terça-feira, 30 de agosto de 2011
domingo, 28 de agosto de 2011
« É a mim que procuras, ou qualquer outra coisa? (Pausa.) Queres afagar o meu rosto...uma vez mais? (Pausa.) É um beijo que procuras, Willie...ou será outra coisa? (Pausa.) Houve um tempo em que eu ainda poderia dar-te uma ajuda. (Pausa.) E um outro tempo, antes desse em que eu te ajudava mesmo. (Pausa.) Tu precisaste sempre muito de ajuda, Willie. (Willie escorrega e vem cair na base de elevação do terreno, de rosto voltado para o solo.) Brumm! (Pausa. Willie volta à posição de gatas e levanta os olhos para ela.) Tenta outra vez, Willie, vamos: dessa maneira! (Pausa. Veemente.) Não olhes para mim dessa maneira! (Pausa. Baixo.) Perdeste a razão, Willie? (Pausa. Idem.) Os teus pobres restos de razão?»
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 82/3
Os clássicos
«Como se perdem os clássicos! (Pausa.) Oh, nem todos. (Pausa.) Uma parte. (Pausa.) Outra parte fica. (Pausa.) É isso que eu acho maravilhoso: que uma parte dos clássicos fique para nos ajudar a chegar ao fim de cada dia. (Pausa.)»
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 78
ALCESTE
Senhora, desejais que fale abertamente?Com vosso proceder ando descontente:
Enche meu coração de muito mau humor
E sinto que a ruptura a nós se vai impor;
Enganava-vos, sim, fosse outro o meu dizer,
Decerto cedo ou tarde havemos de romper,
E o contrário, por mais que andasse a prometê-lo,
Me veria eu depois sem meios de fazê-lo.
Molière. O Misantropo. Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, Lisboa, 2007., p. 73
sábado, 27 de agosto de 2011
POETA MILITANTE
«POETA MILITANTE é a viagem do século vinte em mim. Ou melhor: o testemunho poético - a princípio involuntário - da aventura da sombra de um anti-herói que perdido nos meandros dos caminhos exíguos do tempo, atravessou em bicos de pés os segundos, os minutos, as horas, as semanas, os anos de quase todo um século, mais preocupado com as coisas vulgares do quotidiano nos cafés, nas ruas, nas praias, no campo, do que com os acontecimentos merecedores no futuro de longos tratados de volumosos que me inspiraram muitas vezes apenas poema e meio.
De quando em quando, grito. Grito muito. Berro. Apaixono-me. Calo-me. (Que outro protesto poderia fazer senão com o silêncio, quando rebentou a primeira infame bomba atómica?) Amo. Odeio, torço pescoços de fantasmas. E sobretudo denuncio. E espanto-me. Do que afinal sempre espantou os poetas dos séculos de sempre. De haver injustiças e estrelas.
Enfim, quando os homens pisaram a lua, dormi profundamente toda a noite como um anjo sem insónias.»
José Gomes Ferreira. Poeta Militante 1.º Volume. Obra Poética Completa. Círculo de Poesia. Moraes Editores, 3.ª edição, Lisboa, 1977
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
«(...) sentir-te simplesmente aí, ao alcance da minha voz, quem sabe se pronto a intervir, é tudo o que eu peço, nem dizer nada que possa contrariar-te ou causar desgosto, nem estar aqui a falar à toa, por assim dizer, às cegas, enquanto esta coisa me consome. (Pausa. Retomando alento.) A dúvida. (Pousa o índex e o dedo maior na região do coração. Procura o sítio, encontra-o). Aqui. (Move ligeiramente os dedos.) Mais ou menos. (Tira a mão.)»
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 50
«As palavras abandonam-nos, há alturas em que as palavras nos abandonam. Até elas...(Voltando-se um tanto para Willie.) Não é verdade, Willie? (Pausa. Voltando-se mais. Mais forte.) E o que havemos nós de fazer, então...até que elas voltem?»
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 47
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 47
«Quantas vezes eu não disse: Winnie põe o chapéu, é o que tens a fazer, tira o chapéu, Winnie, porta-te como uma pessoa crescida, vais ver que te faz bem...e não era capaz. (Pausa.) Não podia.
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 47
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 47
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
ALCESTE
Tenho o defeito
De mais sincero ser do que faria jeito.
ORONTE
Mas é isso o que peço; e fora descontente,
Se, expondo-me a vós, assim abertamente,
Vós me fosseis trair e algo dissimular.
ALCESTE
Pois assim o quereis, Senhor, vou aceitar.
Molière. O Misantropo. Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, Lisboa, 2007., p. 51
Tenho o defeito
De mais sincero ser do que faria jeito.
ORONTE
Mas é isso o que peço; e fora descontente,
Se, expondo-me a vós, assim abertamente,
Vós me fosseis trair e algo dissimular.
ALCESTE
Pois assim o quereis, Senhor, vou aceitar.
Molière. O Misantropo. Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, Lisboa, 2007., p. 51
ALCESTE
Tocado o coração, quer tudo do seu lado;
E eu só venho aqui a fim de lhe dizer
Tudo o que esta paixão em mim está a fazer.
(....)
Cada dia a razão, bem sei, mo vem propor;
Mas a razão não é o que governa o amor.
Mas a razão não é o que governa o amor.
Molière. O Misantropo. Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, Lisboa, 2007., p. 43
ALCESTE
Não. Da jovem viúva a quem eu sinto amar,
Aos defeitos que tem, olhos não vou fechar.
E sou, por muito que ela em mim acenda o fogo,
O primeiro que os vê e que os condena logo.
Mas tenho um fraco, sim, faça eu o que fizer,
Tem artes de agradar-me, admito, essa mulher:
Por mais que seus senões eu veja e lhos aponte,
Ela se faz amar, maugrado os que eu lhe conte;
Mais forte é a sua graça e a minha chama mais
Lhe há-de purgar a alma dos vícios actuais.
Molière. O Misantropo. Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, Lisboa, 2007., p. 41
terça-feira, 23 de agosto de 2011
O Misantropo
«Louis Jouvet resumiu assim O Misantropo: «É a comédia de um homem que quer ter uma conversa decisiva com a mulher que ama e que, até ao fim do dia, não consegue fazê-lo».
O homem é Alceste, o misantropo, ou, como o esquecido subtítulo da peça indica, o «atrabiliário amoroso». Opõe-se à sociedade do seu tempo pela sua exigência de rigor, franqueza e sinceridade totais nos comportamentos, rejeitando qualquer espécie de convenção hipócrita nas relações entre as pessoas. Essa exigência ética fá-lo sossobrar num pessimismo irremediável e numa crescente recusa de contactos com o género humano, a ponto de pôr em questão as suas próprias amizades. A peça que, logo desde a primeira cena, nos apresenta o protagonista, começa, exactamente, por uma acalorada discussão entre Alceste e o seu amigo Filinto, acomodatício e sensato, sobre este tópico.»
Vasco Graça Moura
Molière. O Misantropo. Vasco Graça Moura e Bertrand Editora, Lisboa, 2007., p. 7
«Tinha sido melhor deixar-te dormir. (Volta-se de frente; puxa distraidamente pela relva. Baixando e levantando a cabeça, anima a fala seguinte.) Pois é...assim eu pudesse suportar a solidão, quero dizer, ficar para aqui a pairar sem ser ouvida por ninguém. (Pausa.) Não é que eu tenha ilusões, Deus me livre. Tu não ouves lá grande coisa, Willie. (Pausa.) Há mesmo dias em que não ouves nada. (Pausa.) Mas também há outros em que me respondes (Pausa.) De maneira que eu posso sempre dizer de mim para mim, mesmo quando não respondes e talvez nem oiças: Winnie, posso eu dizer, há alturas em que alguém te escuta, tu não estás a falar só para ti própria, quero dizer, no deserto, coisas que eu nunca pude suportar - por muito tempo (Pausa.)»
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 44/5
domingo, 21 de agosto de 2011
«Dias Felizes é um maravilhoso poema de amor, o canto de uma mulher que ainda quer ouvir e ver o homem que ama (...). Quando li a peça pela primeira vez, fiquei perturbada e entusiasmada (...). O que eu estava a ler era tudo o que não ousava pensar desde que (...) me tinha aparecido a primeira ruga de velhice», declarava Madeleine Renaud nas Novelles Littéraires de 24 de Fevereiro de 1966.
