terça-feira, 28 de junho de 2011
Há noites
Há noites que nos deixam para trás
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 118
Enrolados no nosso desencanto
Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 118
CANÇÃO ENTREGUE AO NADA
Hoje venho oferecer esta tristeza às coisas
No gesto esquivo de não as desejar.
Pôs em minha alma como o sol nas frias lousas
A vida o gosto de esplandecer em recusar.
São-me alheias estas margens onde corre
O destino que aos dados aos deuses eu lancei.
O que me dói é ver que tudo morre
Noutras mãos em gestos que tracei.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 87/8
No gesto esquivo de não as desejar.
Pôs em minha alma como o sol nas frias lousas
A vida o gosto de esplandecer em recusar.
São-me alheias estas margens onde corre
O destino que aos dados aos deuses eu lancei.
O que me dói é ver que tudo morre
Noutras mãos em gestos que tracei.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 87/8
ELA E NÓS
Platero: ela ia talvez - para onde? - naquele comboio negro e cheio de sol que, lá em cima, recortando-se nas grossas nuvens brancas, fugia para o norte.
Eu estava em baixo, contigo, no trigo amarelo e ondulante, todo gotejado pelo sangue das papoilas a que Julho punha já uma coroazinha de cinza. E as nuvenzinhas de vapor celeste - lembras-te? - entristeciam um momento o sol e as flores, rodando em vão para o nada...
Breve cabeça loura, velada de negro...! Era como o retrato da ilusão na moldura fugaz da janela.
Talvez ela pensasse: - Quem será aquele homem de luto e aquele burrico de prata?
Quem havia de ser! Nós...Não é, Platero?
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.88
segunda-feira, 27 de junho de 2011
«(...) as palavras morreram-lhe nos lábios, as lágrimas e os soluços atacaram-no, precipitou-se para fora da sala como um louco.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 116
«Via-se que o pintor, primeiro, dera guarida na sua alma a tudo o que bebera do mundo exterior e que só depois, tirando-o da nascente da alma, o transformara num canto harmonioso e solene.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 115
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 115
«Um belo dia encontrou em cima da sua mesa uma carta da Academia das Belas-Artes em que lhe era pedido que, na sua qualidade de membro emérito, desse a sua opinião sobre uma obra nova, enviada de Itália, pintada por um russo que aperfeiçoara a sua arte nesse país. Este pintor era um dos seus antigos colegas, um artista que guardara desde os seus verdes anos a paixão pela arte, que mergulhara nela com toda a sua alma ardente de trabalhador, que se afastara dos amigos e da família, que abandonara os queridos hábitos e correra para as terras onde, sob os céus divinos, amadurecem os majestosos viveiros das artes - para aquela Roma divina de que basta apenas dizer o nome para que pulse forte e plenamente o coração do artista. Lá, como um eremita, embrenhou-se no trabalho e nos estudos, sem se deixar distrair com nada. Tanto se lhe dava que os outros cochichassem sobre o seu carácter, sobre a sua incapacidade de lidar com o próximo, sobre a violação das regras da boa educação mundana, sobre a humilhação que a sua roupa pobre e deselegante causava ao título de artista. Não lhe importava que os seus irmãos artistas estivessem ou não zangados com ele. Desprezava tudo, entregava-se todo à arte. Visitava incansavelmente as galerias, ficava horas absorto diante as obras dos grandes mestres, na busca, na perseguição do pincel milagroso. »
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 113
Fico caída de olhos postos no horizonte; engolida pelo calor da terra, como se, algures, a força para me levantar fosse esmorecendo. Sinto-me a abandonar o caminho. Cada dia mais só, rindo por dentro com amargura, colhendo os espinhos dessas palavras que eu vi dentro da vossa alma; se soubésseis o quanto vos esperei, e o quanto me desiludi ao ver-me, subitamente, diante o espelho que intuíra. Como me dói ter confiado na vossa mão estendida, com amizade, na pomba que lançada do vale, percorria todas as distâncias. Lá no alto, onde as nuvens se amontoam como algodão, vem, o auxílio do teu terno afago, ser, que eu nunca pude ter nos braços. Ó estrela fúnebre alumia o meu coração ferido, cansado, prestes a afundar-se no poço de águas turvas! Caminho para dentro, para o deserto. Fraca, com orgulho que fere, sentenciando uma amarga corrosão. E se a corda aperta o pescoço, devo travar as lágrimas, afastar-me da tua chama, que me queima a lucidez aos poucos. Pouco mais serei do que uma folha desprendida do galho; serei sempre a semente que o semeador quis ver morrer e, mais que isso, mágoa, enquanto em mim viver o sangue que me lançou em tão árido deserto.
«(...) Vê se tens paciência. Reflecte bem sobre cada trabalho que fazes, deixa-te de elegâncias e deixa o dinheiro para os outros. O êxito não te foge.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 81
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. O Retrato. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 81
domingo, 26 de junho de 2011
O Poço
O poço...! Platero, que palavra tão funda, tão verde-negra, tão fresca, tão sonora! Parece que é a palavra que perfura, girando, a terra escura, até chegar à água fria.
Olha; a figueira adorna e destroça-lhe o parapeito. Dentro, ao alcance da mão, abriu-se, entre os ladrilhos limosos, uma flor azul de cheiro penetrante. Uma andorinha tem, mais abaixo, o ninho. E depois, para lá de um pórtico de sombra gelada, há um palácio de esmeralda, e um lago, que, ao atirar-se uma pedra para a sua placidez, se zanga e grunhe. E o céu, por fim.
(Entra a noite, e a lua inflama-se lá no fundo, ornada de volúveis estrelas. Silêncio! Pelos caminhos, a vida partiu para longe. Pelo poço escapa-se a alma para o fundo. Vê-se através dele como que o outro lado do crepúsculo. E parece que da sua boca vai sair o gigante da noite, senhor de todos os segredos do mundo. Ó labirinto quieto e mágico, parque sombrio e fragrante, magnético salão encantado!)
- Platero, se algum dia me deitar a este poço, não será para me matar, acredita, mas para alcançar mais depressa as estrelas.
Platero zurra, sedento e anelante. Do poço sai, assustada, inquieta e silenciosa, uma andorinha.
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.73
CANTOS DE SAFO PARA ÁTIS
Mon Athis n'est pas revenue sur ses pas!...
Safo
I
Espero-a num silêncio de margem
enfeitiçada do rio e da viagem.
E na noite mais densa e mais acesa
onde aranhas de luz tecem um corpo
para a sua alma de princesa.
II
Desfez-se a brisa em meu cabelo agreste
Átis de corpo vegetal
perfumado e silvestre.
Lírio florido na mão que te procura
com delírios nos olhos
mordidos na cintura.
III
Como pombas
seus seios vêm pousar nas minhas mãos.
Estremecem e partem.
Como pombas minhas mãos os perseguem.
IV
Virginal
abandonou-se no meu colo
claro e penetrante como o olhar de Apolo.
Partiu
purificada na alegria
dum corpo que lhe dei.
Fiquei
na estrela que o brilho me copia.
Acesa mas tão fria.
V
Lentos meus gestos desenham o seu rosto
rasgando a escuridão da sua ausência.
E o meu canto enleia-se no gosto
de a cantar em distância e em transparência.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 87/8
DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA
Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.
Aquilo em que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe
na nossa mão o punhal
para vibrar aquela morte
que nos mata devagar.
E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 83
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.
Aquilo em que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe
na nossa mão o punhal
para vibrar aquela morte
que nos mata devagar.
E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 83
VI
Ó noite rosa de cabelos negros
com incêndios nos espinhos.
