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sábado, 24 de fevereiro de 2018

«O problema central da filosofia é a filosofia que a si própria se põe como problema.» Por que precisamos de filosofia?

A ideia fundamental do ser, ou da realidade, ou da verdade, eis o que procuramos na Filosofia. A Filosofia é a demanda do ser. O que é o Ser, o que é a realidade? Este é o problema da filosofia»

(PESSOA, F., 1908: 52).

Pessoa-filósofo

«Eu era um poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas. Eu adorava admirar a beleza das coisas, delinear – imperceptivelmente através do assombrosamente pequeno - a alma poética do universo.

A poesia está em tudo – no mar e na terra, no lago e na margem do rio. Está na cidade também – não o neguem – isto é evidente para mim, aqui sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no ruído dos carros nas ruas, em cada minuto, cada momento comum, no movimento ridículo do trabalhador, que, no lado oposto da rua pinta a placa do talho.»

 (PESSOA; F., 1906: 22)8
«Tenho de ler mais poesia, de modo a neutralizar um pouco o efeito da filosofia pura»

 (PESSOA, F., 1906: 32)

domingo, 7 de janeiro de 2018

É talvez o último dia da minha vida.
 Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

 (Pessoa)
Sou um universo morto que medita.

 Fernando Pessoa

domingo, 20 de agosto de 2017

Poema de canção sobre a esperança
I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
17-6-1929
Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. – 106.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

"Há um cansaço da inteligência abstracta e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo nem inquieta como o cansaço pela emoção. É um peso da consciência o mundo, um não poder respirar com a alma."