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 22
«Nunca estive aqui», diz Hamm, e perante esta confissão nada mais conta, porque é impossível ouvi-la senão sob a sua forma mais geral: «Nunca ninguém esteve aqui.» Diz Robbe-Grillet referindo-se a À Espera de Godot e a Fim da Festa.»
Prefácio
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 20
«Winnie seria uma «complexa alma humana» de que Dias Felizes, com diálogos feitos à imagem da linguagem daquela que seria a pessoa «retratada», usando o que seria a expressão das suas dúvidas, dos seus íntimos desejos, das suas desilusões, do que se lembra e do que não se lembra, da sua tristeza ou da sua alegria, faria o «retrato»?
Samuel Beckett. Dias Felizes. Trad. Jaime Salazar Sampaio. 1ª. Edição. Editorial Estampa, Lisboa, 1973., p. 10
HER EYES ARE WILD
Written at Alfoxden. The subject was reported to me by a lady of Bristol, who had seen the poor creature.
I
HER eyes are wild, her head is bare,
The sun has burnt her coal-black hair;
Her eyebrows have a rusty stain,
And she came far from over the main.
She has a baby on her arm,
Or else she were alone:
And underneath the hay-stack warm,
And on the greenwood stone,
She talked and sung the woods among,
And it was in the English tongue.
II
"Sweet babe! they say that I am mad,
But nay, my heart is far too glad;
And I am happy when I sing
Full many a sad and doleful thing:
Then, lovely baby, do not fear!
I pray thee have no fear of me;
But safe as in a cradle, here,
My lovely baby! thou shalt be:
To thee I know too much I owe;
I cannot work thee any woe.
III
"A fire was once within my brain;
And in my head a dull, dull pain;
And fiendish faces, one, two, three,
Hung at my breast, and pulled at me;
But then there came a sight of joy;
It came at once to do me good;
I waked, and saw my little boy,
My little boy of flesh and blood;
Oh joy for me that sight to see!
For he was here, and only he.
IV
"Suck, little babe, oh suck again!
It cools my blood; it cools my brain;
Thy lips I feel them, baby! they
Draw from my heart the pain away.
Oh! press me with thy little hand;
It loosens something at my chest;
About that tight and deadly band
I feel thy little fingers prest.
The breeze I see is in the tree:
It comes to cool my babe and me.
V
"Oh! love me, love me, little boy!
Thou art thy mother's only joy;
And do not dread the waves below,
When o'er the sea-rock's edge we go;
The high crag cannot work me harm,
Nor leaping torrents when they howl;
The babe I carry on my arm,
He saves for me my precious soul;
Then happy lie; for blest am I;
Without me my sweet babe would die.
VI
"Then do not fear, my boy! for thee
Bold as a lion will I be;
And I will always be thy guide,
Through hollow snows and rivers wide.
I'll build an Indian bower; I know
The leaves that make the softest bed:
And, if from me thou wilt not go,
But still be true till I am dead,
My pretty thing! then thou shalt sing
As merry as the birds in spring.
VII
"Thy father cares not for my breast,
'Tis thine, sweet baby, there to rest;
'Tis all thine own!--and, if its hue
Be changed, that was so fair to view,
'Tis fair enough for thee, my dove!
My beauty, little child, is flown,
But thou wilt live with me in love,
And what if my poor cheek be brown?
'Tis well for me, thou canst not see
How pale and wan it else would be.
VIII
"Dread not their taunts, my little Life;
I am thy father's wedded wife;
And underneath the spreading tree
We two will live in honesty.
If his sweet boy he could forsake,
With me he never would have stayed:
From him no harm my babe can take;
But he, poor man! is wretched made;
And every day we two will pray
For him that's gone and far away.
IX
"I'll teach my boy the sweetest things:
I'll teach him how the owlet sings.
My little babe! thy lips are still,
And thou hast almost sucked thy fill.
--Where art thou gone, my own dear child?
What wicked looks are those I see?
Alas! alas! that look so wild,
It never, never came from me:
If thou art mad, my pretty lad,
Then I must be for ever sad.
X
"Oh! smile on me, my little lamb!
For I thy own dear mother am:
My love for thee has well been tried:
I've sought thy father far and wide.
I know the poisons of the shade;
I know the earth-nuts fit for food:
Then, pretty dear, be not afraid:
We'll find thy father in the wood.
Now laugh and be gay, to the woods away!
And there, my babe, we'll live for aye."
1798.
William Wordsworth
I
HER eyes are wild, her head is bare,
The sun has burnt her coal-black hair;
Her eyebrows have a rusty stain,
And she came far from over the main.
She has a baby on her arm,
Or else she were alone:
And underneath the hay-stack warm,
And on the greenwood stone,
She talked and sung the woods among,
And it was in the English tongue.
II
"Sweet babe! they say that I am mad,
But nay, my heart is far too glad;
And I am happy when I sing
Full many a sad and doleful thing:
Then, lovely baby, do not fear!
I pray thee have no fear of me;
But safe as in a cradle, here,
My lovely baby! thou shalt be:
To thee I know too much I owe;
I cannot work thee any woe.
III
"A fire was once within my brain;
And in my head a dull, dull pain;
And fiendish faces, one, two, three,
Hung at my breast, and pulled at me;
But then there came a sight of joy;
It came at once to do me good;
I waked, and saw my little boy,
My little boy of flesh and blood;
Oh joy for me that sight to see!
For he was here, and only he.
IV
"Suck, little babe, oh suck again!
It cools my blood; it cools my brain;
Thy lips I feel them, baby! they
Draw from my heart the pain away.
Oh! press me with thy little hand;
It loosens something at my chest;
About that tight and deadly band
I feel thy little fingers prest.
The breeze I see is in the tree:
It comes to cool my babe and me.
V
"Oh! love me, love me, little boy!
Thou art thy mother's only joy;
And do not dread the waves below,
When o'er the sea-rock's edge we go;
The high crag cannot work me harm,
Nor leaping torrents when they howl;
The babe I carry on my arm,
He saves for me my precious soul;
Then happy lie; for blest am I;
Without me my sweet babe would die.
VI
"Then do not fear, my boy! for thee
Bold as a lion will I be;
And I will always be thy guide,
Through hollow snows and rivers wide.
I'll build an Indian bower; I know
The leaves that make the softest bed:
And, if from me thou wilt not go,
But still be true till I am dead,
My pretty thing! then thou shalt sing
As merry as the birds in spring.
VII
"Thy father cares not for my breast,
'Tis thine, sweet baby, there to rest;
'Tis all thine own!--and, if its hue
Be changed, that was so fair to view,
'Tis fair enough for thee, my dove!
My beauty, little child, is flown,
But thou wilt live with me in love,
And what if my poor cheek be brown?
'Tis well for me, thou canst not see
How pale and wan it else would be.
VIII
"Dread not their taunts, my little Life;
I am thy father's wedded wife;
And underneath the spreading tree
We two will live in honesty.
If his sweet boy he could forsake,
With me he never would have stayed:
From him no harm my babe can take;
But he, poor man! is wretched made;
And every day we two will pray
For him that's gone and far away.
IX
"I'll teach my boy the sweetest things:
I'll teach him how the owlet sings.
My little babe! thy lips are still,
And thou hast almost sucked thy fill.
--Where art thou gone, my own dear child?
What wicked looks are those I see?
Alas! alas! that look so wild,
It never, never came from me:
If thou art mad, my pretty lad,
Then I must be for ever sad.
X
"Oh! smile on me, my little lamb!
For I thy own dear mother am:
My love for thee has well been tried:
I've sought thy father far and wide.
I know the poisons of the shade;
I know the earth-nuts fit for food:
Then, pretty dear, be not afraid:
We'll find thy father in the wood.
Now laugh and be gay, to the woods away!
And there, my babe, we'll live for aye."
1798.
