, discreto, e toma um ar ausente. Nesta incerteza detinha-se pensativo e não conseguia tomar nem um nem outro partido. Só sentia que se tornava fastidioso e teria feito qualquer coisa para estabelecer relações com os seus próximos, como por exemplo, pôr-se a gritar ordens; injúrias dignas de um cabo, ou então dizer palavrões e zombar como à mesa de uma taberna. Em vez disso murmurava palavras de saudação ininteligíveis, com uma timidez mascarada de soberba, ou um orgulho moderado pela timidez, e passava adiante. Mas sempre que lhe parecia que os outros lhe dirigiam a palavra, voltava-se e dizia apenas; «Eh?», mas depois convencia-se logo que não era com ele que estavam a falar e ia-se embora como se fugisse.»
 
 
Italo Calvino. O Cavaleiro Inexistente. Tradução de Fernanda Ribeiro. Editorial Teorema, Lisboa, 1998. p. 17/8
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