Fernando Pessoa

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A MORTE DO PRÍNCIPE


[PRÍNCIPE] – Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos génios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjectivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de acção; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas, quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns (e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objectivo de dentro que o indefine (dissolve) e determina.
Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade.
E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou advinhar — seremos nós mais que elas onde a vida é vida?
Quando eu era menino beijava-me nos espelhos: era um sinal antecipado de que nunca haveria de amar. Tinha por mim, em adivinha de negação, a ternura que me nunca haveria de ser dada.
Por que não será tudo uma verdade inteiramente diferente, sem deuses, nem homens, nem razões? Por que não será tudo qualquer coisa que não podemos sequer conceber, que não concebemos — um mistério de outro mundo inteiramente? Por que não seremos nós — homens, deuses, e mundo — sonhos que alguém sonha, pensamentos que alguém pensa, postos fora sempre do que existe? E por que não será esse alguém que sonha ou pensa alguém que nem sonha nem pensa, súbdito ele mesmo do abismo e da ficção? Por que não será tudo outra-cousa, e cousa nenhuma, e o que não é a única cousa que existe? Em que parte estou que vejo isto como cousa que pode ser? Em que ponte passo que por baixo de mim, que estou tão alto, estão as luzes de todas as cidades do mundo e do outro mundo, e as nuvens das verdades desfeitas que pairam acima e a elas todas buscam, como se buscassem o que se pode cingir?
Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e os rios ao longe, e montanhas... Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou ficar, e de onde estar e de que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra cousa que estou a ver se vejo.
Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora que estou entre o que não fui e o que não serei?
P[RÍNCIPE] – Senta-te ali, aos pés da cama aonde eu quase que te não veja, e fala-me de cousas impossíveis...
Vou morrer.
X – Não, meu Senhor...
P[RÍNCIPE] – Sim, vou... Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz... Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as cousas que se cansam de eu as ver... Começo a morrer nas cousas... O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito… Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer (sic) noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.
X – Isso é belo de mais para que possais estar perto da morte...
P[RÍNCIPE] – É belo demais para que possa lembrar à vida... A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira... As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem-me extraordinariamente nítidas, evidentes de mais... A seda dos cortinados deste leito é uma outra espécie de seda... Afundo-me pouco a pouco... Não te entristeças... Eu era real de mais para poder reinar algum dia... O único trono que mereço é a morte... Não dizes nada?
X – Senhor, não morrereis...
P[RÍNCIPE] – Sinto um ruído qualquer... Ah, como parece ser o arranjarem-me as vestes para a minha coroação no meu melhor Reino!... Sinto tinir espadas e isso lembra-me o ver cair neve... Lembras-te de antigamente?... Eu era muito pequeno, e quando o silêncio da neve descia sobre a terra, íamo-nos sentar para a lareira do castelo a falar nas cousas que nunca aconteceriam... Quantas princesas amei no futuro que nunca tive!... Lembras-te — não te lembras? — de como eu ficava cansado pelos combates em que nunca havia de entrar...
X – Para vós, Senhor, só havia na vida amanhã. ..
P[RÍNCIPE] – Talvez porque o meu corpo sabia que eu teria que morrer cedo... Mas não era amanhã nunca para mim, era sempre depois de amanhã... Eu sonhava sempre com um futuro que estava sempre um pouco ao lado do futuro que teria...
X – Às vezes eu contava histórias de fadas...
P[RÍNCIPE] – Sim... Eram todas diferentes... Na minha terra toda a gente é igual... Cansa tanto olhar para gente!... Nas festas do palácio havia sempre grupos que segredavam do meu silêncio... Eu via-lho nos olhos... Eu ficava a um canto, sempre não vendo aquilo para que olhava... Via sempre coisas diferentes daqueles entre quem eu estava... Nas salas do palácio, os meus olhos estavam nos bosques e a minha ânsia de estender os braços com a frescura das ervas e a maciez das pétalas e a paisagem das fontes... (...) Eu nunca fui feliz... Quando, nas ameias do meu novo castelo, eu olhar debruçado a confusão pequenina do mundo, eu serei feliz completamente... Talvez nem mesmo assim seja feliz... Mas [sei d'alma] que todo o meu encanto seria estar aonde não estou para de lá poder desejar onde estar...
X – Não serão todos assim?