William Wordsworth
THE REVERIE OF POOR SUSAN
This arose out of my observation of the affecting music of these birds hanging in this way in the London streets during the freshness and stillness of the Spring morning. AT the corner of Wood Street, when daylight appears, Hangs a Thrush that sings loud, it has sung for three years: Poor Susan has passed by the spot, and has heard In the silence of morning the song of the Bird. Tis a note of enchantment; what ails her? She sees A mountain ascending, a vision of trees; Bright volumes of vapour through Lothbury glide, And a river flows on through the vale of Cheapside. Green pastures she views in the midst of the dale, Down which she so often has tripped with her pail; And a single small cottage, a nest like a dove's, The one only dwelling on earth that she loves. She looks, and her heart is in heaven: but they fade, The mist and the river, the hill and the shade: The stream will not flow, and the hill will not rise, And the colours have all passed away from her eyes! 1797. William Wordsworth |
« Decerto que posso esperar por vós - decerto não preciso de ir com um estranho para o que para mim - é o (país) redil desconhecido - Esperei muito tempo - Mestre - mas ainda posso esperar mais - esperar até que o meu cabelo de avelã seja cinzento - e vós useis bengala - então poderei olhar para o meu relógio - e se o Dia estiver muito no fim - poderemos tentar a sorte (do) para o Paraíso - O que me faríeis se eu viesse de ''branco''? Tendes o pequeno cofre para pôr os Vivos - dentro?»
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 165
(...)
«Embora te veja a deslizar - a deslizar
Para o teu incomunicável Túmulo -
Que pergunta agarrarei -
Que resposta arrancarei de ti
Antes que te dissipes
No mar do esquecimento?»
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 141
«Embora te veja a deslizar - a deslizar
Para o teu incomunicável Túmulo -
Que pergunta agarrarei -
Que resposta arrancarei de ti
Antes que te dissipes
No mar do esquecimento?»
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 141
1632
Assim devolvam-me à Morte -
A Morte que nunca receei
A não ser que me prive de ti -
E agora, privada pela Vida,
No meu próprio Túmulo respiro
E calculo o seu tamanho -
Um tamanho que é tudo o que o Inferno imagina -
E tudo o que o Paraíso foi -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 139
A Morte que nunca receei
A não ser que me prive de ti -
E agora, privada pela Vida,
No meu próprio Túmulo respiro
E calculo o seu tamanho -
Um tamanho que é tudo o que o Inferno imagina -
E tudo o que o Paraíso foi -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 139
«Embora possa acontecer que Eu - Lhe sobreviva
Ele terá de viver - mais do que eu -
Pois tenho apenas o poder de matar,
Sem ter - o poder de morrer -»
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 89
Ele terá de viver - mais do que eu -
Pois tenho apenas o poder de matar,
Sem ter - o poder de morrer -»
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 89
650
A Dor - tem um Elemento de Vazio -
Não se consegue lembrar
De quando começou - ou se houve
Um tempo em que não existiu -
Não tem Futuro - para lá de si própria -
O seu Infinito contém
O seu Passado - iluminado para aperceber
Novas Épocas - de Dor.
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 79
561
Meço cada Pena que encontro
Com um Olhar agudo, perscrutante -
Pergunto se é tão pesada como a que Eu tenho -
Ou se é mais Cómoda de transportar.
Pergunto se a suportam há muito tempo -
Ou se acabam de a ter -
A minha não sei dizer a sua Data -
Tão antiga me parece ser -
Pergunto se lhes dói viver assim -
E se para isso se esforçam -
E se - no caso em que pudessem escolher -
Não lhes seria preferível - morrer -
Vejo que Alguns - que demasiado sofreram -
Enfim recuperam o sorriso -
Imitando o Candeeiro
Que gasta o último Petróleo -
Pergunto-me, com o amontoar dos Anos -
Alguns Milhares - sobre o Mal -
Que tão cedo os atingiu - não poderia
Esse lapso de tempo servir-lhes de Bálsamo -
Ou se continuariam a sofrer mesmo assim
Durante Séculos de Coragem -
Iniciados numa Dor mais ampla -
Em contraste com o Amor -
Os Aflitos - são muitos - dizem-me -
Diversas são as Causas -
A Morte - apenas uma - e só chega uma vez -
E limita-se a fechar os olhos -
Há a Aflição da Carência - a Aflição do Frio -
Aquilo a que chamam ''Desespero'' -
Há um Exílio loge dos Olhos nativos -
À vista do Ar Natal -
E embora não lhe possa adivinhar a natureza -
Com exactidão - é para mim
Uma pungente Consolação
À passagem do Calvário -
Notar os figurinos - da Cruz -
E a maneira como são usados -
Ficando fascinada ao ponto de notar
Que Alguns - são iguais ao Meu -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 69 - 71
Com um Olhar agudo, perscrutante -
Pergunto se é tão pesada como a que Eu tenho -
Ou se é mais Cómoda de transportar.
Pergunto se a suportam há muito tempo -
Ou se acabam de a ter -
A minha não sei dizer a sua Data -
Tão antiga me parece ser -
Pergunto se lhes dói viver assim -
E se para isso se esforçam -
E se - no caso em que pudessem escolher -
Não lhes seria preferível - morrer -
Vejo que Alguns - que demasiado sofreram -
Enfim recuperam o sorriso -
Imitando o Candeeiro
Que gasta o último Petróleo -
Pergunto-me, com o amontoar dos Anos -
Alguns Milhares - sobre o Mal -
Que tão cedo os atingiu - não poderia
Esse lapso de tempo servir-lhes de Bálsamo -
Ou se continuariam a sofrer mesmo assim
Durante Séculos de Coragem -
Iniciados numa Dor mais ampla -
Em contraste com o Amor -
Os Aflitos - são muitos - dizem-me -
Diversas são as Causas -
A Morte - apenas uma - e só chega uma vez -
E limita-se a fechar os olhos -
Há a Aflição da Carência - a Aflição do Frio -
Aquilo a que chamam ''Desespero'' -
Há um Exílio loge dos Olhos nativos -
À vista do Ar Natal -
E embora não lhe possa adivinhar a natureza -
Com exactidão - é para mim
Uma pungente Consolação
À passagem do Calvário -
Notar os figurinos - da Cruz -
E a maneira como são usados -
Ficando fascinada ao ponto de notar
Que Alguns - são iguais ao Meu -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 69 - 71
547
Vi um Olho Moribundo
A correr à volta de um Quarto -
Em busca de Algo - era o que parecia -
Então ficou mais Enevoado -
E então - obscuro como o Nevoeiro -
E então - soldou-se
Sem revelar o que é que foi
Que o abençoou por o ter visto -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 65
A correr à volta de um Quarto -
Em busca de Algo - era o que parecia -
Então ficou mais Enevoado -
E então - obscuro como o Nevoeiro -
E então - soldou-se
Sem revelar o que é que foi
Que o abençoou por o ter visto -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 65
sábado, 20 de agosto de 2011
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
«Os ventos adormecidos ameaçam-nos com a tempestade; nada de bom pressagiam as nuvens.
As águas silenciosas esperam o vento.
Apresso-me a atravessar o rio antes de me surpreender a noite.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 112
XXXV
Tu brincas comigo com medo de que eu aprenda a conhecer-te com demasiada facilidade.
Para ocultares as tuas lágrimas, deslumbras-me com as tuas risotas.
Conheço os teus artifícios.
Nunca dizes aquilo que quererias dizer.
Escapas-me por mil maneiras com receio de que te não aprecie.
Conservas-te sozinha, afastada de todos, com medo de que confunda com a multidão.
Conheço os teus artifícios.
Nunca tomas o caminho que quererias tomar.
Tu pedes mais do que as outras e é por isso que tu és silenciosa.
Com alegre despreocupação evitas as minhas dádivas.
Conheço os teus artifícios.
Nunca tomas o que quererias tomar.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 60
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
«Apertarei contra o meu seio a tua cabeça, e aí na doce solidão, falarei baixinho ao teu coração. Fecharei os olhos e ouvir-te-ei. Não fitarei o teu semblante.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 52
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 52
XXVIII
É triste o teu ansioso olhar. Quer conhecer o meu pensamento.
Também a lua quer penetrar o mar.
Conheces toda a minha vida. Nada te ocultei. Eis porque ignoras tudo a meu respeito.
Se a minha vida fosse uma pérola, parti-la-ia em mil pedaços, e desses pedaços faria um colar que te poria no pescoço.