Bebida na taça dos meus olhos
como os vinhos.
Ó noite carne escura. Marinheiro
Viagem de que fantástico veleiro?
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 79
com incêndios nos espinhos.
Bebida na taça dos meus olhos
como os vinhos.
Ó noite carne escura. Marinheiro
Viagem de que fantástico veleiro?
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 79
Nocturnos
I
Lividez da noite sentida no que alcanço
dum mistério sensível nos teus charcos.
Porque me olhas com olhar parado?
Porque me possuis exterior impávida intangível?
Porque não vens beber na minha seiva
o que retarda a morte a que me condenei
num sonho de merecer o teu mistério?
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 77
Lividez da noite sentida no que alcanço
dum mistério sensível nos teus charcos.
Porque me olhas com olhar parado?
Porque me possuis exterior impávida intangível?
Porque não vens beber na minha seiva
o que retarda a morte a que me condenei
num sonho de merecer o teu mistério?
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 77
VOU DAS ANTÍTESES PARA O ABSOLUTO
Não expulsarei os deuses e os demónios
que discutem a posse da minha alma.
Quero pregar-me na cruz dos ventos
e descer-me depois na manhã calma.
Eles que pintem minha pintura essencial
com o sangue onde me exigem a dor da vida.
Que sejam deuses e demónios a justificar
a imortalidade a que estou prometida.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 71
que discutem a posse da minha alma.
Quero pregar-me na cruz dos ventos
e descer-me depois na manhã calma.
Eles que pintem minha pintura essencial
com o sangue onde me exigem a dor da vida.
Que sejam deuses e demónios a justificar
a imortalidade a que estou prometida.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 71
RECOMPENSA
Despedaçada na vertente duma súplica
fiquei intacta. Silente. Absoluta.
Nos meus passos mais certos os vestígios.
Nos meus olhos mais límpidos as águas.
No meu corpo mais nitidez de lírio.
Recompensa bebida na fonte dum martírio.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 70
fiquei intacta. Silente. Absoluta.
Nos meus passos mais certos os vestígios.
Nos meus olhos mais límpidos as águas.
No meu corpo mais nitidez de lírio.
Recompensa bebida na fonte dum martírio.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 70
sábado, 25 de junho de 2011
A árvore do Curral
Esta árvore, Platero, esta acácia que eu próprio semeei, verde chama que foi crescendo, Primavera após Primavera, e que agora mesmo nos cobre com a sua abundante e franca folhagem atravessada pelo sol poente, era, enquanto vivi nesta casa, hoje fechada, o melhor suporte para a minha poesia. Qualquer ramo seu, engalanado de esmeralda por Abril ou de ouro por Outubro, me refrescava o rosto, só de olhá-lo um pouco, como a mão mais pura de uma musa. Que delicada, que grácil, que bonita era!
Hoje, Platero, é senhora de quase todo o curral. Que densa se pôs! Não sei se se lembrará de mim. A mim, parece-me outra. Neste tempo todo em que me tinha esquecido dela, como se não existisse, a Pimavera foi-a moldando, ano após ano, a seu capricho, fora do agrado do meu sentimento.
Não me diz nada hoje, apesar de ser uma árvore, e uma árvore plantada por mim. Uma árvore qualquer que acariciamos pela primeira vez, enche-nos de sentido o coração, Platero. Uma árvore que amámos tanto, que tão bem conhecemos, não nos diz nada quando a voltamos a ver, Platero. É triste; mas é inútil dizer mais. Não, já não consigo ver, nesta fusão da acácia com o ocaso, a minha lira pendurada. O ramo gracioso já não me traz o verso, nem a iluminação interna da copa o pensamento. E aqui, aonde tantas vezes vim na minha vida, com uma ilusão de solidão musical, fresca e perfumada, sinto-me mal, e tenho frio, e quero ir-me embora, como outrora do casino, da botica ou do teatro, Platero.
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.64
Amizade
Entendemo-nos bem. Eu deixo-o ir à sua vontade e ele leva-me sempre onde eu quero.
Platero sabe que, ao chegar ao pinheiro da Coroa, gosto de me aproximar do tronco, acariciá-lo e olhar o céu através da sua enorme e clara copa; sabe que me deleita o caminhito que leva, entre a relva, até à Fonte velha; que é para mim uma festa ver o rio do alto da colina dos pinheiros, evocadora, com seu bosquezinho elevado, de clássicas paragens. Se dormito, confiado, em cima dele, o meu despertar abre-se sempre para um desses amáveis espectáculos.
Trato Platero como se fosse um menino. Se o caminho se torna fragoso, e lhe custa um pouco, desmonto para aliviá-lo. Beijo-o, engano-o, faço-o afirmar...Percebe bem que o amo e não me guarda rancor. É igual a mim, tão diferente dos outros, que cheguei a pensar que sonha os meus próprios sonhos.
Platero rendeu-se-me como uma adolescente apaixonada. De nada protesta. Sei que sou a sua felicidade. Até foge dos burros e dos homens....
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p.62
ESTUDANTE 4 (Com assombro.)
Mas não te deste conta de que a Julieta que estava no sepulcro era um rapaz disfarçado, um truque do Director, e que a verdadeira Julieta estava amordaçada debaixo dos assentos?
ESTUDANTE 5 (Desatando a rir.)
Pois gostei! Parecia muito bonita, e se era um rapaz disfarçado não me importo nada. E nunca teria ficado com o sapato daquela fulana coberto de pó que gemia como uma gata debaixo das cadeiras.
ESTUDANTE 3
E, no entanto, foi por isso que a mataram.
ESTUDANTE 5
Porque estão loucos. Mas a mim que todos os dias trepo duas vezes à montanha e guardo, depois de acabar as aulas, uma enorme manada de touros, com que tenho de lutar e vencer a cada instante, não me sobra tempo para pensar se é homem ou mulher ou criança, só sei que gosto com toda a alegria do desejo.
ESTUDANTE 1
Bonito! E se eu me quiser apaixonar por um crocodilo?
ESTUDANTE 5
Apaixonas-te.
ESTUDANTE 1
E se eu me quiser apaixonar por ti?
ESTUDANTE 5 (Atirando-lhe com o sapato.)
Apaixonas-te também, eu deixo, e levo-te em ombros pelos penhascos.
ESTUDANTE 1
E destruímos tudo.
ESTUDANTE 5
Os telhados e as famílias.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 82/3
Mas não te deste conta de que a Julieta que estava no sepulcro era um rapaz disfarçado, um truque do Director, e que a verdadeira Julieta estava amordaçada debaixo dos assentos?
ESTUDANTE 5 (Desatando a rir.)
Pois gostei! Parecia muito bonita, e se era um rapaz disfarçado não me importo nada. E nunca teria ficado com o sapato daquela fulana coberto de pó que gemia como uma gata debaixo das cadeiras.
ESTUDANTE 3
E, no entanto, foi por isso que a mataram.
ESTUDANTE 5
Porque estão loucos. Mas a mim que todos os dias trepo duas vezes à montanha e guardo, depois de acabar as aulas, uma enorme manada de touros, com que tenho de lutar e vencer a cada instante, não me sobra tempo para pensar se é homem ou mulher ou criança, só sei que gosto com toda a alegria do desejo.
ESTUDANTE 1
Bonito! E se eu me quiser apaixonar por um crocodilo?
ESTUDANTE 5
Apaixonas-te.
ESTUDANTE 1
E se eu me quiser apaixonar por ti?
ESTUDANTE 5 (Atirando-lhe com o sapato.)
