domingo, 23 de novembro de 2025

 Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
 
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
 
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Helder. “Se houvesse degraus na terra” in “A Faca Não Corta o Fogo” (2008)

domingo, 16 de novembro de 2025

PJ Harvey - EPK: Stories From The City, Stories From Sea


Tereza Zelenková

 

[A beleza da arte]

incognoscível

Teoremas da Incompletude

 Gödel

 Alberto Pimenta

poesia quase incompleta
fenda
1990



Sharon Van Etten - Flirted With You All My Life

Despesismo



8 de Janeiro de 1953: Sempre que me levanto para trabalhar, tenho de me reconstituir, lentamente, imagem a imagem, passo a passo, olhar a olhar … Sou o puzzle de mim próprio. E vivo ou morro (viver é morrer pouco a pouco …) com a impressão de que vou perdendo, hora a hora, pedaços desse puzzle … Um dia já nem sei como era o desenho.

Excerto de “Diário Íntimo”, inédito de António Ferro. [FAQ/04/0966]

sábado, 15 de novembro de 2025



“...quem me dera que a chuva viesse e nos diluísse um ao outro,
e pela noite corrêssemos como um regato
em direcção ao mar.”

Al Berto, O Medo

Cat Power - Let Sadness Not Be Attached To Your Name


Markéta-Luskačová. Czech-Republic
 

Lugar último

 Escrevo sobre um tema alucinante e antigo.

Esquecimento
que me lembrasse agora para sempre
como
uma roseira. Como
que escrevo assim com um grito maravilhoso
dentro da carne podre, terrivel-
mente.
Nas pancadas da boca.
— Sei cantar devagar, de pé, a enlouquecer muito.
Respirando, sangrando tanto.
Sei cantar com estrelas iradas.
Há uma elevada mulher com flores
na boca e no ânus.
Contra mim, contra minha divagação.
Penso: a flecha ama a onça.
A morte ama o que morre.
Pensei ainda pela pancada dentro: a mulher
ama o homem.
E quando apodrecias debaixo de minha luz
espantada, também pensei:
eu amo-a. Porque mexeste nos meus
nomes desde o nascimento.
Contei-te pelas pétalas coloridas,
e agora
o meu amor é puro puro louco louco.
E o que dorme dorme
do que é forte.
 
Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava.
Era uma luz molhada.
Estava ao cimo como lágrimas, estava
com folhas à tona da idade.
Passou uma delicadeza, uma mulher
que ficou.
Existiu um campo transviado.
Uma alagada adivinhação. Por cima
abruptamente
uma — pancada na noite dos órgãos.
 
A noite é não ter amor senão
em luzes.
Com uma pedra sobre a boca.
A pedra sente a boca, a solidão sente
o homem. Digo que um homem beija
interiormente a boca.
Mas era uma mulher que morria,
uma mulher que nascia agora altamente.
Um lúcido campo morto.
 
Passou, transferiu-se, reviveu
sobre a minha cabeça. Atra-
ves-
sava-a
uma flecha. Era
uma cabra silvestre uma cabra azul
uma cabra colorida
pela ira e a doçura e pela altura
saltada de uma cabra entrevista nos grandes céus
loucos.
Era caçada pelo caçador do amor.
Era com os cascos e os malmequeres. Com a delicadíssima
boca humana.
Os veios de ouro.
Era como as belas mamas brancas.
Quente como as urtigas.
Era deitada cor de violeta.
Uma mulher retumbante com todo o silêncio.
Dormia contra mim.
Ela vigiava, corria no ar.
Quebrava no ar. Era a mulher tão pura.
 
— Anos e anos de viagem sideral com os pés
iracundamente
azuis. Sou eu,
como um retrato de cabeça para baixo.
Conheci-me cantador em estado
de amante. Tive
o desviado ofício de canteiro.
Fiz uma catedral. Morri
acocorado. Eu era um amante
com ofício de poeta cego. Um dia
transformei-me na mulher que amava.
 
Em tantos anos não ignoro como os elefantes
florescem. Neste lado de agora
vejo como os cravos batem no ar que bate
na roupa que bate nas pedras.
E penso: houve uma quinta, quarta, uma
terça, uma segunda-feira, uma sexta-
-feira.
Bocados exaltados por cima.
Porta extática debaixo dos raios.
Sábado era um dia de ardente vileza.
Um domingo de amor ou de exemplo.
Eu era um amante que era uma semana
de lado:
               ou era a chuva
amada por uma misteriosa velocidade,
ou o sol que a lentidão
apaixona por dentro.
 