P[RÍNCIPE] – Quem são todos? Para mim todos são só um... Eu nunca conheci ninguém. Distinguia as pessoas como quem distingue pedras... Nunca me deram a impressão de serem reais, especialmente quando falavam... Diziam todas as mesmas cousas, todas tinham amores e ódios, alegrias e dores, ânsias e cansaços... Se alguma me falava de qualquer cousa, eu, se fechava os olhos, tinha sempre diante de mim o Homem. Não, há em toda a gente uma só pessoa que não existe... Que vago... Que vago...
X – Vago, o quê, meu senhor?
P[RÍNCIPE] – Tudo... O horizonte está muito longe, muito longe... Ainda assim… não sei... não está... Sinto-o muito mais longe, mas não o vejo muito mais longe... Não sei bem o que vejo ou o que sinto... Talvez que as minhas sensações é que me sintam a mim... Parece-me que as cousas é que me sentem e que eu não existo senão porque as cousas me vêem e me sentem... Era bom se assim fosse... Não sei por que seria bom... Talvez por ser outra cousa... Como os reposteiros são estranhos...
X – Estranhos? estranhos, meu senhor?
P[RÍNCIPE] – Demasiadamente ali... Tenho vontade de ter medo de os estar vendo assim... Que estranho, que estranho tudo!... A janela é uma cousa muito outra! Parece saber que vêem através dela... Parece ver também... Parece que ela é que vê as cousas que nós vemos por ela. . . E a almofada, a almofada?
X – Que almofada, senhor? Essa. . .? Não a podeis ver. . .
P[RÍNCIPE] – Esta, esta... Não sei se a vejo... É enorme... Tem toda a extensão da vida!... Mergulho nela como num mar de [sombras juntas] que ainda na minha carne saibam a sonhos... As minhas mãos, ao tocar nas roupas do meu leito, sentem-lhes cousas que antes não lhes poderiam sentir, significações seguras, frescuras, renúncias tímidas de linho... Ah, mas que estranho! mas que estranho! Não sei bem onde estás... As cousas em torno a mim são de tamanhos que não deviam ter... O meu leito é imenso como o repouso de um mendigo... As minhas mãos têm um fulgor a incertas... Como que vejo por dentro os perfis e os contornos das cousas... Não te sei dizer o que sinto... Não te sei dizer o que sinto... Todas as cousas tomam aspectos atentos... Todas as coisas se tornam heráldicas de mistério... Já não há cores... Já não há cores... Ah! o que é isto que as cores são agora?... O que é isto... Não são elas... São sonhos de outras cousas... São aproximações de cousas que vão a chegar à terra do espaço... Devo ter muito medo... Devo ter muito medo...
X – Aquietai-vos, Senhor, aquietai-vos. Heis-de viver... Este fim de dia é tão belo que não pode morrer alguém nele... Vede como os restos do sol são roxos e cinzentos no ocidente! Deveis viver, para viver... Espera-vos o amor e a lida...
P[RÍNCIPE] – Nunca agi certo.
X – Senhor, não penseis nisso...
P[RÍNCIPE] – Tratai-me antes de Senhora... Sou uma princesa de quem se esqueceram quando buscaram rainha... Ah que horror, que horror!
X – Que tendes, Senhor? que tendes?
P[RÍNCIPE] – Oh como tudo está mais estranho ainda! Não há já formas –– oh meu Deus, oh meu Deus — não há já formas... Transbordaram as cousas umas para dentro das outras... No ar há só restos de linhas... Tudo é um fumo de lugares... Poeira, poeira... tudo em poeira... (...) Tudo é cinza de tudo... Tudo é cinza de tudo... Há em mim labirintos de não poder ver... A janela? onde está a janela... É uma coisa que brilha extraordinariamente mas em parte nenhuma do espaço... Tudo é cinzas de um fumo... (...) Onde estás tu? onde estás tu?
X – Aqui, Senhor, aqui!...
P[RÍNCIPE] – Não sei se te não vejo... Não sei o que é que vejo... Já não há cousa nenhuma... (Numa voz lenta e calma) O que é isto tudo? Não sei de que lado está a vida... O espaço está ao contrário… Não me sinto eu no meu mundo... Que estranho! que estranho! Onde é que está dando horas por dentro?... (...) Ah, vejo, vejo... Vejo agora! Vejo agora!
X – Que vedes, Senhor, que vedes? Acalmai, acalmai! Que vedes?
P[RÍNCIPE] – Vejo, vejo... Vejo através das cousas... As cousas escondiam... As cousas não eram senão um véu... Ergue-se o pano, ergue-se o pano do teatro... Tenho medo, tenho medo... Ah vejo, vejo enfim... Vejo enfim tudo... Olhai... Olhai... Agora vejo... Vejo as cousas reais, vejo as cousas que existem... Vede que surgem... (...) Vejo através das cousas como através dos meus olhos... As cidades sonhadas é que eram... reais... As cousas são apenas a visão trémula delas reflectidas nas águas do meu olhar... Só o que nunca se tornou real é que existe realmente... O que acontece é o que Deus deita fora... O que parece não é real, é as costas das mãos de Deus, a Sombra dos seus gestos... As princesas que eu sonhei é que existem... As da terra são apenas as bonecas com que as outras brincam, vestindo-as, corpo e alma, a seu modo...
P[RÍNCIPE] – No além, floresço em corpo e para fora numa roseira com rosas brancas, e para dentro e em alma num outro universo, meu — numa outra paisagem minha. O corpo da minha vida real é uma roseira branca no Além; a alma da minha vida real é um universo interior no Além, um universo de dentro com montes com o perfil da minha ânsia, prados da extensão dos meus desejos.