Apaixonas-te também, eu deixo, e levo-te em ombros pelos penhascos.
ESTUDANTE 1
E destruímos tudo.
ESTUDANTE 5
Os telhados e as famílias.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 82/3
ESTUDANTE 1
Detestável. Um espectador não deve nunca tomar parte na peça. Quando uma pessoa vai ao aquário não mata as serpentes nem os ratos da água, nem os peixes cobertos de lepra, passa os olhos pelo vidro e aprende.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 81
Detestável. Um espectador não deve nunca tomar parte na peça. Quando uma pessoa vai ao aquário não mata as serpentes nem os ratos da água, nem os peixes cobertos de lepra, passa os olhos pelo vidro e aprende.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 81
HOMEM 2
A porta do teatro não se fecha nunca.
JULIETA
Está a chover muito, minha amiga.
(Começa a chover. O homem 3 tira do bolso uma máscara com uma expressão ardente e tapa a cara.)
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 63
A porta do teatro não se fecha nunca.
JULIETA
Está a chover muito, minha amiga.
(Começa a chover. O homem 3 tira do bolso uma máscara com uma expressão ardente e tapa a cara.)
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 63
sexta-feira, 24 de junho de 2011
A EXALTAÇÃO DA PELE
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 69
Sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 69
quinta-feira, 23 de junho de 2011
JULIETA
Eu não sou nenhuma escrava para que me cravem estiletes de âmbar nos seios, nem nenhum óraculo para os que tremem de amor à saída das cidades. O meu sonho foi sempre o cheiro da figueira e a cintura do ceifeiro. Ninguém me atravessa! Quem atravessa sou eu!
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 55
JULIETA (Torcendo as mãos.)
Forma e cinza.
CAVALO NEGRO
Sim. Já sabem como degolo as pombas. Quando se diz rocha eu entendo ar. Quando se diz ar eu entendo vazio. Quando se diz vazio eu entendo pomba degolada.»
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 52
Forma e cinza.
CAVALO NEGRO
Sim. Já sabem como degolo as pombas. Quando se diz rocha eu entendo ar. Quando se diz ar eu entendo vazio. Quando se diz vazio eu entendo pomba degolada.»
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 52
JULIETA
Cada vez mais gente. Vão acabar por invadir o meu sepulcro e ocupar-me a própria cama. A mim não me interessam nem as discussões sobre o amor nem o teatro. O que eu quero é amar.
CAVALO BRANCO 1 (Aparecendo. Traz uma espada na mão.)
Amar!
JULIETA
Sim. Com amor que dura um só momento.
CAVALO BRANCO 1
Esperei-te no jardim.
JULIETA
Queres dizer no sepulcro.
CAVALO BRANCO 1
Continuas tão louca como sempre. Julieta, quando poderás dar-te conta da perfeição de um dia? Um dia com manhã e com tarde.
JULIETA
E com noite.
CAVALO BRANCO 1
A noite não é o dia. E num dia poderás despir a angústia e afastar as impassíveis paredes de mármore.
JULIETA
Como?
CAVALO BRANCO 1
Sobe para a minha garupa.
JULIETA
Para quê?
CAVALO BRANCO 1 (Aproximando-se.)
Para te levar.
JULIETA
Para onde?
CAVALO BRANCO 1
Para o escuro. No escuro há ramas suaves. O cemitério de asas tem mil superfícies de espessura.
JULIETA (Tremendo.)
E lá, o que me vais dar?
CAVALO BRANCO 1
Vou dar-te o mais calado do escuro.
JULIETA
O dia?
CAVALO BRANCO 1
O musgo sem luz. O tacto que devora pequenos mundos com as pontas dos dedos.
JULIETA
E eras tu quem ia mostrar-me a perfeição de um dia?
CAVALO BRANCO 1
Para te levar para a noite.
JULIETA (Furiosa.)
E que tenho eu a ver com a noite, cavalo idiota? Que tenho eu a aprender com as suas nuvens ou com os seus bêbados? Vou precisar de veneno dos ratos para me ver livre dos maçadores. Mas eu não quero matar os ratos. Trazem-me pianinhos e pincelinhos de verniz.
CAVALO BRANCO 1
Julieta, a noite não é um monumento, mas um monumento pode durar toda a noite.
JULIETA (Chorando.)
Chega. Não te quero ouvir mais. Para que queres levar-me? É o engano a palavra de amor, o espelho quebrado, o passo na água. Depois deixavas-me no sepulcro outra vez, como todos fazem quando tratam de convencer quem os ouve de que o verdadeiro amor é impossível. Já estou cansada e levanto-me a pedir auxílio para escorraçar do meu sepulcro todos os que teorizam sobre o meu coração e todos os que me abrem a boca com pequenas pinças de mármore.
CAVALO BRANCO 1
O dia é um fantasma que se senta.
JULIETA
Mas eu conheci mulheres mortas pelo sol.
CAVALO BRANCO 1
Entende bem um só dia para amares todas as noites.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 47-49
Cada vez mais gente. Vão acabar por invadir o meu sepulcro e ocupar-me a própria cama. A mim não me interessam nem as discussões sobre o amor nem o teatro. O que eu quero é amar.
CAVALO BRANCO 1 (Aparecendo. Traz uma espada na mão.)
Amar!
JULIETA
Sim. Com amor que dura um só momento.
CAVALO BRANCO 1
Esperei-te no jardim.
JULIETA
Queres dizer no sepulcro.
CAVALO BRANCO 1
Continuas tão louca como sempre. Julieta, quando poderás dar-te conta da perfeição de um dia? Um dia com manhã e com tarde.
JULIETA
E com noite.
CAVALO BRANCO 1
A noite não é o dia. E num dia poderás despir a angústia e afastar as impassíveis paredes de mármore.
JULIETA
Como?
CAVALO BRANCO 1
Sobe para a minha garupa.
JULIETA
Para quê?
CAVALO BRANCO 1 (Aproximando-se.)
Para te levar.
JULIETA
Para onde?
CAVALO BRANCO 1
Para o escuro. No escuro há ramas suaves. O cemitério de asas tem mil superfícies de espessura.
JULIETA (Tremendo.)
E lá, o que me vais dar?
CAVALO BRANCO 1
Vou dar-te o mais calado do escuro.
JULIETA
O dia?
CAVALO BRANCO 1
O musgo sem luz. O tacto que devora pequenos mundos com as pontas dos dedos.
JULIETA
E eras tu quem ia mostrar-me a perfeição de um dia?
CAVALO BRANCO 1
Para te levar para a noite.
JULIETA (Furiosa.)
E que tenho eu a ver com a noite, cavalo idiota? Que tenho eu a aprender com as suas nuvens ou com os seus bêbados? Vou precisar de veneno dos ratos para me ver livre dos maçadores. Mas eu não quero matar os ratos. Trazem-me pianinhos e pincelinhos de verniz.
CAVALO BRANCO 1
Julieta, a noite não é um monumento, mas um monumento pode durar toda a noite.
JULIETA (Chorando.)
Chega. Não te quero ouvir mais. Para que queres levar-me? É o engano a palavra de amor, o espelho quebrado, o passo na água. Depois deixavas-me no sepulcro outra vez, como todos fazem quando tratam de convencer quem os ouve de que o verdadeiro amor é impossível. Já estou cansada e levanto-me a pedir auxílio para escorraçar do meu sepulcro todos os que teorizam sobre o meu coração e todos os que me abrem a boca com pequenas pinças de mármore.
CAVALO BRANCO 1
O dia é um fantasma que se senta.
