quarta-feira, 3 de março de 2021
O Dia, Lisboa, 19 de Janeiro de 1976, p. 12. Entrevista conduzida por Lurdes Simões de Carvalho, com fotografias de Acácio Franco.
Por teu livre pensamento
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Ai, dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar.
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!
Lisboa, 1985: «Gostava de ficar no coração das pessoas»
«Eu não vou pela ideia de cantar um fado como se o cantasse pela primeira vez, porque tenho muita facilidade em improvisar e só entendo o fado assim. De uma maneira geral, o fado tem muito pouco de melodia (a não ser em músicas como as do Valério, do Portela, do Janes ou outros). O fado clássico, que era aquele que havia antigamente – porque nenhum compositor escrevia para o fado, a não ser na revista – não tinha praticamente melodia. Eu, se cantasse sempre da mesma maneira, maçava-me imenso e começava a pensar que podia maçar os outros. Não sou capaz de fazer igual amanhã porque eu não sei como é que fiz ontem nem como é que vou fazer amanhã…»
«Camões escreveu essas coisas porque lá por dentro dele era bem português e o seu estado de alma era o nosso. A pena de nós próprios. Isso tudo é a mesma coisa. O Camões tratou as palavras “destino” e “fado” como nunca mais ninguém tratará, assim eu penso. Há nele a mesma noção de destino, de fatalidade, de pena de si próprio. Fiquei toda contente quando descobri que ele dava a isto o mesmo sentido que lhe dá o povo que eu tinha ao pé da porta. Para mim, ele é o maior fadista português: sabia falar de fado como ninguém.»
«Bem, eu nunca esperei nada, por isso vivo sempre surpreendida com aquilo que me acontece. Pelo contrário, estou sempre à espera do pior. Eu gostava muito de morrer sem ouvir um não do público. Morrer, mas não retirar-me. Gostava de ficar no coração das pessoas.»
Semanário, Lisboa, 27 de Abril de 1985, pp. 41-42, entrevista por João Gonçalves, fotografias por Alberico Alves
Fonte da Publicação: ver aqui.
RETRATO DE AMÁLIA
És filha de Camões filha de Inês
assassinada voz de portuguesa
cantando a nossa imensa pequenez
com laranjas e gomos de tristeza.
É no claro Mondego dos teus olhos
que se debruça o mal da nossa mágoa.
Ao Tejo dos teus gestos que se acolhe
o nosso coração a pulsar água.
Falando desatada de saudade
choras um povo cantas a balada
mais bonita que soa na cidade
de Lisboa por ti apaixonada.
Fonte da Publicação: https://amaliarodriguescentenario.wordpress.com/tag/augusto-cabrita/
«L’Océan des rêves. “Les Iles enchantées” sont peut-être un rêve de marin. Le film en tout cas baigne dans une image merveilleuse comme un songe perdu qui puise sa substance dans la mémoire aristocratique des premiers éléments. «L’inconscient maritime est un inconscient parlé, un inconscient qui se disperse dans les récits d’aventures, un inconscient qui ne dort pas. Il perd donc tout de suite ses forces oniriques. Il est moins profond que cet inconscient qui songe autour d’expériences communes et qui continue dans les rêves de la nuit des interminables rêveries du jour. La mythologie de la mer touche rarement aux origines de la fabulation.” Voilà certainement exprimée une limite inférieure de la réflexion bachelardienne sur l’imagination de la matière. On sait que Gaston Bachelard est profondément ce que Melville eût appelé un terrien. Bachelard pense toujours aux poètes de la terre, à l’eau de la terre, à l’eau douce qu’il nomme “la véritable eau mythique”. Rêver de la mer est pour lui un scandale impardonnable car le sel est une perversion: “Le sel entrave une rêverie, la rêverie de la douceur, une des rêveries les plus matérielles et les plus naturelles qui soient.” “La rêverie gardera toujours un privilège à l’eau douce, à l’eau qui désaltère.” Il oubliait Melville […]. C’est que l’œuvre de Melville offre un démenti exact à la critique de l’eau salée: à la fois onirique, mythique et fabuleuse, elle montre bien que Melville est un rêveur de la mer, ce que Vilardebo, en y ajoutant son propre rêve, a bien senti et traduit, contre Bachelard, dans son premier long métrage.