P[RÍNCIPE] – Oh que horror, que inesperado horror! Que complexo! que complexo! Sou a mesma roseira, mas estou vendo para dentro de mim... Tenho um reino, reino externo que sou eu além, tenho um universo meu — uma terra, uns céus... Vede... vede quem eu sou! Sinto-me roseira no escuro, mas olhando para dentro de mim vejo paisagens... Que paisagens amontoadas... Que contornos vagos! Que mistério estranho! Cada cousa é um universo para dentro... cada cousa no além é um universo perfeito olhando do seu corpo para a sua alma... Oh! Oh! já me não vejo. Sinto-me roseira toda perfumada... o corpo da minha realidade no além é uma roseira, que sinto mas não vejo... Os meus olhos esvaíram-se para a alma... Floriram para dentro as melhores flores do meu ser do além!...
X – Senhor! Senhor! Senhor! Já nem sequer me amas, já nem sequer me amas!
P[RÍNCIPE] – Que paisagem é esta que é uma roseira branca nas noites do além! Que (...) montes! que linha estranha que têm estes montes! Que vales tão aluindo-se.
P[RÍNCIPE] – Qual foi aquela batalha em que eu ia na frente dos meus corcéis, de pluma branca ondeando ao vento.
X – Não houve essa batalha, senhor. Não entraste nunca em combate...
P[RÍNCIPE] – Então por que me recordo tão bem disso? Eu ia indo e, não sei como, via-me longe. Eu era belo como não pode ser. A batalha durou muito tempo em que não se via nada. Ah, então essa foi uma derrota, uma derrota... Pobre de mim, que até os meus exércitos na guerra não podem vencer nem regressar...
P[RÍNCIPE] – É tudo as paredes de um grande poço a que não vejo o fundo... Que fundo, oh que fundo! De que lado é que é o negro? Aonde é por cima e por baixo? onde é que está o lugar onde eu estou? Ah, não sei onde está o espaço... Está tudo errado, tudo vazio de dentro para fora.. Não tenho esquerda nem direita... Nem há lado nem posição.. Ah, o que é isto tudo, o que é isto tudo? Tenho medo (...) Fecha-me na vida... Não me deixes sair da vida... Isto aqui é tão estranho!
P[RÍNCIPE] – O silêncio das cousas faz-me gestos que me apavoram. Onde estão as cousas... Já não há cousas... É tudo negro, tudo negro… Não, Não… … tudo como se fosse negro. São gente… Ah, vede, vede... são figuras que passam... Não há cousas, há gente. Sobem dos abismos como exalações... Já não há cima nem baixo nas cousas.
Tudo é já Diverso — mesmo o modo de se ser diverso.
X – Vede, senhor, vede, estais melhor... Já vedes cousas e antes víeis só sonhos.
P[RÍNCIPE] – Não, não... Passei atrás de Deus para o outro lado da ilusão... (...) Agora ouço-te: és uma figura num sonho... Amo-te com compaixão porque te julgas real... A tua alma e o teu corpo são uma só coisa, mal sabes tu o que eles te encobrem...
X – Acalmai-vos, senhor... Acostai-vos no leito... Tudo isso é sonho... Amanhã estareis melhor.
P[RÍNCIPE] – (numa voz calma e lenta) Ouço um ruído de fonte,.. Que grande noite! Que grande paz cabe no haver esta noite... É outra espécie de noite... É a própria paz... Mas que lugar tão estranho... Todo fresco de tanto abismo... Por onde é que eu vou andando?...
X – Não andais, senhor...
P[RÍNCIPE] – Ouvi um ruído qualquer... Que grande paisagem de abismos... (...) No fundo de um desses abismos deve estar (...) Que calma espera nos contornos invisíveis dos rochedos? Que sossego se abisma nas profundezas!... Já estou esquecido de novo... Para onde vamos nós? Não ouço caminhar... É como se estivesse a dormir enfim... Cada passo é sereno (...), cada passo é calmo como ter já chegado.. . Como estou calmo. Vai raiar a aurora. . .
X – Anoitece, meu senhor, anoitece...
P[RÍNCIPE] – Vede, vede... Os exércitos que eu comandei... os cavaleiros do meu séquito... vencedores ao longe... vencedores ao longe... todos eles sou eu... Vede, vede... chegam ao castelo... Que grande castelo todo do poente! Chegam ao castelo... Ah, o que é isto? Como tudo se alarga! Como tudo se aviva... Ah! o castelo está em chamas, está em chamas! Assim é que ele devia estar... assim... assim... Ondeia em chamas, alastra-se no fumo... é maior ardendo, é mais antigo ardendo... é mais meu ardendo... Cresce tudo, cresce tudo... Que deslumbramento... Há fogo nas eiras... Há fogo nas eiras... Os pinheirais estão em chama... O céu é um mar imenso em marés furiosas de fogo... Tudo transborda lume... Queima-se em mim todo o universo... Arde todo ali fora… no lume cresceu tudo para dentro... Tudo floresceu em chamas...
Vejo de mais... Há cousas a mais no espaço... Há cousas de mais em cada cousa... Há muito em tudo... Está tudo errado, pra mais... Já vai mudar tudo... O fogo é já de outra cor... Ah... tudo é negro... tudo é negro... tudo é negro outra vez... Há ruídos de grandes quedas; há choques de exércitos na noite... Ninguém sabe se vence... Tropéis de cavalos no longe... Onde está o mundo? Onde está o mundo? onde há cousas? onde há cousas? onde há cousas?
X – Meu senhor, meu senhor...
P[RÍNCIPE] – Já não sei nada... (...) Fala-me... Fala-me... Fala-me... De que lado da minha alma é que soa a tua voz?
s.d.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
 - 222.