JULIETA
Mas eu conheci mulheres mortas pelo sol.
CAVALO BRANCO 1
Entende bem um só dia para amares todas as noites.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 47-49
XIV
Andam palavras na noite
Cansadas de me chamar.
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.
Eu sou um grande oceano
Que só fala a voz do mar!
Mas já sinto o mar cansado
De pedir o luar ao céu
Que a Noite não lhe quer dar!
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 48
Cansadas de me chamar.
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.
Eu sou um grande oceano
Que só fala a voz do mar!
Mas já sinto o mar cansado
De pedir o luar ao céu
Que a Noite não lhe quer dar!
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 48
do dever de deslumbrar
A inútil tragédia da vida
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.
As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.
Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 37/8
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.
As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.
Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 37/8
quarta-feira, 22 de junho de 2011
HOMEM 2
Esqueceste-te de que sou forte quando quero. Era eu menino e já jungia os bois do meu pai. Tenho os ossos cobertos de minúsculas orquídeas, mas tenho uma capa de músculos que utilizo quando quero.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 46
Esqueceste-te de que sou forte quando quero. Era eu menino e já jungia os bois do meu pai. Tenho os ossos cobertos de minúsculas orquídeas, mas tenho uma capa de músculos que utilizo quando quero.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 46
FIGURA DE PARRAS
Toma um machado e corta-me as pernas. Deixa que venham os insectos da ruína e vai-te. Porque te desprezo. Queria que me talhasses até ao fundo. Cuspo-te.
FUGURA DE GUIZOS
Queres? Adeus. Ainda bem. Se for andando pelas ruínas hei-de encontrar amor e mais amor.
FIGURA DE PARRAS (Angustiado.)
Onde vais? Onde vais?
FIGURA DE GUIZOS
Não queres que eu vá?
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 30
Toma um machado e corta-me as pernas. Deixa que venham os insectos da ruína e vai-te. Porque te desprezo. Queria que me talhasses até ao fundo. Cuspo-te.
FUGURA DE GUIZOS
Queres? Adeus. Ainda bem. Se for andando pelas ruínas hei-de encontrar amor e mais amor.
FIGURA DE PARRAS (Angustiado.)
Onde vais? Onde vais?
FIGURA DE GUIZOS
Não queres que eu vá?
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 30
FIGURA DE GUIZOS (Tremente.)
E se eu me transformasse em peixe-lua?
FIGURA DE PARRAS (Levantando-se.)
Eu transformava-me em faca. Numa faca afiada durante quatro longas primaveras.
FIGURA DE GUIZOS
Leva-me ao banho e afoga-me. Será a única maneira de me poderes ver nu. Pensas que tenho medo do sangue? Sei como dominar-te. Julgas que não te conheço? Dominar-te tanto, que se eu dissesse «Se eu me transformasse em peixe-lua?», tu respondias-me «Eu transformava-me numa bolsa de ovas pequeninas.»
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.29
FIGURA DE PARRAS
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.28
Sigo-te quando rondas a cama e as coisas da casa, mas não te sigo para os sítios para onde tu, subtilmente, queres levar-me. Se tu te transformasses em peixe-lua, eu abria-te com uma faca, porque sou um homem, porque nada mais sou do que isso, um homem, mais homem que Adão, e quero que tu sejas ainda mais homem do que eu. Tão homem que as ramas se calem quando passares. Mas tu não és um homem. Se eu não tivesse esta flauta tu fugias para a lua, para a lua coberta de paninhos com rendas e gotas de sangue de mulher.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.28
O Demónio
De súbito, como um firme e solitário trote, duplamente sujo numa alta nuvem de pó, pela esquina do Trasmuro, aparece o burro. Um momento depois, ofegantes, puxando as calças andrajosas caídas, que lhes deixam ao léu as barrigas escuras, os garotos atiram-lhe paus e pedras...
É preto, grande, velho, ossudo - outro arcipestre -, tanto, que parece que a pele sem pêlo em todo o lado se vai esburacar. Estaca e, mostrando uns dentes amarelos como grandes favas, zurra ferozmente para o ar com uma energia que não se enquadra com a sua desgraciosa velhice...É um burro perdido? Não o conheces, Platero? Que quererá? De quem virá ele a fugir, com aquele trote desigual e violento?
Ao vê-lo, Platero faz um corno, primeiro, com as duas orelhas numa única ponta; depois, deixa uma em pé e a outra caída; e vem para o pé de mim, e quer esconder-se na valeta, e fugir - tudo ao mesmo tempo. O burro preto passa ao lado dele, dá-lhe um encontrão, puxa-lhe a albarda, cheira-o, zurra contra o muro do convento e vai-se embora, trotando, Transmuro abaixo...
...É, no calor, um momento estranho de arrepio - meu, de Platero? - em que as coisas parecem transtornadas, como se a sombra baixa de um pano negro diante do sol ocultasse, subitamente, a solidão deslumbrante do cotovelo da viela, onde o ar, subitamente quieto, asfixia...Pouco a pouco, a vida distante faz-nos voltar ao real. Ouve-se, lá em cima, a vozearia incerta da praça do peixe, onde os vendedores que acabam de chegar da Ribeira apregoam as suas azevias, os seus salmonentes, as suas bogas, o seu goraz, os seus caranguejos; o dobrar do sino, que anuncia o sermão da manhã; a gaia do amolador...
Platero treme ainda, de vez em quando, olhando-me, amedrontado, na quietude muda em que ficámos os dois, sem saber porquê...
- Platero, a mim parece-me que esse burro não é um burro...
E Platero, mudo, treme de novo todo ele num só tremor, brandamente ruidoso, e olha, desconfiado, para a valeta, carrancudo e cabisbaixo.
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 48/9
Paisagem escarlate
O cume. Aí está o ocaso todo empurpurado, ferido pelos seus próprios cristais, que lhe fazem sangue em toda a parte. Perante o seu esplendor, o pinhal verde exacerba-se, vagamente afogueado; e as ervas e as florzinhas, incendiadas e transparentes, embalsamam o instante sereno de uma essência molhada, penetrante e luminosa.
Eu fico extasiado no crepúsculo. Platero, com os seus olhos negros, escarlates de ocaso, vai, manso, a um charco de águas carmesim, cor-de-rosa, violeta; mergulha suavemente a boca nos espelhos, que parece tornarem-se líquidos quando os toca; e há pela sua enorme garganta como que um passar profuso de sombrias águas de sangue.
O lugar é conhecido, mas o momento transforma-o e fá-lo estranho, desolado e monumental. Dir-se-ia, a cada instante, que vamos descobrir um palácio abandonado...A tarde prolonga-se para além de si mesma, e a hora, contagiada de eternidade, é infinita, pacífica, insondável...
-Vamos, Platero...
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 34
HELENA
Podias continuar a bater cem anos que eu não acreditava em ti. (O homem 3 dirige-se a Helena e aperta-lhe os pulsos.) Podias continuar a esmagar-me os dedos cem anos e não me havias de fazer soltar um único gemido.
HOMEM 3
Veremos quem pode mais!
HELENA
Eu e sempre eu.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.24/5
Podias continuar a bater cem anos que eu não acreditava em ti. (O homem 3 dirige-se a Helena e aperta-lhe os pulsos.) Podias continuar a esmagar-me os dedos cem anos e não me havias de fazer soltar um único gemido.
HOMEM 3
Veremos quem pode mais!
HELENA
Eu e sempre eu.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.24/5
HOMEM 1 (Lentamente)
Vou ter que dar um tiro em mim próprio, para inaugurar o verdadeiro teatro, o teatro debaixo da areia.