La rêverie de Vilardebo est triple: c’est d’abord un rêve sur Melville, ensuite sur la mer, enfin sur la terre ambiguë de l’ile. Son film est résolument et courageusement en dehors, il surgit d’une poèsie diurne au-delà de laquelle le silence, l’unique silence des objets forme un point d’orgue vers l’horizon où les éléments se fondent dans le gris absolu de l’interrogation. “Les Iles enchantées” sont un rêve sur Melville: au lieu de prendre un roman et de l’adapter, Vilardebo rencontre un auteur, il adopte Melville, quitte à transformer ses histoires, c’est-à-dire à les penser à travers la forme, à en changer la forme, ici par le cinéma. La poèsie cosmique de Melville est portée à l’image et par l’image qui reflète une sensation, une série sensible. Vilardebo arrive à créer une sorte d’irréalité belle et menaçante pourtant parce qu’il ne cherche pas à créer l’illusion de la réalité mais la réalité de l’illusion. […]
C’est un film en outre où le space prend sa véritable dimension d’inquiétude: le paysage est un pays sans cesse nouveau sur lequel l’œil revient comme la mer sur le rivage. Le poème prend son sens quand l’histoire n’est plus qu’un infini incompréhensible, voire inutile: on se trouve alors devant le poème primitif, anhistorique. […]
Dès le début du film on sait qu’un drame ou une tragédie vont éclater. C’est sur le rivage qu’ont lieu, tour à tour, le suicide du marin, le duel d’honneur, le débarquement d’Hunila (Hunila ches Melville), l’abandon des chiens qui peupleront les nuits insulaires de leurs aboiements dérisoires. Autant de drames qui privilégient le rivage, et le bateau aimmobilisé par l’absence de vent semble se mesurer à cette ligne impondérable où l’eau fait place à la terre. Quand les marins, quand Melville est quand Vilardebo se sont longtemps perdus dans la fascination des iles enchantées, alors le mystère mérite de prendre la forme vivante d’une femme muette sous les traits d’Amalia Rodriguez. Hunila réunit en elle toute l’inquiétude de l’archipel, de ces iles nommées assurément par dérision “enchantées”. Elle est la tragédie et la fabulation à la fois, et apparait comme l’incarnation de toutes les attentes : Hunila est la première femme, la femme essentielle qui est à la mesure de l’océan et qui peut lui répondre. La caméra jusqu’ici descriptive, décrivait des arcs de cercle, elle peut maiontenant venir se fixer sur le visage de cette femme unique. A cette admirable création de Melville, Vilardebo a très habilement ajouté un ange sous l’apparence de Pierre Clementi. Cet ange est une tentation: il apparait entouré de lumière dans la blancheur de son innocence, comme un rêve de plus. Il est venu de l’eau mais il semble tombé du ciel quand on le voit pour la première fois sur les rochers de la terre. […]
Ce film révèle un cinèaste chez qui l’artisan rivalise avec le poéte. […]»
Paul-Louis Martin, «L’océan des rêves», Cahiers du Cinéma, Paris, numéro 180, Juillet 1966, pp. 71-72. ''
domingo, 28 de fevereiro de 2021
Amália Rodrigues - Versos
Ai Esta Pena de Mim
Ai esta angústia sem fim
Ai este meu coração
Ai esta pena de mim
Ai a minha solidão
Ai a minha infância dorida
Ai o meu bem que não foi
Ai minha vida perdida
Ai lucidez que me dói
Ai esta grande ansiedade
Ai este não ter sossego
Ai passado sem saudade
Ai a minha falta de aprego
Ai de mim que vou vivendo
Em meu grande desespero
Ai tudo o que não entendo
Ai o que entendo e não quero
Gostava de Ser Quem Era
Tinha alegria nos olhos
Tinha sorrisos na boca
Tinha uma saia de folhos
Tinha uma cabeça louca
Tinha uma louca esperança
Tinha fé no meu destino
Tinha sonhos de criança
Tinha um mundo pequenino
Tinha toda a minha rua
Tinha as outras raparigas
Tinha estrelas tinha a lua
Tinha rodas de cantigas
Gostava de ser quem era