Se a minha vida apenas fosse uma flor, suave e diminuta, colhê-la-ia da sua haste para a pôr nos teus cabelos.
Mas, oh minha amada, ela é um coração. Quais os seus limites?
Tu não conheces os limites deste reino e, contudo, és a rainha dele.
Se o meu coração só fosse prazer, vê-lo-ias florir num ditoso sorriso e de golpe o penetrarias.
Se ele só fosse sofrimento, derreter-se-ia em límpidas lágrimas, reflectindo silenciosamente o seu segredo.
Mas, minha bem-amada, ele é amor.
São ilimitados o seu prazer e a sua mágoa.
São eternas a sua miséria e a sua riqueza.
Ele está tão perto de ti - com a tua própria vida, mas tu nunca o conhecerás todo.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 50/1
Também a lua quer penetrar o mar.
Conheces toda a minha vida. Nada te ocultei. Eis porque ignoras tudo a meu respeito.
Se a minha vida fosse uma pérola, parti-la-ia em mil pedaços, e desses pedaços faria um colar que te poria no pescoço.
Se a minha vida apenas fosse uma flor, suave e diminuta, colhê-la-ia da sua haste para a pôr nos teus cabelos.
Mas, oh minha amada, ela é um coração. Quais os seus limites?
Tu não conheces os limites deste reino e, contudo, és a rainha dele.
Se o meu coração só fosse prazer, vê-lo-ias florir num ditoso sorriso e de golpe o penetrarias.
Se ele só fosse sofrimento, derreter-se-ia em límpidas lágrimas, reflectindo silenciosamente o seu segredo.
Mas, minha bem-amada, ele é amor.
São ilimitados o seu prazer e a sua mágoa.
São eternas a sua miséria e a sua riqueza.
Ele está tão perto de ti - com a tua própria vida, mas tu nunca o conhecerás todo.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 50/1
XXVII
Crê no amor, mesmo quando ele é uma fonte de dor.
Não feches o teu coração.
Não, meu amigo, não posso compreender as tuas palavras, porque são obscuras.
O coração fez-se para ser dado, oh minha amada, com uma lágrima e uma canção.
Não, meu amigo, não posso compreender as tuas palavras, porque são obscuras.
A alegria é frágil como uma gota de orvalho. Morre, sorrindo. Mas a angústia é tenaz e forte. Deixa despertar nos teus olhos um doloroso amor.
Não, meu amigo, não posso compreender as tuas palavras, porque são obscuras.
Prefere o loto desabrochar e morrer, a viver em botão um perpétuo inverno.
Não, meu amigo, não compreendo as tuas palavras, porque são obscuras.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 49
Não feches o teu coração.
Não, meu amigo, não posso compreender as tuas palavras, porque são obscuras.
O coração fez-se para ser dado, oh minha amada, com uma lágrima e uma canção.
Não, meu amigo, não posso compreender as tuas palavras, porque são obscuras.
A alegria é frágil como uma gota de orvalho. Morre, sorrindo. Mas a angústia é tenaz e forte. Deixa despertar nos teus olhos um doloroso amor.
Não, meu amigo, não posso compreender as tuas palavras, porque são obscuras.
Prefere o loto desabrochar e morrer, a viver em botão um perpétuo inverno.
Não, meu amigo, não compreendo as tuas palavras, porque são obscuras.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 49
XXVI
Tomo o que tu de bom grado me ofereces: nada mais peço.
Sim, sim, conheço-te, modesto suplicante: queres tudo quanto tenho.
Se puder ter essa flor perdida, trá-la-ei de encontro ao coração.
E se ela tiver espinhos?
Sofrê-los-ei.
Sim, sim, conheço-te, modesto suplicante: tu queres tudo quanto tenho.
Um olhar dos teus olhos amorosos faria doce a minha vida por toda a eternidade.
E se o meu olhar é cruel?
Guardarei, no meu coração, o seu golpe.
Sim, sim, conheço-te, modesto suplicante: tu queres tudo quanto tenho.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 48
XXIV
Não sepultes dentro de ti, minha amiga, o teu segredo. Diz-mo só a mim baixinho.
Murmura-me o teu segredo, tu que tens tão meigo sorriso. Ouvi-lo-á só o meu coração e não os meus ouvidos.
A noite é profunda, a casa silenciosa, os ninhos das aves estão engolfados no sono.
Diz-me o segredo do teu coração, por entre as tuas vacilantes lágrimas e os teus perturbados sorrisos.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 46
435
Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 51
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 51
CONTABILIDADE
Quantas emílias houve na minha vida?
Vou contá-las:
a primeira, é a brontë. Uma emília do
campo, selvagem, solitária, fugindo pela
porta das traseiras sempre que o
heathcliff lhe assobiava aos ouvidos.
(Uma noite, ao fechar a janela do quarto,
na província, a mão dela agarrou-me a tempo - é
que o vento queria entrar em casa: o vento
norte, esse que faz voar reposteiros e folhas,
e fica a bater nos vidros se o
deixarmos lá fora);
a segunda é a dickinson; mas
conheço-a pior do que à outra. É
diferente um amor de adolescência, como o que
tive pela amante de heathcliff, do que paixões
de maturidade, em que a razão e emoção coexistem em pratos
iguais da balança.
(Esta emily vestia-se de
branco, enquanto que a primeira gostava de roupas
escuras. É verdade que ambas tinham relações com
presbíteros; mas admito que fossem de natureza diferente,
e que o freud não se aplique do mesmo modo
a uma ou a outra).
Sento-as, então, à mesma mesa, comigo
em frente. Digo-lhes: «Amo-vos. Tu, a inglesa,
amo-te como esse vento frio
ama os prados por onde corre, à noite, soltando
sombras e fantasmas; e a ti, à americana, amo-te
como o caruncho devora as madeiras das traves
e dos sótãos, com o rumor surdo que percorre
os desvios da eternidade.»
Ouço-as rirem-se de mim. O amor não é
isto, dizem-me. E deixo-as à conversa uma com a
outra, no seu esconderijo
de pântanos e cemitérios.
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 11/12
Vou contá-las:
a primeira, é a brontë. Uma emília do
campo, selvagem, solitária, fugindo pela
porta das traseiras sempre que o
heathcliff lhe assobiava aos ouvidos.
(Uma noite, ao fechar a janela do quarto,
na província, a mão dela agarrou-me a tempo - é
que o vento queria entrar em casa: o vento
norte, esse que faz voar reposteiros e folhas,
e fica a bater nos vidros se o
deixarmos lá fora);
a segunda é a dickinson; mas
conheço-a pior do que à outra. É
diferente um amor de adolescência, como o que
tive pela amante de heathcliff, do que paixões
de maturidade, em que a razão e emoção coexistem em pratos
iguais da balança.
(Esta emily vestia-se de
branco, enquanto que a primeira gostava de roupas
escuras. É verdade que ambas tinham relações com
presbíteros; mas admito que fossem de natureza diferente,
e que o freud não se aplique do mesmo modo
a uma ou a outra).
Sento-as, então, à mesma mesa, comigo
em frente. Digo-lhes: «Amo-vos. Tu, a inglesa,
amo-te como esse vento frio
ama os prados por onde corre, à noite, soltando
sombras e fantasmas; e a ti, à americana, amo-te
como o caruncho devora as madeiras das traves
e dos sótãos, com o rumor surdo que percorre
os desvios da eternidade.»
Ouço-as rirem-se de mim. O amor não é
isto, dizem-me. E deixo-as à conversa uma com a
outra, no seu esconderijo
de pântanos e cemitérios.
Emily Dickinson. Poemas e Cartas. Uma antologia organizada por Nuno Vieira de Almeida. Tradução de Nuno Júdice. Edições Cotovia, Lisboa, 2000., p. 11/12
terça-feira, 16 de agosto de 2011
Eu não pedia nada
«Eu não pedia nada. Eu ficava de pé, na orla do bosque, detrás da árvore.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 30
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 30
«Se corres para a morte insensatamente, vem, oh! vem ao meu lago.
Ele é frio e insondavelmente profundo.
E sombrio como um sono sem sonhos.
Lá, nos abismos, não há noites, nem dias e os cantos são silenciosos.
