quinta-feira, 12 de junho de 2014

A MAÇÃ NO ESCURO

Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo,
empilhado até o meio de seu comprimento e altura
com sacas de cereais.
Eu estava lá dentro, era escuro,
estando as portas fechadas
como uma ilha de sombra em meio do dia aberto.
De uma telha quebrada, ou de exígua janela,
vinha a notícia da luz.
Eu balançava as pernas,
em cima da pilha sentada,
vivendo um cheiro como um rato o vive
no momento em que estaca.
O grão dentro das sacas,
as sacas dentro do cómodo,
o cómodo dentro do dia
dentro de mim sobre as pilhas
dentro da boca fechando-se de fera felicidade.
Meu sexo, de modo doce,
turgindo-se em sapiência,
pleno de si, mas com fome,
em forte poder contendo-se,
iluminando sem chama a minha bacia andrógina.
Eu era muito pequena,
uma menina-crisálida.
Até hoje sei quem me pensa
com pensamento de homem:
a parte que em mim não pensa e vai da cintura aos pés
reage em vagas excêntricas,
vagas de doce quentura
de um vulcão que fosse ameno,
me põe inocente e ofertada,
madura pra olfato e dentes,
em carne de amor, a fruta.














Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p. 41
«Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.»



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.38
(...)

«A alegria dele desertava, quase, do que fosse
uma alegria humana e não estávamos à altura de entendê-la.
Sofrer era muito mais fácil.»



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.27

gesticular o pensamento



«(...)

Quem entender a linguagem entende Deus
cujo filho é o Verbo. Morre quem entender.



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.6

terça-feira, 10 de junho de 2014

IV

os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam

 dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome

 os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?


 Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 74

sombrias gaivotas

«ó pura dissonância, amor humano,
morte de amantes transformados em beijos
o tempo só de dois corpos unidos
que então conhecem tudo ou pelo menos
conhecem a ilusão de conhecerem.
se é isto o que há a fazer e um breve frémito
perpassa as flores do bosque, das veredas
recomeçadas, se era só isto o tempo
cruzando a origem, a pura dissonância,
um eco triste ao fim do sono escuro,
é cansaço ou ventura ou desespero
esse silêncio íntimo que invade
os que jogam o jogo, o próprio jogo,
os corpos nus e a sua circunstância?

de conhecermos tudo: a tensa sombra
da juventude e os lugares da cinza,
amargurado amor, de termos visto
o amador a transformar-se em sombra
a coisa amada a transformar-se em cinza,
tétanos, podridões, desastres, tudo
o que foi vão e vil, a urina e esta
pobre matéria de alegria póstuma,
os lugares da loucura e da miséria,
os retratos torcidos, tudo visto
contado e dividido, já previsto
por infames motivos.
             e de querermos
por conhecermos tudo, dizer tudo.»


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 67

 «ah, mas estamos vivos! arriscamos
tudo o que somos, tudo o que podemos
nesta vã tarantela.
               os amantes também
apostam corpo e alma já sabendo
que perdem de antemão.
                 magro lucro
o momento do jogo e só ele
a ciência possível.
                 o jogo e a dança.
tudo o mais é tão pouco e desfigura
a substância dúplice que somos:
vivermos de arriscar e de perder.
também a morte espera paciente
e já cresceu connosco e perde tempo
mas só enquanto nós esbracejamos.»


 Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 65
«(...)

mas foi há tanto tempo.
              tudo mudou depois,
a começar por nós, que queríamos, depois
de tanto tempo, tantos sobressaltos,
saber ainda como podia a noite
cumular-nos.»


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 64

o sempre aflito envelhecer das rosas


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 51

segunda-feira, 9 de junho de 2014

«Perdeste a direcção de casa
Com a tua sede de perfeição»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 233

«Vejo o fundo da garrafa
Acendo mais outro cigarro
Tudo serve de cinzeiro
Quando os deuses brincam é para magoar!»



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 220

Quantas vezes te odiei com medo de te amar...

«Casos graves de bem estar
Por mais que tenham, nunca têm a mais»


«O pior não é estar triste
O pior é não saber porquê»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 196
«Não é por nos desviarmos
Que evitaremos o nosso fim»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 193

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar

Só por ter dois sóis
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
E chamei casa a esse lugar

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por inventar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
E deixo o tempo decidir

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Eu sei que nenhuma vai ganhar



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 182
Esse teu passo inseguro
E o teu paraíso no olhar


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 181

A nossa história começa na total escuridão


«Ela sabe dizer-te quem foste, quem és e quem hás-de ser
Dás  por ti acenando a tudo o que ela disser »


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 166

Sou o vagabundo mais feliz que existe

«(...)

Não consigo pensar
Deve ser do cansaço de me ocupar demais
De coisas banais  »



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 162

O LADO ERRADO DA NOITE

«Procuro na escuridão o centro da carne»


«(...)

Existem mil produtos para encher o vazio
Criámos computadores para ampliar a memória
E todos nós temos disfarces para aumentar a confusão
Só não sabemos como fazer o amor durar
O grande enigma continua a dar-nos cabo do coração.»




Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 145

domingo, 8 de junho de 2014



JOHN: O pensamento do Beatle de cabelo comprido no santuário do século XIX. Por favor, parem com esse disparate. Vai para casa. Não gostamos de pessoas como tu. Vai ao médico para seres normal, estás a perceber? Vai ao médico. Nós vamos hoje ao psiquiatra, talvez ele nos ponha bons. Não nos entendemos a certos níveis, como viste. Estava com marijuana. Lindo, lindo. Continua a fumar. Não é ilegal. Lindo, lindo. Hey, aqueles tipos são tão duros como a imprensa real.