Pois quando eu era menina
Tinha toda a Primavera
Só numa flor pequenina
Tive Um Coração Perdi-o
Tive um coração perdi-o
Ai quem mo dera encontrar
Preso no fundo do rio
Ou afogado no mar
Quem me dera ir embora
Ir embora sem voltar
A morte que me namora já me pode vir buscar
Tive um coração perdi-o
Ainda o vou encontrar
Preso no lodo do rio
Ou afogado no mar
Trago Fados Nos Sentidos
Trago fados nos sentidos
Tristezas no coração
Trago os meus sonhos perdidos
Em noites de solidão
Trago versos trago sons
Duma grande sinfonia
Tocada em todos os tons
Da tristeza e da agonia
Trago amarguras aos molhos
Lucidez e desatinos
Trago secos os meus olhos
Que choram desde meninos
Trago noites de luar
Trago planícies de flores
Trago o céu e trago o mar
Trago dores ainda maiores
Quando Se Gosta de Alguém
Quando se gosta de alguém
Sente-se dentro da gente
Ainda não percebi bem
Ao certo o que é que se sente
Quando alguém gosta d'alguém
É de nós que não gostamos
Perde-se o sono por quem
Perdidos de amores andamos
Quando alguém gosta de alguém
Anda assim como ando eu
Que não anda nada bem
Com este mal que me deu
Quando se gosta de alguém
É como estar-se doente
Quanto mais amor se tem
Pior a gente se sente
Quando se gosta de alguém
Como eu gosto de quem gosto
O desgosto que se tem
É desgosto que dá gosto
Lágrima
Cheia de penas
Cheia de penas me deito
E com mais penas
Com mais penas me levanto
No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de te querer tanto
Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim um castigo
Não te quero
Eu digo que não te quero....
E de noite
De noite sonho contigo
Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer
Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar
Uma lágrima
Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar
Ai Minha Doce Loucura
Ai minha doce loucura
Ai minha loucura doce
Meu amor se assim não fosse
Seria a noite mais escura
Meu amor se assim não fosse
Se eu dantes tinha fome
Meu amor anda faminto
Com os beijos que te dei
O que sinto eu já não sei
Eu já nem sei o que sinto
Seria a noite mais noite
Meu amor se assim não fosse
Seria a noite mais escura
Ai minha doce loucura
Ai minha loucura doce
Ai minha loucura doce
Ai minha doce loucura
Ai minha loucura louca
Eu hei-de achar a tua boca
Mesmo na noite mais escura
Se minha alma não ousa
Meu coração que se afoite
Eu hei-de achar tua boca
Ai minha loucura louca
Mesmo na noite mais noite
Meu amor se assim não fosse
Seria a noite mais escura
Ai minha loucura doce
Ai minha loucura louca
Ai minha doce loucura
O Fado Chora-se Bem
Moram numa rua escura
A tristeza e a amargura
A angústia e a solidão
No mesmo quarto fechado
Também la mora o meu fado
E mora meu coração
Tantos passos temos dado
Nós as três de braço dado
Eu a tristeza e a amargura
À noite um fado chorado
Sai deste quarto fechado
E enche esta rua tão escura
Somos vizinhos do tédio
Senhor que não tem remédio
Na persistência que tem
Vem p'ró meu quarto fechado
Senta-se ali a meu lado
Não deixa entrar mais ninguém
Nesta risonha morada
Não há lugar p'ra mais nada
Não cabe lá mais ninguém
Só lá cabe mais um fado
Que neste quarto fechado
O fado chora-se bem
Amor de Mel Amor de Fel
Tenho um amor
Que não posso confessar
Mas posso chorar
Amor pecado
Amor de amor
Amor de mel
Amor de flor
Amor de fel
Amor maior
Amor amado
Tenho um amor
Amor de dor
Amor maior
Amor chorado
Em tom menor
Em tom menor
Maior o fado
Choro a chorar
Tornando maior o mar
Não posso deixar de amar
O meu amor em pecado
Foi andorinha
Que chegou na Primavera
E eu era quem era
Fado maior
Cantado em tom de menor
Chorando um amor de dor
Dor de um bem e mal amado
Grito
Silêncio
Do silêncio faço um grito
E o corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco
De sombra a sombra