1ª publ. in Fernando Pessoa et le Drame Symboliste. Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977

sábado, 5 de novembro de 2016

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

PREFÁCIO - Não encontro dificuldade em definir-me...

PREFÁCIO - Não encontro dificuldade em definir-me...

PREFÁCIO (aproveitar para Shakespeare )
Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso — são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder. Agradava-me a passividade. De actividade, só me aprazia o bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar. Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu—completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.
s.d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
  - 27.

UM CASO DE MEDIUNIDADE


(Contribuição para o estudo da actividade subconsciente do espírito)
1. Como se induziu a mediunidade.
a) Base histérica ou histero-neurasténica (averiguar e analisar os característicos psíquicos dessas nevroses, determinar em que se relacionam com os fenómenos típicos da chamada «mediunidade» — em parte aqui, em parte em outra secção deste estudo).
b) Auto-sugestão progressiva pelo estabelecimento de uma (pelo menos relativa, mas eficazmente activa) crença na realidade espírita destes fenómenos pela leitura de obras de ocultismo e de teosofia.
c ) Elementos de sugestão, colhidos em conversa, prolongamento dos anteriores, e somando-se com
d) Elementos de sugestão hipnótica ou simili-hipnótica (a mediunidade começou a seguir a uma leve hipnose). e) O estado de depressão produzido por: 1) desgostos e perturbações várias, 2) a própria perturbação mental causada pelo aparecimento dos fenómenos mediúnicos, tanto por esse aparecimento, como pelo conteúdo das chamadas «comunicações», e 3) o conflito entre tudo isto e o basilar e normal espírito de lucidez, lógica e necessidade de precisão científicas, cepticismo filosófico e tendência para a análise raciocinada.
f) Os estímulos mentais — curiosidade quanto ao futuro, ânsia de conhecer, etc. — normalmente humanos, primeiramente suscitados por estudos astrológicos, e depois agravados pela própria presença dos factos antecedentemente descritos.
2. Progresso da mediunidade. (Marcha da doença?)
a) Declaração amorfa da escrita automática, imperfeita e desconexa (a seguir, como se disse, a uma leve hipnose, e relacionada com ela por o primeiro nome escrito, etc.).
b) Aparecimento de fenómenos de ligeira visão com aumento de fixação retiniana de imagens e uma presumida capacidade de ver a chamada «aura etérica».
c ) Aparecimento da escrita automática desenvolvidamente e depois com uma pretensa comunicação de diversos espíritos, sem resposta a perguntas, etc. (seguiu-se a escrever uma extensa carta sobre o assunto, q.n.)
d) Aparecimento (a seguir a assistência aos fenómenos interpretativos da cartomancia) de uma mímica mediúnica, sobretudo relevada na segunda sessão de cartomancia a que assistiu.
3. Concomitantes psíquicas da mediunidade.
a) Desaparecimento (salvo raras intermitências) da acção contínua e lúcida das faculdades superiores do espírito — aumento da dispersão mental, fraqueza de vontade (e de inibição sobretudo) agravada, gradual substituição das faculdades do sonho às de relação com a realidade concreta (mundo exterior} e abstracta (lógica e espírito científico).
b) Desvio inferiorizante das faculdades de imaginação, tendendo a imagem visual para substituir a ideia abstracta (como na semi-sonolência e nos cérebros inferiores — FF).
c) Enfraquecimento da sensibilidade sã e da sociabilidade, com um concomitante aumento da sensibilidade estéril e introspectiva, uma incapacidade crescente para medir a importância dos factos, um apagamento da afectividade, um acréscimo do egoísmo e da indiferença.
d) Aumento dos desvios ideativos e sentimentais característicos do temperamento, e suscitamento de outros (porventura latentes, mas, em todo o caso, normalmente de fraquíssima substância); acréscimo da irritabilidade e da excitação nervosa.
e) Debilitação física e perturbações funcionais do organismo físico.
4. Análise das chamadas «comunicações» mediúnicas.
a) Os romances do subconsciente: as comunicações não passam em geral de um produto inferior e estéril de 1) a actividade imaginadora e baixa do subconsciente funcionando, como quando durante o sono, liberto do controlo do consciente, 2) a actividade do subconsciente no que resíduo de elementos do consciente, trabalhando como que em imitação deste, 3) a actividade memoriada do subconsciente, reproduzindo elementos gravados que o consciente não atinge.
b) Ausência de elementos estranhos ao conhecimento do indivíduo. Onde parece havê-los 1) verifica-se que há erro, sendo puramente romance os «factos» apresentados (caso de Margaret Mansel); 2) verifica-se que são factos gravados na memória subconsciente, que o consciente esqueceu que lera ou presenciara; 3) verifica-se que representam previsões tiradas por uma espécie de raciocínio mais rápido e mais hábil que o consciente; 4) verifica-se que........(cabe aqui analisar os factos de previsões que se realizam. Muitas vezes estes casos não são tantos que se não possam explicar por mera coincidência, sendo imensamente maior o número dos que não se realizam; outras vezes, quando a precisão seja tal que um facto baste para ser estranho, verifica-se que há fraude; outras vezes ainda, e estas são as que restam, dando de barato que haja legitimidade nos factos, cumpre averiguar que modalidade especial tem o subconsciente como subconsciente 8 para atingir ccrtos detalhes distantes e certos detalhes futuros, observando-se sempre que esses fenómenos — serem verdadeiros — são em geral, senão sempre, dados em pessoas não só doentes — o que pouco importaria, pois teríamos que averiguar o que é a doença — mas absolutamente inferiores, mental e moralmente.