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 27

GENESIS, CHAPTER 2

21. And the LORD GOD caused a deep sleep to fall upon Adam, and he slept; and he took one of his ribs, and closed up the flesh instead thereof;

22. And the rib, which the LORD GOD had token from man,
made he a woman, and brought her unto the man.

23. And Adam said, This ''is'' now bone of my bonés, and flesh
of my flesh: she shall be called Woman, because she was token
out of man.

24. Therefore shall a man leave his father and his mother, and
shall cleave unto his wife: and they shall be one flesh.

25. And they were both naked, the man and his wife, and went
not ashamed.


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 8

domingo, 1 de junho de 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

PAISAGEM
                         Uma
                          rede
                          verde
                          escreve
                          a sede.



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 124

Gaivota de pedra

Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 104

TRANSMISSÃO DA NOITE



 "Ele diz com os braços que há uma coisa viva que possui a razão no interior da razão.

Ele diz: A luz noite. Diz com os seus braços: o tempo não existe. ...
Diz: se os animais pudessem falar não teriam nada para dizer.
Diz: até na noite a palavra se transmite.
Ele diz: também a palavra transmite a noite com ela.

Também a luz, se deixarmos de falar, acaba e desaparece."
Valère Novarina. Sud- Express : Poesia Fancesa Hoje
«(...), que me pintavam como tendo um carácter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: «É que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me.»


Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 84

interrogatórios de identidade


«Há muito tempo, há muito tempo...
Nós passamos tanto tempo
A estragar o tempo.»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 144

''missa dos pássaros''


Quando um homem tem vida de cão mais lhe vale ser morto

Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 105
«Dói se pensarmos que isto é o fim
Mas resta sempre alguma coisa.»



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 101

«(...)

Tu que foste traído
Tu que atraiçoaste
Tu que deixaste cair
Aquilo em que acreditaste
Tu desesperado que andas a monte
Não faltes ao teu encontro
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte

Leva o teu corpo e leva a dor
Não esqueças os teus desejos
Sê violento se acaso
Te amedrontarem os seus beijos
Mas não te faças rogado, é por ti que ela espera
Vai, corre ao seu encontro
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte





Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 94/5

domingo, 25 de maio de 2014

BALADA DUM ESTRANHO

Hoje acordaste duma forma diferente dos outros dias
Sentes-te estranho, tens as mãos húmidas e frias
Tentas lembrar-te de algum pesadelo mas o esforço é em vão
Parece-te ouvir passos dentro de casa mas não sabes de quem são

Deixas o quarto e vais à sala espreitar atrás do sofá
Mas aí tu já suspeitas que os fantasmas não estão lá
Vais à janela e ao olhares para fora sentes que perdeste o teu centro
E de repente descobres que chegou a hora de olhares para dentro

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu

Vês o teu nome escrito num envelope que rasgas nervosamente
Tu já tinhas lido essa carta antecipadamente
E os teus olhos ignoram as letras e fixam as entrelinhas
E exclamas: ''Afinal...estas palavras são minhas!''

O caminho para trás está vedado e tens um muro à tua frente
E quando olhas p'rós lados vês a mobília indiferente
E abandonas esta casa onde sentiste o chão a fugir
Arquitectas outra morada mas sabes que estás a mentir

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 93

MAL E BEM/ ESTAÇÕES/SÓ MAIS UM BEIJO (COPENHAGA, 78)

Tu tens que estar sempre atento
Se queres sobreviver
Tens de saber travar
Não basta saberes correr

E quando deres por ti na rua errada
Não percas tempo a tentar disfarçar
Apressa-te a encontrar a rua certa
A vida é uma enorme encruzilhada
E qualquer um se pode enganar

Tu tens que ser muito rápido
Senão vais-te afundar
Tens de saber cair
Se é que te queres levantar

E quando tiveres monstros na cabeça
Não penses mais nisso
Há tanta coisa gira para fazer
Não te esqueças que tu és o que tu pensas
Um pensamento feio é como um cancro
Se o guardas, ele não pára de crescer

Mal e bem
Estamos sempre a mexer
Mal e bem
A ganhar e perder
Mal e bem
Agora a subir, mais logo a descer

E o que está mal neste instante
Pode estar bem a seguir
E, na verdade, o importante é o que tu estás a sentir
Irmão, tu não sejas tonto
Que tarde ou cedo chega a hora de partir

Tens de trazer a cabeça
Bem junto ao coração
Que é para poderes saber
Qual é a tua missão
Tudo o que se passa à tua volta
Está bem ligado ao fundo do teu ser,
E custa vermos tanta gente à espera
De frutos que, afinal, eles não merecem
Quem não semeia, não tem direito a colher

Mal e bem
Estamos sempre a mexer
Mal e bem
A ganhar e a perder
Mal e bem
Agora a subir, mais logo a descer

E o que está mal neste instante
Pode estar bem a seguir
E, na verdade, o importante é o que tu estás a sentir
Irmão, tu não sejas tonto
Que tarde ou cedo chega a hora de partir

Só mais um beijo
Antes de eu me abrir
Só mais um beijo
Antes de eu partir



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 77
«Eu sei que um dia acabamos por nos reencontrar
Nalguma esquina sem luz onde se queimem ilusões
Eu sei que um dia acabamos por nos cruzar
E dizer de novo...adeus»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 55
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