Eu era uma mesa com tantos anos
sentados para comer-me em estado
de pêra inclinada.
Eu fui um amante que comeu uma torre
no meio da praça. Um amante
antropófago.
Eu fui parado e unido.
Quantos anos iracundos. Cantadores.
E se a roupa molhada bate
sobre a minha cabeça, e nela se embebe
a luz penetrante — é preciso transformar-me.
Fui amante como um cão. Fui
de di-
vagação em divaga-
ção a lua lua. Eu ladrava de cima.
Eu era a baixa lua lua onde os pântanos
caíam em êxtase. Perdi
todas as mãos, e na derradeira mão
transformei-me na morte.
Batem os levíssimos nomes como pedras
no ar, mais verdes, como
crisântemos abrindo-se e depois
fechando-se. Crisântemos — digo —
virtuais. Com tantos tantos anos delicados
iracundos de todas as cores.
 
— Celebro agora os dias da sombra de onde
sagrada a loucura se lev-
antava. Quando os cantores eram tomados
pela embriaguez
soturna, e falavam
alto com as ondas à volta. E eu lembro
a entrada
desses dias retumbantes, quando alguém
entoava em sonhos as fontes
da ilusão. E a idade avançava por dentro
da aguda alegria, por dentro e a gente
gritava que era alto tão tão alto — o amor.
 
Celebro a tecelagem, as mãos som-
bria-
mente
embebidas no trabalho. E por cima
de tudo as pedras
rosas da cabeça, os cestos, as liras, o pão.
E em baixo o sangue bate acen-
den-
do e apagan-
do. E eu agora sei tudo, e esqueço
muito devagar. Também com força uma mulher
aperta
os pés sobre a minha boca. E eu pareço
pensar no ar. Pareço
dormir entre gotas frias. Ou então
também pareço vir verga-
do e louco debaixo do estuar celeste.
Nas noites onde cerrados os girassóis
esperavam a ressur-
reição. Ou nos dias levantados
sobre as melancolias mais fortes. Quando
a mulher era levada pela interior
fantasia do seu próprio encerramento.
 
Noites oh noites tantas e
tantas noites oh tantas noites seguidas
intactas, despedaçadas, regeneradas como noites
para dentro e para fora,
debaixo da chuva. Enlouquecendo.
E cantando o corpo, as voltas, os terrenos, os fetos
do corpo, e as achas aproximadas e brilhantes
do corpo humano.
 
E talvez seja este o último exemplo
de amor e a i-
memorial noite lancinante, solidão.
E eu me transmude na zona de uma idade
antiga, e Deus
fale de em mim no puro alto da carne.
E uma onda e outra onda e outra e outra
e outra
onda e onda
batem em sua belíssima deserta altíssima
voz.
 
E não sabemos escutar o barulho
Frio, nem vemos os roseirais dominados pelo silêncio,
oh nem
deliramos nos enormes inóspitos campos
de Deus.
 
 
 
Herberto Helder
poesia toda
lugar último
assírio & alvim
1996

 

The Marías - Superclean, Vol. II (full album)

Yamamoto Masao - #1140, Nakazora, n.d.
 

Teoria Sentada

 I

 
Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. Um lento
prazer de escrever, imitando
cantar. E vendo a voz disposta
nos seus sinais, revelada entre a humidade
dos corpos e a sua
glória secular. Uma dor esgota
a idade, com cravos, da minha voz.
E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida
de uma inconcebível
magnitude. Ou somente de uma
voz. Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz.
O que digo é rápido, e somente o modo
de sofrer
é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal
o que agora digo, e só
as mãos lentamente levantam o álcool
da canção e a formosura
de um tempo absorvido. Digo tudo o que é
mais fácil da vida, e o fácil
é duro e batido pela paciência.
Porque a terra dorme e acorda de uma
para outra estação.
 
Porque vi crianças alojadas nos meus
melhores instantes, e vi
pedaços celestes fulminados na minha
paixão, e vi
textos de sangue marcados desordenadamente
pelo ouro. Porque vi e vi, na saída
de um dia para o começo
da primeira noite, e no despedaçar da noite.
E porque me levantei para sorrir
e ser cândido. E porque então
estremeci com a rapidez das palavras e a quente
morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil
para dizer e eu tão
dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse:
um prazer, um pesado prazer de cantar
a vida, consome a única voz
de uma vida mais sombria e mais funda.
E eu mudo sobre este campo parado
de cravos, quando a lua
rebenta, quando
sóis e raios crescem para todos os lados do seu
fulminante país.
 
Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus
vales
o eco, e sentir a alegria de sua expressa
existência. Alguém chama por si próprio,
sobre mim, em seus terríficos confins.
E eu tremo de gosto, ardo, consumo
o pensamento, ressuscito
dons esgotados. Escrevo à minha volta,
esquecido de que é fácil, crendo
só no antigo gesto que alarga a solidão contra
a solidão do amor.
Escrevo o que bate em mim — a voz
fria, a alarmada malícia
das vozes, os ecos de alegria e a escuridão
das gargantas lascadas. Para os lados,
como se abrisse, com a doçura de um espelho
infiltrado na sombra. Fiel
como um punhal voltado para o amor
total de quem o empunha.
 