c) Ausência de ideação superior é a do medium. A expressão estilística e filosófica é a do medium, e quando não o seja, basta procurar entre os presentes ou os sugestionadores quem possa haver induzido essa ideação por sugestão. Não há caso de ideação superior em medium desacompanhado de indivíduos superiores. (Notar, em todo o caso, que a circunstância de o delírio ser frequentemente acima do nível mental do indivíduo, é característico da grande histeria — V. Richer «L’hystéro-épilepsie»).
e) As contradições e contrariedades das comunicações resultam 1) das contradições no carácter do médium, 2) da crítica do consciente ao subconsciente ao emitir esses «comunicados», 3) das sugestões múltiplas recebidas.
f ) Em momentos especiais de cansaço há elementos emanados de sugestões alheias (alcance destas sugestões).
g) Lógica da profecia — 1) ou se profetiza segundo o que se quer ou se julga bom, ou 2) segundo o que — bom ou mau — se afigura provável (como por critério astrológico), ou 3) por uma reacção do subconsciente, resultante da dúvida do consciente, se profetiza em desarmonia, por vezes subtil, com o que se disse e de que se duvidou.
h) Os elementos aparentemente inexplicáveis — 1) e.g. — a construção de horóscopos, 2) n° 406, (...)
i) A intromissão do consciente no subconsciente (o mediunismo em flagrante delito): 1) a falseação dos relatos, 2) o cálculo intrometido entre resposta e resposta nas comunicações, 3) a acção do consciente no sentido de colaborar com o inconsciente (solução das iniciais, etc.).
5. Conclusões.
a) A mediunidade resulta de um desequilíbrio mental, análogo ao produzido pelo alcoolismo, sendo muitas vezes o estado podrómico da loucura declarada. (Casos)
b) O subconsciente tem faculdades de ordem diferente do consciente, mais afinadas em certos pontos, mas absolutamente inferiores, e que, quando aplicadas nestes casos, se desviam do seu fim original, que é a conservação do organismo.
c) Nada, até hoje, prova a presença de espíritos comunicantes, sendo para isso se provar preciso demonstrar primeiro que nas faculdades, ainda mal estudadas, do subconsciente, não cabe elaborar todos os fenómenos a que se chama de mediunidade.
d) A mediunidade é um estado mórbido participante daqueles que produzem de um lado a loucura, do outro o crime. O crime, a loucura o suicídio são os aboutissements inevitáveis da autointoxicação mediúnica. Quando se não chegue a tanto, chega-se à loucura moral, à perversão sexual, e à incapacidade para a vida social pela absoluta desagregação dos instintos sociais, sem uma correspondente compensação social, como no génio e no talento, onde a amoralidade é frequente, mas onde o serem génio e talento compensam a falha.
e) Análogos ao do espiritismo contemporâneo temos no passado as epidemias dançantes da idade média e os outros fenómenos estudados por Richer nos apêndices do seu livro sobre a Grande Histeria.
f) O espiritismo tende, sem compensação alguma, a atacar o espírito científico: nem a arte, nem a moral, nem a própria religião ganham com isso. A arte não se faz pelo subconsciente em liberdade, mas pelo subconsciente dominado. A moral não se faz com a perda da inibição e a anulação da vontade, que são as primeiras necessidades da moral. A religião não pode assentar no desenvolvimento do egoísmo, nem na quebra dos laços sociais.
g) O espiritismo devia ser proibido por lei, pela mesma razão que as publicações obscenas e os espectáculos tendentes a suscitar nos cérebros fracos o vício e o crime. (?).
h) Para bem da civilização grega que é a nossa, embora disfarçada, devemos renunciar a esses elementos índios, persas, e de outras raças de civilização inferior que pelo cultivo constante das faculdades inferiores, tendem a destruir, no indivíduo, a supremacia da razão, na espécie o instinto gregário, na civilização actual a sua base de ciência e arte que herdámos da nossa mãe comum, a Grécia.
i) Quando muito, os fenómenos do ocultismo e do espiritismo deviam ser, como na antiguidade, pertença de uma seita restrita, e não lançados pela sociedade dentro, como se fossem para toda a gente.
j) A força criadora do Universo deu-nos, através dos sentidos (talvez limitados) que nos concedeu, a realidade exterior como tipo de Realidade, e o nosso espírito apenas como perceptor dessa Realidade. Sair daqui é violar as leis fundamentais da Natureza e de Deus. O que Deus fez oculto (se Deus fez alguma cousa oculta) é para se conservar oculto. Se não, ele tê-lo-ia feito claro.
k) O actual movimento ocultista resulta a) da desagregação do cristianismo, que luta, a todo o transe, para se conservar sob todas as formas que lhe apareçam, b) da nossa civilização internacional que tornou possível aos elementos emanantes de civilizações como as da Índia e da China de chegarem até nós, c) da incapacidade de uma geração neurastenizada pela rapidez excessiva do progresso moderno, industrial, cultural e científico, em se adaptar de pronto ao tipo de mentalidade que é necessário que corresponda às ideias-fontes desse progresso.
Græcia Mater, dirige-nos !
s.d.
Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977.
  - 505.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades...

Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades que são negativas para fins de influir, de qualquer modo que seja, na generalidade de um ambiente social. Sou, em primeiro lugar, um raciocinador, e, o que é pior, um raciocinador minucioso e analítico. Ora o público não é capaz de seguir um raciocínio, e o público não é capaz de prestar atenção a uma análise. Sou, em segundo lugar, um analisador que busca, quanto em si cabe, descobrir a verdade. Ora o público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrade. Acresce que a verdade — em tudo, e mormente em coisas sociais — é sempre complexa. Ora o público não compreende ideias complexas. É preciso dar-lhe só ideias simples, generalidades vagas, isto é, mentiras, ainda que partindo de verdades; pois dar como simples o que é complexo, dar sem distinção o que cumpre distinguir, ser geral onde importa particularizar, para definir, e ser vago em matéria onde o que vale é a precisão — tudo isto importa em mentir.
Sou, em terceiro lugar, e por isso mesmo que busco a verdade, tão imparcial quanto em mim cabe ser. Ora o público, movido intimamente por sentimentos e não por ideias, é organicamente parcial. Não só portanto lhe desagrada ou não interessa, por estranho à sua índole, o mesmo tom da imparcialidade, mas ainda mais o agrava o que de concessões, de restrições, de distinções é preciso usar para ser imparcial. Entre nós, por exemplo, e em a maioria dos povos do sul de Europa, ou se é católico, ou se é anti-católico, ou se é indiferente ao catolicismo, porque a tudo. Se eu, portanto, fizesse um estudo sobre o catolicismo, onde forçosamente teria que dizer mal e bem, que apontar vantagens misturadas com desvantagens, que indicar defeitos aliviados por virtudes, que me sucederia? Não me escutariam os católicos, que não aceitariam o que eu dissesse de mal do catolicismo. Não me escutariam os anti-católicos, que não aceitariam o que eu lhes dissesse de bem. Não me escutariam os indiferentes, para quem todo o assunto não passaria de uma maçadoria ilegível. Assim resultaria inútil esse meu estudo, por cuidado e escrupuloso que fosse — direi, até, tanto mais inútil, porque tanto menos aceitável ao público, quanto mais fosse cuidado e escrupuloso. Seria, quando muito, apreciado por um ou outro indivíduo de índole semelhante à minha, raciocinador sem tradições nem ideais, analisador sem preconceitos, liberal porque liberto e não porque servo da ideia inaplicada da liberdade. A esse, porém, que teria eu que ensinar? Quando muito, certas coisas particulares sobre o catolicismo, na hipótese que me serviu de exemplo, e no caso de lhe ser a ele estranho o assunto. E se a ele, perscrutador cultural como eu, o assunto é estranho, é que nunca o interessou; se nunca o interessou, para que vai ler o que escrevi sobre ele?
De aqui parece dever concluir-se que um estudo raciocinado, imparcial, cientificamente conduzido, de qualquer assunto é um trabalho socialmente inútil. Assim de facto é. É, quando muito, uma obra de arte, e mais nada. Vox et preterea nihil.
As sociedades são conduzidas por agitadores de sentimentos, não por agitadores de ideias. Nenhum filósofo fez caminho senão porque serviu, em todo ou em parte, uma religião, uma política ou outro qualquer modo social do sentimento.
Se a obra de investigação, em matéria social, é portanto socialmente inútil, salvo como arte e no que contiver de arte, mais vale empregar o que em nós haja de esforço em fazer arte, do que em fazer meia-arte.
Reconhecendo que todas as doutrinas são defensáveis, e que valem, não por o que valem, senão pela valia do defensor, concentrar-nos-emos mais na literatura das defensivas do que no assunto delas. Faremos contos intelectuais onde, pelo primeiro e imprudente impulso, faríamos estudos científicos. Ser-nos-á indiferente a verdade da ideia: em si mesma; não é mais que a matéria para um belo argumento, para as elegâncias e as astúcias da subtileza.
Timbraremos, por um movimento idêntico em sentido inverso, em mostrar a parvoíce das ideias aceites, a vileza dos ideais nobres, a ilusão de tudo quanto o povo crê ou pode crer. Salvaremos assim o princípio aristocrático, que na ordem social se afundou, deixando atrás de si o vácuo de uma universal, monótona escravidão.
Seremos dissolventes? Como dissolventes, se não temos acção sobre o público, se nos não lêem senão os que lêem arte pela arte, arte intelectual, arte feita com ideias em vez de ritmos, e esses, pequeníssimo número humano, ou estão já dissolvidos, ou são fortes, pela. inteligência e a cultura, contra toda a dissolução?
Dissolvente, socialmente, é a doutrina social do que não está. Foi dissolvente e anti-social, no sentido de prejudicar a ordem e a harmonia dos povos, o cristianismo quando o paganismo era a civilização. Foi dissolvente e anti-social a Reforma, quando a civilização de Europa era católica. Foi dissolvente e anti-social a doutrina da Revolução Francesa, quando a civilização da Europa era o Antigo Regime. São hoje dissolventes todas as doutrinas sociais que reagem contra as dessa mesma Revolução. Quem hoje prega a sindicação, o estado corporativo, a tirania social, seja fascismo ou comunismo, está dissolvendo a civilização europeia; quem defende a democracia e o liberalismo a está defendendo.