DIRECTOR
Gonçalo
HOMEM 1
Como?...
(Pausa)
DIRECTOR (Reagindo)
Mas não posso. Seria a ruína. Seria deixar cegos os meus filhos e depois que faço com o público?
Que faço com o público se tiro o parapeito da ponte? A máscara viria devorar-me. Vi uma vez um homem devorado pela máscara. Os jovens mais fortes da cidade, com lanças ensanguentadas, metiam-lhe pelo traseiro grandes bolas de jornais deitados fora, e na América houve uma vez um rapaz a quem a máscara enforcou pendurado pelos próprios intestinos.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.19
Vou ter que dar um tiro em mim próprio, para inaugurar o verdadeiro teatro, o teatro debaixo da areia.
DIRECTOR
Gonçalo
HOMEM 1
Como?...
(Pausa)
DIRECTOR (Reagindo)
Mas não posso. Seria a ruína. Seria deixar cegos os meus filhos e depois que faço com o público?
Que faço com o público se tiro o parapeito da ponte? A máscara viria devorar-me. Vi uma vez um homem devorado pela máscara. Os jovens mais fortes da cidade, com lanças ensanguentadas, metiam-lhe pelo traseiro grandes bolas de jornais deitados fora, e na América houve uma vez um rapaz a quem a máscara enforcou pendurado pelos próprios intestinos.
Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.19
terça-feira, 21 de junho de 2011
«Creio que existem em cada vida períodos em que um homem existe realmente, e outros em que não é mais que um aglomerado de responsabilidades, de fadigas e, para as cabeças fracas, de vaidade.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 120
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 120
«Naturezas como Conrad são frágeis, e nunca se sentem melhor do que no interior duma armadura. Abandonadas ao mundo, às mulheres, aos negócios, aos êxitos fáceis, a sua dissolução sorrateira fez-me sempre pensar no repugnante emurchecer dos lírios, essas sombrias flores com forma de ponta de lança cuja viscosa agonia contrasta com a consumação heróica das rosas.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 116
Teria sido belo recomeçar o mundo com ela numa solidão de náufragos.
«Movido pela ridícula necessidade de clareza dum cérebro ainda não adulto, continuava a perguntar a mim próprio se amava aquela mulher. Além de que faltava até agora a esta paixão a prova de que os menos grosseiros de nós se servem para autenticar o amor, e sabe Deus o rancor que eu tinha a Sofia pelas minhas próprias hesitações. Mas o que fazia a desgraça desta rapariga abandonada a todos era que não se podia pensar em comprometermo-nos para com ela que não fosse para a vida inteira. Numa época em que todos desertam, dizia a mim mesmo que ao menos aquela mulher seria sólida como a terra, sobre a qual podemos construir ou deitarmo-nos. Teria sido belo recomeçar o mundo com ela numa solidão de náufragos.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 91
«Além disso, a minha Sofia era tímida - o que explicava os seus acessos de coragem. Era demasiado jovem para ter ideia que a existência não é feita de arrebatamentos súbitos e de obstinada constância, mas de compromissos e de esquecimentos. Deste ponto de vista, ela teria ficado sempre muito jovem, mesmo que morresse aos sessenta anos.»
(...)
«Tinha sofrido porque o amor se não erguera ainda sobre a paisagem da sua vida, e esta falta de luz aumentava a aspereza dos maus caminhos que o acaso dos tempos a fizera trilhar. Agora que ela amava, desfazia-se uma por uma das suas últimas hesitações, com a simplicidade dum viandante enregelado que despe ao sol a roupa encharcada, e apresentava-se diante de mim nua como mulher alguma o esteve. E talvez que, tendo horrivelmente esgotado duma só vez todos os seus terrores e resistências contra o homem, não pudesse ela oferecer doravante ao seu primeiro amor senão a encantadora graça dum fruto que se propõe igualmente à boca e à faca.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 59
«(...); pode-se confiar no fogo, desde que se saiba que a sua lei é morrer ou queimar.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 57
«Éramos ambos demasiado jovens para sermos inteiramente simples, mas havia em Sofia uma rectidão desconcertante que multiplicava as probabilidades de errar.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 55
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 55
(como eu compreendo o pobre Piskariov...)
«Oh, era demais!, já se tornava impossível de suportar. Piskariov precipitou-se para fora, de cabeça e sentidos vazios. Turvou-se-lhe a mente: sem atentar no caminho, sem tino, sem ver, sem ouvir, vagueou todo o dia. Ninguém sabe se dormiu ou não dormiu em qualquer sítio; só no dia seguinte o instinto cego o levou ao seu apartamento, pálido, com um aspecto medonho, o cabelo desgranhado, sinais de loucura no rosto. Fechou-se no quarto, sem deixar entrar ninguém, sem pedir nada. Quatro dias se passaram e o quarto fechado nenhuma vez se abriu; ao cabo de uma semana, o quarto continuava fechado. Chamaram por ele à porta, mas não houve resposta; por fim, arrombaram-na e encontraram o seu cadáver com a garganta cortada. A lâmina ensaguentada estava no chão. Pelos braços convulsamente abertos e pela cara terrivelmente desfigurada podia concluir-se que a sua mão fora certeira e que sofreu ainda muito antes de a sua alma pecadora lhe abandonar o corp
Assim pareceu, vítima de louca paixão, o pobre Piskariov, quedo, tímido, modesto, ingénuo como um menino, que transportava em si a chispa do talento que talvez, com o correr do tempo, viesse a atear um fogo grande e brilhante. Ninguém chorou a sua morte; ninguém estava ao lado do seu corpo inanimado para além da figura vulgar do chefe de esquadra do bairro e do indiferente médico municipal. Levaram o caixão despercebidamente, sem ao menos as cerimónias religiosas, para o cemitério de Okhta; atrás do féretro apenas um guarda-soldado chorava, e mesmo esse porque bebera uma garrafa de vodca a mais.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 50/1
Durante semanas...
«Durante semanas, Sofia passou por todas as angústias das apaixonadas que se julgam incompreendidas, e se exasperam com isso; depois, irritada por aquilo que tomava por falta de inteligência minha, cansou-se duma situação em que só se comprazem os corações romanescos, coisa que esta rapariga, tanto quanto uma faca, estava bem longe de ser. Recebi confissões que se supunham completas, e que eram sublimes de subentendidos.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 54
«Porque é que as mulheres se apaixonam precisamente pelos homens que lhes não estão destinados, não lhes deixando, assim, outra escolha que não seja desnaturarem-se ou odiá-las?»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 51
«O ar de enfado de Sofia ia desaparecendo a pouco e pouco, sem nada lhe roubar da sua graça bravia e esquiva, como aquelas regiões que conservam uma aspereza invernal mesmo quando volta a Primavera.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 48
heroína ibseniana desgostada de tudo
«O seu rosto tristonho apresentava uma ruga amarga na comissura dos lábios; deixara de ler, e passava agora os serões a remexer furiosamente nas brasas do fogão da sala, suspirando ao mesmo tempo de tédio como uma heroína ibseniana desgostada de tudo.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 45
segunda-feira, 20 de junho de 2011
Estou velha, cansada, sem retorno. A morte, por certo, chegar-me-á tarde. Mas, é bem verdade, como dizes, estrela eterna: «E, comecei a morrer muito antes de ter vivido.».