Vem, oh! vem ao meu lago se te quiseres abismar na morte.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 29
Ele é frio e insondavelmente profundo.
E sombrio como um sono sem sonhos.
Lá, nos abismos, não há noites, nem dias e os cantos são silenciosos.
Vem, oh! vem ao meu lago se te quiseres abismar na morte.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 29
«Em vão acendes a lâmpada que te ilumina ao vestires-te, - ela vacila e apaga-se com
o vento.
Quem pode saber se as tuas pálpebras não estão enegrecidas pelo fumo? Os teus olhos
são mais sombrios do que as nuvens da chuva.
Em vão acendes a lâmpada; ela apaga-se.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 27
o vento.
Quem pode saber se as tuas pálpebras não estão enegrecidas pelo fumo? Os teus olhos
são mais sombrios do que as nuvens da chuva.
Em vão acendes a lâmpada; ela apaga-se.»
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 27
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
VIII
Apagara-se a lâmpada ao pé do meu leito.
Pela manhã despertei com as aves.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 20
Pela manhã despertei com as aves.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 20
O SERVO
Servir-te-hei quando descansas.
Servir-te-hei quando descansas.
Conservarei fresca a relva da vereda, por onde caminhas de manhã, onde a cada um dos teus passos as flores que desejam morrer abençoam o pé que as pisa. Embalar-te-hei nos ramos da septaparna, emquanto a lua, despertando cedo ao fim da tarde, se esforçará por te beijar o vestido, através das folhagens.
Eu encherei de oleo odorifero a lampada que arde ao pé do teu leito e adornarei o teu tamborete com maravilhosos ornatos de sandalo e de pasta de açafrão.
A RAINHA
E que desejas tu para tua recompensa?
O SERVO
Apenas a liçença de apertar nas minhas mãos, os teus punhos delicados, semelhantes a tenros botões de loto; de tingir a planta dos teus pés, com o succo encarnado das petalas do Ashoka e de colher n'ellas, n'um beijo, o grão de pó que por acaso lá se tenha perdido.
Rabindranhath Tagore. O Jardineiro d' Amor. Tradução de António Figueirinhas. Livraria Nacional e Estrangeira de Eduardo Tavares Martins. Porto, 1922., p. 6/7
«Eu sabia que ela iria provavelmente ficar muito confusa e que não iria assimilar tudo de uma vez, mas também sabia que iria captar, e muito bem, o essencial. E foi exactamente isso que aconteceu. Ficou branca como um lenço branco, tentou dizer qualquer coisa, mas os lábios moviam-se penosamente; afundou-se na cadeira como se lhe tivesse caído um machado em cima. E durante todo o tempo que se seguiu, ela ouviu-se com a boca aberta e os olhos esbugalhados, estremecendo de puro terror. O cinismo, o cinismo das minhas palavras era demasiado avassalador para ela...»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 108
Quando morreres
«Quando morreres, serão mãos estranhas que te levarão, com impaciência e resmungos; ninguém te abençoará, ninguém suspirará por ti, apenas quererão livrar-se de ti o quanto antes; comprarão um caixão, sepultar-te-ão como fizeram àquela pobre mulher hoje e brindarão à tua memória na taberna.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 92
« - Porque é que tu... - começou ela e depois parou. Mas eu compreendi: havia na sua voz algo diferente, já não saía abrupta, ríspida e inabalável como antes, agora era suave e acabrunhada, tão acabrunhada que, de repente, me senti envergonhado e culpado.
- O quê? - perguntei, com enternecida curiosidade.
- Porque é que tu...
- O quê?
- Porque é que tu...falas como uma espécie de livro? - perguntou ela, e havia novamente uma nota de ironia na sua voz.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 88/9
- O quê? - perguntei, com enternecida curiosidade.
- Porque é que tu...
- O quê?
- Porque é que tu...falas como uma espécie de livro? - perguntou ela, e havia novamente uma nota de ironia na sua voz.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 88/9
muita coisa se constrói com base no respeito
«O amor é um mistério sagrado e deve ser escondido de todos os outros olhos, aconteça o que acontecer. Isso faz com que seja mais sagrado e melhor. Respeitam-se mais um ao outro e muita coisa se constrói com base no respeito.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 87
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 87
the Cambridge ladies who live in furnished souls
the Cambridge ladies who live in furnished souls are unbeautiful and have comfortable minds
(also, with the church's protestant blessings
daughters,unscented shapeless spirited)
they believe in Christ and Longfellow, both dead,
are invariably interested in so many things—
at the present writing one still finds
delighted fingers knitting for the is it Poles?
perhaps. While permanent faces coyly bandy
scandal of Mrs. N and Professor D
.... the Cambridge ladies do not care, above
Cambridge if sometimes in its box of
sky lavender and cornerless, the
moon rattles like a fragment of angry candy
E. E. Cummings 1894–1962
(also, with the church's protestant blessings
daughters,unscented shapeless spirited)
they believe in Christ and Longfellow, both dead,
are invariably interested in so many things—
at the present writing one still finds
delighted fingers knitting for the is it Poles?
perhaps. While permanent faces coyly bandy
scandal of Mrs. N and Professor D
.... the Cambridge ladies do not care, above
Cambridge if sometimes in its box of
sky lavender and cornerless, the
moon rattles like a fragment of angry candy
E. E. Cummings 1894–1962
[raise the shade]
raise the shade will youse dearie?
rain
wouldn’t that
get yer goat but
we don’t care do
we dearie we should
worry about the rain
huh
dearie?
yknow
i’m
sorry for awl the
poor girls that
gets up god
knows when every
day of their
lives
aint you,
oo-oo. dearie
not so
hard dear
you’re killing me
E. E. Cummings, “raise the shade” from Complete Poems 1904-1962, edited by George J. Firmage. Source: Poetry Foundation Complete Poems 1904-1962 (Liveright Publishing Corporation, 1991)
rain
wouldn’t that
get yer goat but
we don’t care do
we dearie we should
worry about the rain
huh
dearie?
yknow
i’m
sorry for awl the
poor girls that
gets up god
knows when every
day of their
lives
aint you,
oo-oo. dearie
not so
hard dear
you’re killing me
E. E. Cummings, “raise the shade” from Complete Poems 1904-1962, edited by George J. Firmage. Source: Poetry Foundation Complete Poems 1904-1962 (Liveright Publishing Corporation, 1991)
Reunion
This is my past where no one knows me.
These are my friends whom I can’t name—
Here in a field where no one chose me,
The faces older, the voices the same.
Why does this stranger rise to greet me?
What is the joke that makes him smile,
As he calls the children together to meet me,
Bringing them forward in single file?
I nod pretending to recognize them,
Not knowing exactly what I should say.
Why does my presence seem to surprise them?
Who is the woman who turns away?
Is this my home or an illusion?
The bread on the table smells achingly real.
Must I at last solve my confusion,
Or is confusion all I can feel?
Poem copyright ©2010 by Dana Gioia, whose most recent book of poetry is Interrogations at Noon, Graywolf Press, 2001. Source: Poetry Foundation
These are my friends whom I can’t name—
Here in a field where no one chose me,
The faces older, the voices the same.
Why does this stranger rise to greet me?
What is the joke that makes him smile,
As he calls the children together to meet me,
Bringing them forward in single file?
I nod pretending to recognize them,
Not knowing exactly what I should say.
Why does my presence seem to surprise them?
Who is the woman who turns away?
Is this my home or an illusion?
The bread on the table smells achingly real.
Must I at last solve my confusion,
Or is confusion all I can feel?
Poem copyright ©2010 by Dana Gioia, whose most recent book of poetry is Interrogations at Noon, Graywolf Press, 2001. Source: Poetry Foundation
domingo, 14 de agosto de 2011
« - Oh, não estou a fazer-te um interrogatório. Não tenho nada a ver com isso. Porque estás tão zangada? É claro que podes ter tido os teus problemas. Que tenho eu a ver com isso? Simplesmente tive pena.
-Pena de quem?
-De ti.
- Não é preciso - sussurrou ela de forma quase inaudível, fazendo novamente um leve movimento.
Aquilo enraiveceu-me imediatamente. O quê!? Eu estava a ser tão meigo com ela e ela...