Quer isto dizer que não há doutrinas dissolventes senão por sua situação ocasional? Quer dizer isso mesmo. A mais «radical» das doutrinas, desde que seja universalmente aceite, é uma doutrina conservadora; a mais «conservadora», se nessa altura se opuser àquela, será radical.
Quer isto dizer que não há princípios fundamentais na vida das sociedades? Não quer dizer isso; quer porém dizer que, se os há, nós os não conhecemos. Não há ciência social, não sabemos como nascem, como se conservam ou não conservam, como crescem ou decrescem, como se estiolam ou morrem, as sociedades. A existência da humanidade, se por ela se entende qualquer coisa mais que a espécie animal chamada homem, é tão hipotética e racionalmente indemonstrável como a existência de Deus. Se, porém, por humanidade, se entende a espécie animal chamada homem, então existe para os biologistas, para os médicos — para todos quantos estudam, de um modo ou de outro, o corpo humano; existe como existem os peixes e as aves, e mais nada.
Que princípio social se pode erigir em fundamental? Todos e nenhum, conforme a habilidade do argumentador. Há períodos de ordem que o são de estagnação, como a longa vida morta de Bizâncio. Há-os que são «de actividade intelectual, como os da Antiga Monarquia francesa. Há períodos de desordem que são a ruína intelectual dos países em que se dão, como o Império Romano em declínio, ou a época da Revolução Francesa, propriamente dita. Há períodos de desordem fecundos em produção intelectual, como o da Renascença nas repúblicas italianas, como o que abrange o tempo de Isabel e de Cromwell em Inglaterra.
Refiro-me à produção intelectual, supondo-a uma vantagem, e, ao menos, parte da civilização. Não insisto nisso, porém, e posso aceitar a doutrina de que a cultura e a arte são um mal, de que é paz e não sonetos o que mais importa à humanidade. Mas quais são as circunstâncias que produzem a paz, quais as que a não produzem? Encontraremos as mesmas causas dando diferentes efeitos, ou, melhor, encontraremos as mesmas circunstâncias com diferentes resultados — o que quer dizer que não são causas, mas coincidências, que qualquer coisa que se considera uma vantagem social, seja uma sinfonia ou o jantar certo, pode aparecer em circunstâncias sociais diferentes, sem que saibamos nunca de onde veio a sinfonia, porque é que se conseguiu que o jantar não faltasse.
Acresce que, assim como não há ciência social, assim também não há arte social, finalidade certa da existência das sociedades. Aqui o problema, que era semelhante ao da metafísica, torna-se metafísica mesmo. Para que fim existem as sociedades? Para fazer a felicidade dos que as compõem? Não o sabemos, e o certo é que a felicidade varia de tipo de homem para homem, e há muitos que de bom grado perderiam a mulher, desde que não percam a colecção de selos. (...)
s.d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
  - 74.
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Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação.

Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.
Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana são coisas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação delas.
Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros como um tributo.
1-1917?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
  - 68.

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domingo, 25 de setembro de 2016

Fernando Pessoa

No man is normal, perfect — this is true.

No man is normal, perfect — this is true. A normal man were a man incapable of being affected by disease. For every disease (as I think) predisposition is necessary, a predisposition of the organism to disease. The degree of predisposition is the degree of abnormality. Every disease supposes predisposition to it, even as every real thing supposes its own personality, since it is real.
1910?
Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).
 - 229.
Fernando Pessoa

Personalidade supõe complexidade.

Personalidade supõe complexidade. Não há personalidade simples?
1906
Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968. 
 - 147.



Fernando Pessoa

A única realidade para mim são as minhas sensações.

A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas.
A verdade? É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha? De quê?
Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única verdade para mim, sou eu próprio. Isolar-se tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.
s.d.
Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968. 
 - 220.

quarta-feira, 20 de julho de 2016



Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o Verão quente do dia.


Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
É como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas.
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada...




Fernando Pessoa

sábado, 9 de abril de 2016

''Muitos não sabem propriamente distinguir a originalidade da excentricidade: uma caracteriza o génio, outra manifesta o louco.''
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