Dou por mim, com uma dor que dói em toda a parte, em todo o corpo, sem dela conseguir arrancar lágrimas. Pairas sobre o meu sangue como uma sombra, uma sombra que concede aos lábios um amargo reprimir. Insónias, noite após noite, cavando, bem fundo, um vazio temerário. Guia-me, somente, o peso duma mão sobre o ombro e, nela, sei que tenho que suportar o continuar do caminho. Ardem-te tão duramente os olhos e, o fogo parece extinguir-se, a pouco e pouco, num pálido sopro, na vela...
A amizade
«A amizade é, acima de tudo, certeza - é isso o que a distingue do amor. É também respeito, e aceitação total dum outro ser. Que o meu amigo me tenha reembolsado até ao último soldo as somas de estima e de confiança que eu registara sob o seu nome, foi o que ele me provou com a sua morte.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 43
«Atingia-se aquela hora de lusco-fusco em que os mais sensíveis fazem confidências, em que os criminosos confessam, em que mesmo os mais silenciosos lutam contra o sono à força de histórias e de recordações.»
Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 33
«Os sonhos acabaram por se tornar a vida dele e, desde então, a sua existência tomou um rumo estranho; pode dizer-se que dormia acordado e estava de vigília no sono. Se alguém o visse sentado em silêncio diante da mesa vazia, ou a andar pela rua, decerto o tomaria por um sonâmbulo, ou por um indivíduo destruído pelas bebidas fortes; o seu olhar estava privado de sentido, a sua distracção natural ampliou-se e, autoritariamente, expulsava da cara todos os sentimentos e movimentos. Apenas se animava com a chegada da noite.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 45
A senhora
«A senhora passou o olhar em volta de todo o círculo de pessoas que ansiavam por atrair a sua atenção, mas logo o desviou, cansada e desatenta, e cruzou os olhos com os de Piskariov. Oh, que céu!, que paraíso!, dá-me forças, Criador, para o suportar!, pois isto não caberá na vida, destruirá, arrebatará a minha alma! Ela fez-lhe sinal, mas não com o gesto de mão ou um aceno de cabeça, não: o sinal relanceou pelos seus olhos demolidores, tão fino e imperceptível que ninguém o pôde ver, tirando Piskariov, que o viu e compreendeu.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 41
«Aquela miscelânea incrível de rostos deixou-o completamente aturdido; parecia-lhe que um demónio qualquer esmigalhara todo o mundo reduzindo-o a mil fragmentos variados e que, depois, misturara sem critério e sem ordem todos esses fragmentos.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 38
«Ficou-lhe retida no peito a respiração, tudo nele se converteu num tremor indefinido, todos os seus sentidos ardiam em fogo, tudo diante dele se vestiu de um nevoeiro.»
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 32
Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 32
sexta-feira, 17 de junho de 2011
Novembro
Quando o esbirro se aborrece, torna-se perigoso.
O céu constrói-se, em chamas.
Sinais de pancadas ouvem-se de cela em cela.
E do solo, coberto de neve, o espaço jorra.
Algumas pedras brilham como luas cheias.
Tomas Tranströmer
O céu constrói-se, em chamas.
Sinais de pancadas ouvem-se de cela em cela.
E do solo, coberto de neve, o espaço jorra.
Algumas pedras brilham como luas cheias.
Tomas Tranströmer
Histórias de Marinheiros
Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar.
Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca
de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, más ténues que fumo de cachimbo.
(No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.
Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).
(1954)
Tomas Tranströmer
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar.
Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca
de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, más ténues que fumo de cachimbo.
(No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.
Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).
(1954)
Tomas Tranströmer
A Culpa é Sentirmo-nos Culpados
« A culpa é sentirmo-nos culpados, e não um resultado dos crimes cometidos; o ser inocente é alegre, feliz, e não deixa, seja em que caso for, que os acontecimentos perturbem a sua calma e a sua paz. É por isso que considero que a justiça erra quando executa os menos em vez dos mais culpados, quer dizer quando executa os criminosos e não aqueles que sentem que têm no coração a culpa do mundo. Isso equivale a executar crianças por acções que cometeram no escuro quando ignoravam tudo acerca do escuro e das reacções que provoca no funcionamento dos corpos. Uma vez que são culpados apenas os que se sentem culpados, seria necessário suprimir a justiça distribuitiva de castigos e substituí-la por uma justiça executora, porque ao fim de algum tempo aquele que a culpa mortifica já só aspira a morrer, a morrer pelas faltas do mundo como pelas suas próprias faltas, e pode sem a mínima hesitação, sim, sem a menor angústia de morte, uma vez que nada tem a esperar agora que tocou finalmente o fundo do mundo, pedir à justiça a sua pena de morte - e nunca outra cabeça se curvará mais graciosamente do que a sua por baixo da guilhotina, nunca colar algum terá acariciado a garganta de uma mulher com tanta delicadeza como a da corda ao aflorar-lhe o pescoço.»
Stig Dagerman, in "A Ilha dos Condenados"
O Medo como Orientador da Nossa Vida
Uma vez que estamos sós no mundo, ou pelo menos não tão sós como gostaríamos de estar, temos o dever de dominar as nossas explosões, de fazer com que as explosões inevitáveis da nossa maldade ou da nossa bondade paradoxais vão aproximativamente no sentido do fim aproximativo. Quanto ao fim, talvez não seja lá muito importante determiná-lo com a precisão sádica que encontramos no sistema do mundo e no destino quando ambos se associam para determinar a posição do homem no espaço e no tempo.
Devemos evidentemente batermo-nos contra os dois, e como o mais importante é manter a direcção justa do fim talvez errado, é-nos necessário aguçar a nossa lucidez a fim de a tornarmos cortante como uma lâmina, acerada como uma seta, percuciente como uma punção. É graças a essa lucidez que funciona a nossa consciência, que não passa afinal de uma transcrição idílica do nosso medo, porque o medo lembra-nos infatigavelmente a direcção justa, e se sufocarmos o nosso medo, perderemos a possibilidade de nos orientarmos numa direcção determinada e daremos aqui e ali lugar a uma série de estúpidas explosões privadas, causando os piores estragos para um mínimo de resultados. É por isso que devemos conservar dentro de nós o nosso medo como um porto sempre livre de gelos que nos ajude a passar o Inverno, e também como uma corrente submarina vibrando por baixo da superfície gelada dos rios.
Devemos evidentemente batermo-nos contra os dois, e como o mais importante é manter a direcção justa do fim talvez errado, é-nos necessário aguçar a nossa lucidez a fim de a tornarmos cortante como uma lâmina, acerada como uma seta, percuciente como uma punção. É graças a essa lucidez que funciona a nossa consciência, que não passa afinal de uma transcrição idílica do nosso medo, porque o medo lembra-nos infatigavelmente a direcção justa, e se sufocarmos o nosso medo, perderemos a possibilidade de nos orientarmos numa direcção determinada e daremos aqui e ali lugar a uma série de estúpidas explosões privadas, causando os piores estragos para um mínimo de resultados. É por isso que devemos conservar dentro de nós o nosso medo como um porto sempre livre de gelos que nos ajude a passar o Inverno, e também como uma corrente submarina vibrando por baixo da superfície gelada dos rios.
Stig Dagerman, in 'A Ilha dos Condenados'
quarta-feira, 15 de junho de 2011
«Nunca esquecerei, Platero, aquela noite de Setembro. A trovoada palpitava sobre a aldeia havia uma hora, como um coração doente, descarregando água e pedra entre a desesperadora insistência do relâmpago e do trovão.»
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 32
terça-feira, 14 de junho de 2011
ANGELUS!
Olha, Platero, quantas rosas caem por todo o lado: rosas azuis, cor-de-rosa, brancas, sem cor...Dir-se-ia que o céu se desfaz em rosas. Olha como se enchem de rosas o rosto, os ombros, as mãos...Que farei com tantas rosas?