-Ora, pensas que estás no caminho certo?
-Não penso nada.
-Isso é que está mal, não pensares. Compreende isso, enquanto é tempo. Ainda há tempo. Ainda és jovem, bem parecida. Podes amar, casar-te, ser feliz...
- Nem todas as mulheres casadas são felizes - retrucou bruscamente com o mesmo tom rude que usara inicialmente.
- Nem todas, claro, mas de qualquer forma é muito melhor do que a vida aqui. Infinitamente melhor. Para além disso, com amor podemos até viver sem felicidade. Até mesmo na mágoa a vida é doce. A vida é doce independentemente de como vivamos. Mas o que há aqui senão... sujidade? Pff!»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 83
Fico contente por parecer repulsivo aos olhos dela. Isso agrada-me.
«Olhei mecanicamente para a rapariga que entrara e vislumbrei uma face fresca, jovem, algo pálida, com sobrancelhas direitas e escuras e com olhos sérios, interrogativos, que me atraíram de imediato; tê-la-ia odiado se estivesse a sorrir. Comecei a olhar para ela com mais atenção e, por assim dizer, esforçadamente. Ainda não tinha conseguido pôr ordem nos meus pensamentos. Havia algo de simples e de boa índole nas feições dela, mas também algo estranhamente sério. Tenho a certeza que isso a prejudicava naquele lugar e que nenhum dos outros tolos havia reparado nela. Contudo, não se podia dizer que era uma beldade, embora fosse alta, aparentemente forte e com boa estatura. Estava vestida de forma simples. Alguma coisa detestável se agitou dentro de mim. Fui logo ter com ela.
Por acaso olhei para o espelho. Achei que o meu rosto perturbado era extremamente repugnante, pálido, irado, abjecto, com o cabelo desalinhado.
«Não importa, fico contente», pensei. «Fico contente por parecer repulsivo aos olhos dela. Isso agrada-me.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 78/9
«A luz dos candeeiros das ruas desertas brilhava mortiça na escuridão nevada, como a das tochas num funeral. A neve esgueirava-se para dentro do meu sobretudo, do meu casaco, para baixo da minha gravata e derretia-se. Não me agasalhei. De qualquer forma, estava tudo perdido.»
sábado, 13 de agosto de 2011
Beatrice: altiva como um raio de sol que atravessa os diamantes
«Um pouco afastado, numa loggia, estava Palla degli Albizzi com o seu amigo Tomaso, o pintor. Pareciam estar a discurtir qualquer coisa com uma animação crescente, até que Tomaso exclamou de súbito: 'Isso não fazes tu! Aposto que não o fazes!' Nesta altura os outros ficaram atentos. 'Que tens?', perguntou Gaetano Strozzi, que se aproximou com amigos. Tomaso explicou: 'Palla quer ajoelhar-se na festa diante Beatrice Altichieri, essa arrogante, e perdir-lhe que o deixe beijar-lhe a bainha empoeirada do vestido.' Todos riram, e Leonardo, da estirpe dos Riccardi, disse: 'Palla cairá em si, sabe bem que as mulheres mais belas têm um sorriso para ele que noutras ocasiões jamais se lhes vê.' E outro acrescentou: 'E Beatrice é tão jovem ainda! Os seus lábios têm ainda bastante rigidez infantil para sorrirem. Por isso parece tão altiva.' 'Não!', respondeu Palla degli Albizzi com impetuosidade. 'Ela é tão altiva, mas não por causa da sua juventude. É altiva como uma pedra nas mãos de Miguel Ângelo; altiva como uma flor na imagem de Madona; altiva como um raio de sol que atravessa os diamantes.'
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 88
Mas agora que estou a envelhecer
«Mas agora que estou a envelhecer, tenho por vezes ideias, ideias estranhas como aquela sobre o Céu, e outras mais. A Morte.»
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 61
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 61
«Em primeiro lugar, passava a maior parte do meu tempo em casa, a ler. Tentei abafar tudo o que lhe fervilhava constantemente dentro de mim por via de impressões externas. E a única forma externa a meu dispor era ler. Ler, claro, era uma grande ajuda: excitava-me, dava-me prazer e dor. Mas por vezes entediava-me terrivelmente. Apesar de tudo, ansiamos sempre por algum movimento e eu mergulhava de cabeça nos vícios da pior espécie, nos mais sombrios, clandestinos e detestáveis vícios. As minhas malditas paixões eram agudas e dolorosas devido à minha contínua e doentia irritabilidade. Tinha impulsos histéricos, com lágrimas e convulsões. Não tinha outro recurso senão a leitura, quero dizer, nada daquilo que me rodeava merecia o meu respeito ou me atraía. Também estava esmagado pela depressão. Sentia ânsia pela incongruência e pelo contraste, por isso recorri ao vício. Não disse tudo isto para me justificar...Não!»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 46
«(...), esse vogar suave e silencioso à beira de passados.»
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 52
«Aqueles Kurgans são sarcófagos de gerações passadas, que atravessam a estepe inteira com um marulhar entorpecido e dormente. E, nessa terra, em que os jazigos são as montanhas, os homens são os abismos. Grave, sombria, taciturna é a população, e as suas palavras servem apenas de pontes frágeis e vacilantes sobre o seu verdadeiro ser. Por vezes, avez negras levantam voo dos kurgans. Por vezes, canções ferozes lançam-se contra esses homens sonhadores e perdem-se neles profundamente, enquanto as aves vão desaparecendo no céu.»
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 45
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
«Não gostará talvez o homem de outra coisa para além do bem-estar? Não poderá talvez o sofrimento ser-lhe igualmente querido? Não será talvez o sofrimento um benefício tão grande para ele como o bem-estar? Às vezes, o homem está estraordinária e apaixonadamente enamorado pelo sofrimento; é um facto. Não há necessidade de recorrer à história universal para o provar; basta que se pergunte se são homens e se viveram realmente. No que toca à minha opinião pessoal, preocuparmo-nos somente com o bem-estar parece-me verdadeiramente má educação. Seja bom ou mau, às vezes também é muito agradável em destruir coisas. Não advogo o sofrimento, assim como não advogo o bem-estar. Estou a favor do meu...capricho e de que este me esteja assegurado quando necessário.
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 34
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Isto faz-me pensar numa certa rapariga jovem.
«Isto faz-me pensar numa certa rapariga jovem. Pode dizer-se que nos primeiros dezassete anos da sua severa vida apenas olhou. Os seus olhos eram tão grandes e tão autónomos, que eles próprios consumiam o que percepcionavam, e a vida prosseguia por todo o corpo do jovem ser, independente deles, sustida por simples ruídos interiores. Porém, passado esse tempo, um acontecimento demasiado violento transformou aquelas duas vidas que mal se tocavam; os olhos como que irromperam pelo interior dentro, e, através deles, todo o peso do exterior caiu no coração obscurecido; e, a cada dia, esse peso se despenhava com tal ímpeto naqueles olhos abruptos e profundos, que no peito estreito o coração se quebrava como um vidro. Então a jovem rapariga empalideceu, começou a adoecer, a isolar-se para reflectir e por fim, por si própria, procurou aquela tranquilidade em que provavelmente os pensamentos já não são perturbados.
«Como é que ela morreu?», perguntou baixinho o meu amigo, com voz algo rouca. «Afogou-se. Num lago profundo e silencioso e à superfície do mesmo, formaram-se muitos círculos que lentamente cresceram e se alargaram sob os brancos nenúfares, de forma que todas estas flores aquáticas se agitaram.
«Isto também é uma história?» disse Ewald, não deixando o silêncio prevalecer depois das palavras.
«Não» respondi eu, « isto é um sentimento».
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 43/4
A Morte
«Nem sequer posso ir ao encontro da Morte. Muitos tropeçam nela a caminhar. A Morte tem medo de lhes entrar em casa e chama-os para fora, para outras terras, para a guerra, para o cimo de uma torre altaneira, para cima duma ponte vacilante, para o deserto, para a loucura. A maioria vai buscá-la à rua, e sem dar por isso leva-a para casa, às costas. Porque a Morte é preguiçosa; se os homens não a importunassem a toda a hora, quem sabe? Talvez se deixasse cair no sono.»