Há um céu tão recolhido
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido
Ao céu
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais
Quando se vive atrás d'ela
E eu
A quem o céu esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora
Solidão
Que nem mesmo é inteira
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura
Ai solidão
Quem fora escorpião
Ai solidão
E se mordera a cabeça
Adeus
Já fui p'r'além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada a uma parede
Adeus
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai como dói
A solidão quase loucura
Horas de Vida Perdida
Horas de vida perdida
À procura de viver
Vai-se á procura da vida
Não a encontra quem quer
Quem sou eu para dizer
Quem sou eu para o saber
Nem sei se sou ou não sou
Ninguém pode conhecer
Isto de ser e não ser
Sem saber sei entender
Assim sei o que não sei
Sinto que sou e não sou
Entre o que sei e não sei
A minha vida gastei
Sem conseguir entender
Ai quem me dera encontrar
As rimas da poesia
Ai se eu soubesse rimar
Tantas coisas que eu dizia
O Tempo Dantes Corria
O tempo dantes corria
E eu ainda corria mais
Mas vi-te e desde esse dia
Que correm mais os meus ais
O tempo dantes corria
E com ele meus folguedos
Mas vi-te e desde esse dia
Correm p'ra ti meus segredos
O tempo dantes corria
E eu corria para a vida
Mas vi-te e desde esse dia
Fiquei de vida perdida
O tempo dantes corria
E eu vivia a correr
Mas vi-te e desde esse dia
Que corro só p'ra te ver
Por Que Voltas De Que Lei
Por que voltas de que lei
Vem este sentir profundo
Por te ver como sei
Me sinto dona do mundo
Por que espada de que rei
Meu amor é fogo posto
És tanto de quanto amei
Que és tudo de quanto gosto
Por este amor que te tenho
Por ser assim como sou
És inferno de onde venho
És o céu para onde vou
Por que voltas de que lei
És tudo de quanto gosto
Me perdi e me encontrei
Nas voltas que tem teu rosto
Por que voltas de que rei
Em meu peito te desenho
És tanto de quanto amei
Que és todo o mundo que tenho
E de tão rica que estou
Nunca tão pobre fiquei
Por ser assim como sou
E te saber como sei
Mãos Desertas
Nesta solidão que é minha
Mora a minha inquietação
E esta angústia que me mata
Mora no meu coração
Salvai o meu coração
Que se queima na fogueira
No fogo desta paixão
Que será p'rá vida inteira
O nosso amor, meu amor
É bom e faz-me sofrer
Prazer que me traz a dor
Do medo de te perder
Ai De Mim Que Me Perdi
Ai de mim que me perdi
Pelos caminhos do tédio
Perdi-me cheguei aqui
Agora não tem remédio
Ai de mim que me perdi
Perdi-me no fim da estrada
Ai de mim porque vivi
A vida desencontrada
Tantos caminhos andados
Não fui eu que os descobri
Foram meus passoa mal dados
Que me trouxeram aqui
Perdida me acho na vida
E a vida já me perdeu
Ando na vida perdida
Sem saber quem a viveu
Por mais que queira encontrar
A razão do meu viver
A razão de cá andar
Não posso compreender
Que culpa tem o destino
Dos caminhos que eu andei
Fui eu no meu desatino
Que andei e não reparei
Perdida estou sem remédio
Meu pecado é meu castigo
Pecado é morrer de tédio
Castigo e viver contigo
Faz-me Pena
Que culpa tem o destino
Deste destino que eu tenho
Se o desgosto é pequenino
Eu aumento-lhe o tamanho
É meu destino
Se o desgosto é pequenino
Eu aumento-lhe o tamanho
Se o desespero matasse
Eu já teria morrido
Talvez alguém me chorasse
Talvez o tenha merecido
Talvez alguém
Talvez alguém me chorasse
Talvez o tenha merecido
Sinto que cheguei ao fim
Das ilusões que não tive
Porque alguém gosta de mim
Algo de mim sobrevive
Cheguei ao fim
Mas se alguém gosta de mim
Algo de mim sobrevive
Adeus que chegou a hora
Há muito a venho esperando
E se por mim ninguém chora
Faz-me pena e vou chorando
Já vou embora
E se por mim ninguém chora
Faz-me pena e vou chorando
Amália Rodrigues - Versos