Saberás por acaso de onde vem esta branca flora, que eu não sei de onde é. que enternece em cada dia a paisagem e a deixa docemente rosada, branca e azul - mais rosas, mais rosas -, como um quadro de Fra Angelico, o que pintava o céu de joelhos?
Dir-se-ia que das sete galerias do Paraíso lançam rosas para a terra. Como um nevão ténue e vagamente colorido, ficam as rosas na torre, no telhado, nas árvores. Vê: tudo o que é forte se torna, com seu adorno, delicado. Mais rosas, mais rosas, mais rosas...
Parece, Platero, enquanto soam as Ave-Marias, que esta nossa vida perde a sua força quotidiana, e que outra força de dentro, mais elevada, mais constante e mais pura, faz com que tudo, como em repuxos de graça, suba às estrelas, que se acendem já entre as rosas...Mais rosas...Os teus olhos, que tu não vês, Platero, e que ergues mansamente para o céu, são duas belas rosas.
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 23
«Há grandes raivas feitas de cansaços.»
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 50
CLEARY NON-CAMPOS!
Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido,
Um desejo lúcido de indefinido.
Quatro vezes mudou a 'stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde;
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último, e acabam.
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 40
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido,
Um desejo lúcido de indefinido.
Quatro vezes mudou a 'stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde;
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último, e acabam.
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 40
Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.
Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.
Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.
Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 36
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.
Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.
Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.
Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 36
ISTO
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 26
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa. Self-Analysis and Thirty Other Poems. Translations by George Monteiro. Calouste Gulbenkian Foundation, Lisbon, 1988, p. 26
segunda-feira, 13 de junho de 2011
4.
Não devo atrever-me a defender os meus depravados costumes
e a terçar falsas armas em defesa dos meus vícios.
Confesso - se alguma utilidade tem confessar os pecados;
mas logo depois de confessar, caio, de cabeça perdida, nos meus erros.
Odeio e não sou capaz de não desejar o que odeio.
Pobre de ti! Aquilo que porfias por deixar, quão penoso é carregá-lo!
Faltam-me forças e poder para me governar a mim mesmo;
sou arrastado, como proa baldeada pela força das ondas.
Não é uma beleza, em especial, que estimula o meu amor;
cem são as razões para eu estar, sempre, a amar:
se há uma que baixa os olhos com recato,
deixo-me inflamar, e aquele pudor é para mim cilada;
se há outra que é provocante, sou cativado por não ser simplória
e por me dar esperança de ser bem viva na doçura do leito;
se me pareceu agreste e a imitar as severas Sabinas,
ela quer, mas, na sua sobranceria, finge, eis o que eu penso;
se és culta, agradas-me pelos teus dotes - tão raros - para as artes;
se és rude, agradas-me pela tua própria simplicidade.
Há uma que afirma que, ao pé dos meus, são toscos os versos
de Calímaco?Pois se lhe agrado, de pronto ela me agrada;
há, também, a que me condena, como poeta, e condena os meus versos;
e eu desejaria suportar o peso das coxas daquela que me condena.
Uma caminha com elegância - o seu movimento cativa-me; outra é bronca
- mas poderia tornar-se bem mais elegante no contacto com um homem.
Esta, porque canta com doçura e com ligeireza faz evoluir a sua voz,
quereria eu dar beijos arrebatados àquela que está a cantar;
estoutra percorre, com a agilidade do polegar, as queixosas cordas,
tão sabedoras mãos, quem não seria capaz de as amar?
Aquela tem um rosto aprazível e faz mil movimentos com os seus longos
braços
e com a elegância e arte bamboleia o peito delicado;
para não falar de mim mesmo, que me deixo tocar por qualquer motivo,
coloca ali Hipólito: tornar-se-ia um outro Priapo.
Tu, por seres tão alongada, emparceiras com as antigas heroínas
e és capaz, com o teu corpo, de ocupar o leito inteiro;
esta é elegante na sua pequenez: por uma e outra sou arrebatado;
ambas, a alta e a pequena, caem bem ao meu desejo.
Não é elegante - e vem-me à ideia que elegância poderia acrescentar-se-lhe;
está cheia de enfeites - que ela mostre as suas próprias prendas.
A alvura da sua pele há-de seduzir-me, há-de seduzir-me a mulher bem rosada;
e até com cores baças é prazenteiro o amor;
se tombam, de uma fronte branca como a neve, cabelos negros,
Leda fazia-se admirar pela sua negra cabeleira;
se são ruivos, a Aurora era aprazível pelos seus cabelos cor de açafrão.
A todas as histórias o meu amor é capaz de adaptar-se.
Uma idade jovem seduz-me, uma idade mais madura toca-me;
aquela por ter mais beleza de corpo, esta por possuir sabedoria.
Enfim, as mulheres que podem apreciar-se em toda a cidade de Roma,
a todas elas pode o meu amor abranger.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 70/1
e a terçar falsas armas em defesa dos meus vícios.
Confesso - se alguma utilidade tem confessar os pecados;
mas logo depois de confessar, caio, de cabeça perdida, nos meus erros.
Odeio e não sou capaz de não desejar o que odeio.
Pobre de ti! Aquilo que porfias por deixar, quão penoso é carregá-lo!
Faltam-me forças e poder para me governar a mim mesmo;
sou arrastado, como proa baldeada pela força das ondas.
Não é uma beleza, em especial, que estimula o meu amor;
cem são as razões para eu estar, sempre, a amar:
se há uma que baixa os olhos com recato,
deixo-me inflamar, e aquele pudor é para mim cilada;
se há outra que é provocante, sou cativado por não ser simplória
e por me dar esperança de ser bem viva na doçura do leito;
se me pareceu agreste e a imitar as severas Sabinas,
ela quer, mas, na sua sobranceria, finge, eis o que eu penso;
se és culta, agradas-me pelos teus dotes - tão raros - para as artes;
se és rude, agradas-me pela tua própria simplicidade.
Há uma que afirma que, ao pé dos meus, são toscos os versos
de Calímaco?Pois se lhe agrado, de pronto ela me agrada;
há, também, a que me condena, como poeta, e condena os meus versos;
e eu desejaria suportar o peso das coxas daquela que me condena.
Uma caminha com elegância - o seu movimento cativa-me; outra é bronca
- mas poderia tornar-se bem mais elegante no contacto com um homem.
Esta, porque canta com doçura e com ligeireza faz evoluir a sua voz,
quereria eu dar beijos arrebatados àquela que está a cantar;
estoutra percorre, com a agilidade do polegar, as queixosas cordas,
tão sabedoras mãos, quem não seria capaz de as amar?
Aquela tem um rosto aprazível e faz mil movimentos com os seus longos
braços
e com a elegância e arte bamboleia o peito delicado;
para não falar de mim mesmo, que me deixo tocar por qualquer motivo,
coloca ali Hipólito: tornar-se-ia um outro Priapo.
Tu, por seres tão alongada, emparceiras com as antigas heroínas
e és capaz, com o teu corpo, de ocupar o leito inteiro;
esta é elegante na sua pequenez: por uma e outra sou arrebatado;
ambas, a alta e a pequena, caem bem ao meu desejo.
Não é elegante - e vem-me à ideia que elegância poderia acrescentar-se-lhe;
está cheia de enfeites - que ela mostre as suas próprias prendas.