Rainer Maria Rilke. Histórias do Bom Deus. Trad. Sandra Filipe. Edições Quasi, 1ª edição, 2008., p. 42
Dizem que Cleópatra
«Dizem que Cleópatra (permitam-me dar um exemplo da história romana) gostava de espetar alfinetes dourados nos seios das suas escravas e que os gritos e contorções destas lhe proporcionavam alguma satisfação. Dir-me-ão que isso se passou em tempos comparativamente bárbaros; que os tempos que vivemos actualmente também são bárbaros, porque, falando comparativamente, também se espetam alfinetes; que embora o homem tenha aprendido a ver mais claramente do que nas eras bárbaras, ainda está longe de ter aprendido a agir como a razão e a ciência ditam.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 25
«Mas o homem tem uma predilecção por sistemas e deduções abstractas que está pronto a distorcer a verdade intencionalmente, está pronto a negar as evidências que advém dos sentidos, somente para justificar a sua lógica. Escolhi este exemplo porque é o caso mais flagrante do que acabei de dizer. Basta olharmos à nossa volta: o sangue é derramado aos litros e com o mais leve dos ânimos, como se fosse champanhe. Veja-se o exemplo de todo o século XIX no qual Buckle viveu. Veja-se Napoleão, o Grande, e também o actual. Veja-se a América do Norte - a eterna união. Veja-se a farsa de Schleswig-Holstein...E afinal o que é que a civilização torna mais brando em nós? A única mais-valia da civilização para a humanidade é possibilitar uma maior variedade de sensações...e absolutamente mais nada. E com o desenvolvimento da capacidade de ser multifacetado, o homem pode chegar a ponto de encontrar prazer no derramamento de sangue. De facto, isto já lhe aconteceu. Já repararam que os homens mais civilizados foram os sanguinários mais subtis, aos calcanhares de quem os Átilas e os Stenka Razins não conseguem chegar?»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 24/5
Canções da Experiência
No Reino em cada rua vaguei
Rondei o Tâmisa fluente
E em cada face notei
Sinais da dor contundente
Em cada homem um grito atroz
Em cada criança um silvo arrepiante
Em cada negação, em cada voz
Os grilhões que forjou nossa mente
O lamento do mísero criado
Consterna as igrejas sombrias
E as lágrimas do infeliz soldado
Como sangue escorrem pelas lajes frias
Mas à meia-noite escuto na praça
As ameaças da Jovem Meretriz
Que o destino da criança desgraça
E o Cortejo Nupcial maldiz.
William Blake. O Casamente do Céu e do Inferno e outros escritos. Tradução e notas de
Alberto Marsicano, L&PM Editores, Porto Alegre., pg. 119.
Rondei o Tâmisa fluente
E em cada face notei
Sinais da dor contundente
Em cada homem um grito atroz
Em cada criança um silvo arrepiante
Em cada negação, em cada voz
Os grilhões que forjou nossa mente
O lamento do mísero criado
Consterna as igrejas sombrias
E as lágrimas do infeliz soldado
Como sangue escorrem pelas lajes frias
Mas à meia-noite escuto na praça
As ameaças da Jovem Meretriz
Que o destino da criança desgraça
E o Cortejo Nupcial maldiz.
William Blake. O Casamente do Céu e do Inferno e outros escritos. Tradução e notas de
Alberto Marsicano, L&PM Editores, Porto Alegre., pg. 119.
Ottla
«Tu próprio me confessaste que ela só te traz sofrimentos e desgostos, e que o faz de propósito; e enquanto tu sofres por causa dela, ela não se ressente e até se alegra. Uma espécie de diabo, em suma. Um desconhecimento tão grande só pode resultar de um afastamento ainda maior do que existe entre ti e mim. Ela está tão distante de ti que tu quase já não a vês e colocas um fantasma no lugar onde julgas vê-la. Reconheço que a relação com ela foi mais difícil do que qualquer outra.»
Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 46/7
Chamavas aos empregados «inimigos assalariados»
«Chavamas aos empregados «inimigos assalariados», e eles eram isso mesmo, mas antes de chegarem a sê-lo já tu me parecias ser o inimigo que lhes pagava o salário. Foi aí que aprendi a grande lição, a de que também eras capaz de ser injusto; por mim, não teria reparado nisso tão cedo, havia demasiado sentimento de culpa acumulado e a dar-te razão; mas ali, achava eu, na minha opinião infantil - que mais tarde corrigi, mas não muito -, ali havia gente estranha que trabalhava para nós e vivia num permanente medo de ti. É claro que também nisto exagerava um pouco, porque partia do princípio de que a tua acção sobre essas pessoas era tão terrível como sobre mim próprio.»
Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 40/1
insultavas sem pensar no que dizias
Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p.27
quarta-feira, 10 de agosto de 2011
«A tua simples presença física já me esmagava. Lembro-me, por exemplo, de quando nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro, fraco, esguio; tu, forte, alto, largo. Logo na cabine, já me sentia uma figura lamentável, não apenas perante ti, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras para mim a medida de todas as coisas. E ao sairmos da cabine e enfrentarmos as pessoas, eu pela tua mão, um pequeno esqueleto inseguro e descalço sobre as tábuas, com medo da água, incapaz de imitar os teus movimentos a nadar, que repetias, com as melhor das intenções, mas na verdade para minha profunda humilhação - nessas alturas eu entrava em desespero e todas as minhas piores experiências, em todos os campos, se encontravam em grandiosa convergência. Sentia-me sempre muito melhor quando tu mudavas de roupa em primeiro lugar e eu ficava sozinho na cabine, adiando quanto podia a vergonha de sair, até tu voltares para me arrancares dali. E ficava-te grato por não pareceres dar pela minha aflição, e tinha orgulho do corpo do meu pai. Aliás, estas diferenças entre nós continuam a existir ainda hoje.
A isto juntava-se ainda a tua supremacia intelectual. Chegaras tão longe à tua própria custa, e por isso tinhas essa confiança sem limites nas tuas opiniões. Em criança não ficava tão fascinado com isso como quando comecei a entrar na adolescência. Tu governavas o mundo a partir da tua poltrona. A tua opinião era a única correcta, todas as outras eram absurdas, exageradas, bizarras, anormais. E a confiança que tinhas em ti era tão grande que nem sequer precisavas de ser coerente, mas nunca deixavas de ter razão. Acontecia até não teres opinião sobre um assunto, e consequentemente consideravas liminarmente falsas todas as opiniões possíveis sobre ele.»
Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p.16/7
terça-feira, 9 de agosto de 2011
« - O que quero dizer é que não sei onde estou. Não sei mesmo - prosseguiu com muita sinceridade. - C'os diabos! Devo ter-me afastado do rumo. O nevoeiro anda atrás de mim há uma semana. Há mais de uma semana!»
Joseph Conrad. O Conto. Trad. Bárbara Pinto Coelho, 1ª edição, Edições Quasi, 2008., p. 82
A noite cega-nos...
«A noite cega-nos... e existem situações com o raiar do Sol que para alguns são tão odiosas como a própria falsidade. A noite é sempre boa.»
Joseph Conrad. O Conto. Trad. Bárbara Pinto Coelho, 1ª edição, Edições Quasi, 2008., p. 72
Joseph Conrad. O Conto. Trad. Bárbara Pinto Coelho, 1ª edição, Edições Quasi, 2008., p. 72
Parricídio
«Procurou as solidões. O vento, porém, trazia-lhe aos ouvidos como que gemidos de agonia, as lágrimas do orvalho que caíam no chão lembravam-lhe outras gotas bem mais pesadas. Todos os dias à tardinha, o Sol derramava sangue pelas nuvens; e, todas as noites, em sonhos, recomeçava o seu parricídio.»
Gustave Flaubert. A Lenda de São Julião Hospitaleiro. Tradução de Maria Emanuel Côrte-Real e Júlio Machado. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 87
A necessidade de se envolver com a vida de outras pessoas fazia-o descer à cidade
«A necessidade de se envolver com a vida de outras pessoas fazia-o descer à cidade. Porém, o aspecto bestial das caras, a barulheira dos ofícios, a indiferença gelavam-lhe o coração. Nos dias de festa, quando o sino grande das catedrais enchia, logo ao nascer o Sol, todo o povo de alegria, observava os habitantes a sair das suas casas, e depois as danças nas praças, as bicas de cerveja nos cruzamentos, as tapeçarias de damasco na fachada dos palácios dos príncipes e, ao cair da noite, pelas vidraças dos rés-do-chão, as compridas mesas das famílias, onde os avós tinham os netos sentados ao colo. Os soluços sufocavam-no e regressava ao campo.»