Alguém se procura dentro de meu ardor
escuro, e reconhece as noites
espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo,
e vejo as mudanças e o imóvel
sentido do meu amor, e vejo
minha boca aberta contra minha própria boca
num amargo fundo de vozes
universais.
 
Alguém procura onde eu estou só, e encontra
os cravos forte
da sua solidão. Como um campo desbaratado
e branco.
 
 
 
Herberto Helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996

Teoria sentada

 III

 
A minha idade é assim – verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas mãos fixam-se à sua volta.
 
Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.
 
Eu trabalho nas luzes antigas, em frente
das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
E uma raiz séca, canta-se
no calor. É uma idade cor de salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.
 
Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade é uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade se quebram
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
É para a frente que as águas escorregam.
 
Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite.
 
 
 
Herberto Helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996





retratíssimo ou narração de um homem depois de maio

 Retratoblíquo sentado.

Retratimensamente de/lado, no/acto

conceptual de/ver quantos vivos quantos
dando folhas sobre os mortos de topázio.
Mãosagora, veloz rosto, visão pura.
Esquerdo ao/lado, fogo
junto à cabeça. E mais fogo à/direita por/detrás
da mão estreita pegando no ar
como num livro. Julgo ser eu.
Eu às/portas do sono, e não
se sabe se venho do sono, oh nem se
me empolgo numa ilusão
sombria. Eu oh nem se
me entro para um sonho extenuante.
Sono empurrado de inspiração
terrena.
 
Retratobliquamente livre e martelado
em sua leveza.
Com algum espinho meio/visível perto
da cabeça. Como se a cabeça
fosse uma rosa venenosa, ou coisa
inclinada e dolorosa. Para ser defendida
ou ferida no/acto
da exaltação. Retrato frio. Num grau
de ausência, num degrau de alucinação.
Frio nas fronteiras do concreto, e  ardente
perto perto,
Por/cima , nuvens de cinza revoltada,
Em/baixo, fruta aberta.
Fundos de paisagem veemente e incompleta.
 
Imaginativa, a roupa; e as pregas, precipitadas.
Que cheiraria a suor um/pouco,
e a tabaco. Por/cima
do colarinho vago o caloroso
sorriso de ironia é quasexacto. Boquim-
pura contínua - mente/regenerada
pelo amor e, pelo amor, tornada
soturna e abrupta.
Morte ao/meio como alta
alta desarmonia, Que os poderes oh confundia.
 
Ou talvez toda a força se movimente
para o centro do retrato.
E a morte se urde do próprio modo como
a carne alimenta o silêncio compacto
no/meio do retrato.
 
Talvez este ser se abisme em seu núcleo
central. E toda a figura se levante, na arquitectura
da cadeira, por virtude desse nó
ou núcleo trágico. Assim como uma pura
concepção em/torno de um delírio
vingativo e transacto.
 
Qualquer coisa no retrato ressalta
do espírito de um homem que foi assassinado.
Há um punhal implícito.
Sangue desdobrado.
A cadeira é alta e existe dentro do fogo.
O sexo suposto está masculino. O livro
entreposto à vida e à visão
é um livro feroz e ao mesmo tempo destruído
pela beleza.
Este homem não fala, porque se fez pedra extrema
fechada.
Sua idade ouve-se a si/mesma, infiltrada
até ao terror.
 
Não tem amor senão do amor.
É um homem devastado pelo pensamento da alegria.
Deus vive nele um tempo obscuro
de esquecimento. Este homem mora
nas coisas miúdas transpostas,
comparadas, alvitradas, justapostas.
Vive em/arco.
Pensa em/espírito de fogueira.
Tem toda a mão queimada até ao silêncio
atroz. Rodearam-lhe a voz.
Contudo, seu ser é destinado à alegria verdadeira.
 
Se adormecesse, deveria ser acordado.
Ou deveria recostar-se na cadeira, ca -  ir
em sua/própria fantasia
calma. Não há nele vida celeste,
nem malícia de alma
Há uma assimetria insondável, um destino ou
desatino casto e demorado.
Por isso é que está de/lado.
Existe, ao/centro, uma força assombrosa.
 
Nele tudo ousa.
Vai morrer imensamente (ass) assinado.
 
                                                            1961-62
 
 
 
Herberto Helder
poesia toda
assírio & alvim
1996


filhos não te são nada



filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas
que escreveste contra tudo, pais e filhos,
lugar e tempo,
filha é aquela que despes dos pés à cabeça,
perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,
e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,
desejo de ser o mesmo punho de cinza
deitado à espuma nos extremos da terra,
filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários
                                                       quando dormem,
essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas
onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte:
o que de tudo reste pode ser testemunho distraído e mais
                                                                           nada,
tu sim vais tecendo e vendo tecer-se a tua dita atrás,
e essa atenção ilumina-te os nós dos dedos
e o cabelo todo aos nós por ela baixo
– a morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se
                                                                  apaga,
e tu olhas entre as coisas pequenas
e para onde olhas é essa parte alumiada toda
 
 
 
Herberto Helder
a morte sem mestre
porto editora
2014

 





                                        Hans Magnus Ensensberger, tradução de Alberto Pimenta.

Como Medo, Com Pedro

Aberto por uma bala

  


Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
– o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.
 
 
 
Herberto Helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987

No meu espaço

 Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

(1929)


constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003

Páginas íntimas

 Nunca vivi no campo. Como outros, nem sequer a planície visitei, a não ser por curtos períodos de tempo. Não obstante escrevi um poema sobre o campo e dei-lhe aquilo que os meus versos lhe devem. Esse poema pouco vale. Nada existe menos sincero do que ele; uma total mentira.


Agora ocorre-me, porém, o seguinte: tratar-se-á, realmente, de uma falta de sinceridade? Não estará a arte sempre a mentir? Melhor dizendo, não será ela tanto mais criativa quanto mais mente? Quando escrevi aqueles versos, não estariam a ser produto da arte? (Não serem perfeitos talvez se não deva a uma falta de sinceridade, pois muitas vezes falhamos tendo por matéria-prima a mais sincera das impressões.) Na altura em que fiz aqueles versos haveria em mim sinceridade artística? Não estaria eu a pensar de uma forma que era como se vivesse, de facto, no campo?



konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994



                                                             Yamamoto Masao - #1645, Kawa

 Embrulhou-as com cuidado, ordenadamente
na seda verde excelente.

Lírios de pérolas, rosas de rubis,
violetas de ametista. Tais como ele as quis,

as apreciou, as viu belas; não como na natureza há
as viu e as estudou. Dentro do cofre as deixará

amostra do seu trabalho eficaz e sem temor.
Se na loja entrar um qualquer comprador

tira outras dos estojos e vende – jóias singulares –
pulseiras, anéis, cordões e colares.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994
 E se não podes fazer a tua vida como a queres,
pelo menos procura isto
quanto puderes: não a aviltes
na muita afinidade com o mundo,
nos muitos movimentos e conversas.

Não a aviltes levando-a,
passeando-a frequentemente e expondo-a
em relações e convívios
da parvoíce do dia-a-dia,
até se tornar como uma estranha pesada.



konstandinos kavafis
os poemas
I (1905-1915)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005

 Muitas vezes verifiquei que os homens dão pouca importância às palavras. Vou explicar-me. Uma pessoa banal (com banal não quero eu dizer que seja tola, apenas alguém que não é relevante) tem uma ideia qualquer que é de censura a uma instituição ou a uma opinião generalizada; sabe que a grande maioria pensa o contrário e por tal razão cala-se, pensa que não lhe convém falar e argumenta que a discussão não altera nada. É um grande erro. Eu actuo de outra maneira. Censuro, por exemplo, a pena de morte. Quando a ocasião se proporciona declaro-o, não porque esteja convencido de que os Estados vão fazer a sua abolição no dia seguinte, mas por estar convencido de que vou contribuir para o triunfo da minha opinião. É indiferente que ninguém esteja de acordo. As minhas palavras não caem em saco roto. Talvez alguém chegue a repeti-las, e possam ir ter a ouvidos que as oiçam e apoiem. Pode ser que alguém, entre os que não concordam agora, no futuro vá recordá-las em circunstância favorável e, havendo o concurso de outras circunstâncias, se convença ou ponha em dúvida a sua convicção, que lhe é contrária. E o mesmo se passa com outros problemas sociais, e outras coisas em que é sobretudo necessário haver Acção. Reconheço que sou um cobarde e não posso actuar. Limito-me, por isso, a falar. Embora não acredite que as minhas palavras sejam supérfluas. Outro existirá que vai actuar. E as minhas palavras – palavras de um cobarde – vão facilitar-lhe a actuação. Prepara-lhe o terreno.

 
(19-10-1902)
 
 
 
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994

 Na aldeia aborrecida em que trabalha –
empregado num estabelecimento
comercial; muito jovem – e onde aguarda
que passem ainda dois ou três meses,
dois ou três meses ainda para que o trabalho abrande,
e assim possa ir para a cidade e todo
se entregar ao bulício e à diversão;
na aldeia aborrecida em que aguarda –
caiu esta noite na cama tomado pelo amor,
abrasada toda a sua juventude na paixão da carne,
numa bela intensidade toda a sua formosa juventude.
E com o sono chegou o prazer; no sono
vê e faz sua a imagem, a carne que desejava…
 
1925
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017
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