Gustave Flaubert. A Lenda de São Julião Hospitaleiro. Tradução de Maria Emanuel Côrte-Real e Júlio Machado. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 86/7
Ele nada respondia, ou desatava em soluços - até que um dia, finalmente, confessou o seu terrível pensamento.
«Para o animar, a mulher mandou chamar malabaristas e dançarinas. Passeava com ele pelo campo numa liteira aberta - ou então, estendidos na extremidade de uma chalupa, viam os peixes a vaguear na água, clara como o céu. Outras vezes, ela gostava de lhe lançar flores ao rosto. Acocorada a seus pés, tirava melodias de um bandolim de três cordas. Depois, pousando-lhe no ombro ambas as mãos juntas, perguntava-lhe com uma voz tímida:
«Que tendes vós, meu amado senhor?»
Ele nada respondia, ou desatava em soluços - até que um dia, finalmente, confessou o seu terrível pensamento.»
Gustave Flaubert. A Lenda de São Julião Hospitaleiro. Tradução de Maria Emanuel Côrte-Real e Júlio Machado. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 76
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
Com a cabeça entre as mãos, chorou durante muito tempo.
«A noite aproximava-se. Por detrás dos bosques, entre os ramos, o céu mostrava-se vermelho como um lençol de sangue.
Julião encostou-se a uma árvore. Estupefacto, contemplava a enormidade da matança, sem compreender como pudera tê-la cometido.
Do outro lado do vale, na orla da floresta, avistou um veado, uma corça e a sua cria.
O veado, que era negro e de tamanho monstruoso, tinha dezasseis galhos e barba branca. A corça, dourada como folhas secas, andava a pastar; e a cria, malhada, ia mamando na teta da mãe, sem lhe interromper o pasto.
A besta soou uma vez mais. De imediato, a cria tombou morta. Então a mãe, pregando os olhos no céu, soltou um bramido profundo, angustiante, humano. Julião, exasperado, deitou-a por terra com um tiro no peito.
O grande veado tinha-o visto e deu um salto. Julião atirou a sua última seta, que o atingiu na testa, e aí ficou cravada.
O grande veado pareceu não a sentir e, saltando por cima dos mortos, avançava sempre e ia investir contra ele, esventrá-lo; Julião recuava num pavor indescritível. Porém, o prodigioso animal parou; e, de olhos flamejantes, solene como um patriarca ou um justiceiro, enquanto ao longe repicava um sino, repetiu três vezes:
«Maldito! Maldito! Maldito! Um dia, ó coração feroz, matarás o teu pai e a tua mãe!»
Dobrou os joelhos, fechou lentamente os olhos e morreu.
Julião ficou atónito e, sentindo-se tomado por um súbito cansaço, foi invadido por um desgosto, por uma tristeza imensa. Com a cabeça entre as mãos, chorou durante muito tempo.»
Gustave Flaubert. A Lenda de São Julião Hospitaleiro. Tradução de Maria Emanuel Côrte-Real e Júlio Machado. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 68/9
Julião encostou-se a uma árvore. Estupefacto, contemplava a enormidade da matança, sem compreender como pudera tê-la cometido.
Do outro lado do vale, na orla da floresta, avistou um veado, uma corça e a sua cria.
O veado, que era negro e de tamanho monstruoso, tinha dezasseis galhos e barba branca. A corça, dourada como folhas secas, andava a pastar; e a cria, malhada, ia mamando na teta da mãe, sem lhe interromper o pasto.
A besta soou uma vez mais. De imediato, a cria tombou morta. Então a mãe, pregando os olhos no céu, soltou um bramido profundo, angustiante, humano. Julião, exasperado, deitou-a por terra com um tiro no peito.
O grande veado tinha-o visto e deu um salto. Julião atirou a sua última seta, que o atingiu na testa, e aí ficou cravada.
O grande veado pareceu não a sentir e, saltando por cima dos mortos, avançava sempre e ia investir contra ele, esventrá-lo; Julião recuava num pavor indescritível. Porém, o prodigioso animal parou; e, de olhos flamejantes, solene como um patriarca ou um justiceiro, enquanto ao longe repicava um sino, repetiu três vezes:
«Maldito! Maldito! Maldito! Um dia, ó coração feroz, matarás o teu pai e a tua mãe!»
Dobrou os joelhos, fechou lentamente os olhos e morreu.
Julião ficou atónito e, sentindo-se tomado por um súbito cansaço, foi invadido por um desgosto, por uma tristeza imensa. Com a cabeça entre as mãos, chorou durante muito tempo.»
Gustave Flaubert. A Lenda de São Julião Hospitaleiro. Tradução de Maria Emanuel Côrte-Real e Júlio Machado. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p. 68/9
VI
«Oh, se ao menos nada tivesse feito por simples preguiça! Céus, como me teria respeitado. Teria conseguido respeitar-me porque, pelo menos, havia sido capaz de ser preguiçoso; teria havido em mim pelo menos uma qualidade que quase poderíamos dizer positiva e que serviria para eu acreditar em mim mesmo. Pergunta: o que é ele? Resposta: um mandrião. Que agradável teria sido ouvir tal coisa sobre a minha pessoa! Quereria dizer que eu estava absolutamente definido, quereria dizer que havia algo a dizer sobre mim. «Mandrião»: vejam bem, é um chamamento e uma vocação, é uma carreira. Não gracejem, é isso mesmo.»
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 17
«(...) os nossos olhos exaustos que continuavam à espera, permanentemente à espera, ansiosamente à espera de algo da vida, que se esvai enquanto se espera - passa desapercebida, como um suspiro, como um lampejo - a par da juventude, da pujança, do romance das ilusões.»
Joseph Conrad. Juventude. Trad. Bárbara Pinto Coelho, 1ª edição, Edições Quasi, 2008., p. 61/2
«Recordo os rostos exaustos, as figuras abatidas dos meus dois homens, e recordo a minha juventude e uma sensação que nunca mais tive - a sensação de que viveria para sempre, que sobreviveria ao mar, à terra e a todos os homens; a sensação enganosa que nos conduz a alegrias, a perigos, ao amor, ao esforço inútil - à morte; a triunfante convicção da pujança, o calor da vida numa mão cheia de pó, a chama do coração que ano após ano se esvai, esfria, encolhe e se extingue - e extingue-se demasiado cedo, tão cedo - antes da própria vida.»
Joseph Conrad. Juventude. Trad. Bárbara Pinto Coelho, 1ª edição, Edições Quasi, 2008., p. 38/9
«Não se via uma nesga de céu a descoberto - nem do tamanho da mão de um homem - , nadinha, nem por dez míseros segundos. Para nós não havia céu, para nós não havia estrelas, sol, universo - nada além de nuvens iradas e mar enraivecido. Bombeámos quarto após quarto para salvar as nossas vidas. E tudo aquilo pareceu durar meses, anos, toda a eternidade, como se estivéssemos morrido e ido para o inferno dos marinheiros. Já não sabíamos em que dia da semana estávamos, o nome do mês, qual o ano, e se alguma vez estivéramos em terra firme. As velas foram pelos ares, o navio seguia de través apenas com a sanefa da ponte, o oceano jorrava-lhe em cima, e nós, impávidos. Rodávamos aqueles manípulos com olhos vidrados. E quando, rastejando, lá chegávamos ao convés, eu agarrava num tomadouro e, dando-lhe volta redonda, passava-o pelos homens, pelas bombas e pelo mastro grande, e rodávamos, rodávamos continuamente, com água pela cintura, pelo pescoço, com água a cobrir-nos a cabeça. Tanto se nos fazia. Tinhamo-nos esquecido como era estarmos secos.»
Joseph Conrad. Juventude. Trad. Bárbara Pinto Coelho, 1ª edição, Edições Quasi, 2008., p. 20/1