A alvura da sua pele há-de seduzir-me, há-de seduzir-me a mulher bem rosada;
e até com cores baças é prazenteiro o amor;
se tombam, de uma fronte branca como a neve, cabelos negros,
Leda fazia-se admirar pela sua negra cabeleira;
se são ruivos, a Aurora era aprazível pelos seus cabelos cor de açafrão.
A todas as histórias o meu amor é capaz de adaptar-se.
Uma idade jovem seduz-me, uma idade mais madura toca-me;
aquela por ter mais beleza de corpo, esta por possuir sabedoria.
Enfim, as mulheres que podem apreciar-se em toda a cidade de Roma,
a todas elas pode o meu amor abranger.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 70/1
« - Só se calam e gostam da solidão, as pessoas muito orgulhosas, continuou Niúta tirando-lhe a mão da testa. Porque me olha assim por baixo das sobrancelhas? Olhe-me de frente, por favor! Vamos, não seja grosseiro!»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Volódia (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 191
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Volódia (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 191
A mulher do farmacêutico
«Que infeliz eu sou» disse consigo a mulher do farmacêutico, olhando com cólera para o marido que se despia a toda a pressa, para se tornar a meter na cama. «Oh! Como eu sou infeliz!» repetiu ela, começando subitamente a chorar... «E ninguém o sabe...»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. A mulher do Farmacêutico (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 184
«De repente, por trás dos longínquos caniçados, emerge inesperadamente uma lua de larga cara. Era vermelha (geralmente a lua, quando emerge de trás das sebes parece que vem corada).
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. A mulher do Farmacêutico (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 176
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. A mulher do Farmacêutico (conto). Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 176
sábado, 11 de junho de 2011
«Oh, quantas vezes, diante de alguém que te admira os cabelos, hás-de corar
e dizer: ''agora, é graças a mercadoria comprada que me elogiam;
não sei que sicambra está este, agora, a gabar, em vez de mim;
mas lembro-me bem de como era assim a minha falam.''
Pobre de mim! A custo sustém as lágrimas e, com a mão, protege
o rosto, a face altiva corada de vermelho;
segura no regaço os cabelos de outrora e contempla-os.
Triste sorte! Não eram eles merecedores de estar naquele lugar!
Repõe, com as forças do rosto, as do coração! É dano que podes reparar;
em breve, hás-de ser contemplada com os teus cabelos naturais.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 59
e dizer: ''agora, é graças a mercadoria comprada que me elogiam;
não sei que sicambra está este, agora, a gabar, em vez de mim;
mas lembro-me bem de como era assim a minha falam.''
Pobre de mim! A custo sustém as lágrimas e, com a mão, protege
o rosto, a face altiva corada de vermelho;
segura no regaço os cabelos de outrora e contempla-os.
Triste sorte! Não eram eles merecedores de estar naquele lugar!
Repõe, com as forças do rosto, as do coração! É dano que podes reparar;
em breve, hás-de ser contemplada com os teus cabelos naturais.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 59
« Agora, todo o medo se desvaneceu, no meu coração está sarada a loucura,
e essa beleza não cativa já os meus olhos.
Porque assim mudei? - perguntas. Porque reclamas uma paga;
esse motivo não consente que possas dar-me prazer.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 52
e essa beleza não cativa já os meus olhos.
Porque assim mudei? - perguntas. Porque reclamas uma paga;
esse motivo não consente que possas dar-me prazer.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 52
BORBOLETAS BRANCAS
A noite cai, brumosa já e arroxeada. Vagas claridades rosadas e verdes demoram-se atrás da igreja. O caminho sobe, cheio de sombras, de campainhas, de fragância de erva, de canções, de cansaço e de ânsia. De súbito, um homem escuro, com um gorro e um aguilhão, avermelha um instante a sua cara feia com a luz de um cigarro, desce até nós de um casebre miserável, perdido entre sacos de carvão. Platero assusta-se.
- Nada a declarar?
- Veja o senhor...Borboletas brancas...
O homem quer cravar o aguilhão de ferro na ceirazita e não o impeço. Abro o alforge e ele não vê nada. E o alimento ideal passa, livre e cândido, sem pagar o seu dízimo...
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 14
- Nada a declarar?
- Veja o senhor...Borboletas brancas...
O homem quer cravar o aguilhão de ferro na ceirazita e não o impeço. Abro o alforge e ele não vê nada. E o alimento ideal passa, livre e cândido, sem pagar o seu dízimo...
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 14
PLATERO
Platero é pequeno, peludo, suave; tão brando por
fora que se diria todo de algodão, que não tem
ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são
duros como dois escravelhos de cristal negro
Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia debil-
mente com o seu focinhito, roçando-as apenas, as flor-
zinhas cor-de-rosa, azuis e amarelas...Chamo-o
docemente: ''Platero!'', e vem ter comigo num trote-
zinho alegre que parece rir-se, com não sei que som
de guizos ideal...
Come tudo o que lhe dou. Gosta das laranjas, das
tangerinas, das uvas moscatel, todas de âmbar, dos
figos arroxeados, com a sua cristalina gotinha de
mel...
É terno e mimoso como um menino, como uma
menina...; mais forte e seco por dentro, como de
pedra. Quando passo em cima dele, aos domingos,
pelas últimas ruelas da aldeia, os homens do campo,
vestidos de lavado e vagarosos, ficam a olhá-lo: -
Tem aço...
Tem aço. Aço e prata de lua, ao mesmo tempo.
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 13
fora que se diria todo de algodão, que não tem
ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são
duros como dois escravelhos de cristal negro
Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia debil-
mente com o seu focinhito, roçando-as apenas, as flor-
zinhas cor-de-rosa, azuis e amarelas...Chamo-o
docemente: ''Platero!'', e vem ter comigo num trote-
zinho alegre que parece rir-se, com não sei que som
de guizos ideal...
Come tudo o que lhe dou. Gosta das laranjas, das
tangerinas, das uvas moscatel, todas de âmbar, dos
figos arroxeados, com a sua cristalina gotinha de
mel...
É terno e mimoso como um menino, como uma
menina...; mais forte e seco por dentro, como de
pedra. Quando passo em cima dele, aos domingos,
pelas últimas ruelas da aldeia, os homens do campo,
vestidos de lavado e vagarosos, ficam a olhá-lo: -
Tem aço...
Tem aço. Aço e prata de lua, ao mesmo tempo.
Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 13
Eu agora já envelheci
«Eu agora já envelheci, tornei-me silencioso, rude, severo. Raras vezes rio, e dizem que me pareço com Redka. Como ele, aborreço os operários com os meus sermões inúteis.»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 169
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 169
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Ela corou
«Ela corou. 'Fica bem o pudor à candura do rosto, mas apenas
se o fingires te será útil; quando autêntico, costuma ser nefasto.
Quando baixares o olhar com recato e contemplares o teu regaço,
à medida do que te trouxer, assim deves pôr o olhar em cada homem.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 47
se o fingires te será útil; quando autêntico, costuma ser nefasto.
Quando baixares o olhar com recato e contemplares o teu regaço,
à medida do que te trouxer, assim deves pôr o olhar em cada homem.»
Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 47
NA MORTE DE CRISTO, CONTRA A NATUREZA DO CORAÇÃO DO HOMEM
Porque derrama noite o sentimento
por todo o cerco desta chama pura,
e amortecido o sol em sombra escura
dá lágrimas ao fogo e voz ao vento;
porque da morte o negro encerramento
descobre com tremor a sepultura,
e o monte, que separa da planura
o mar vizinho, divide-se atento,
de pedra é, homem duro, de diamante
teu coração, pois morte tão severa
não afoga com pranto teu semblante.
Mas de pedra não é. Sendo-o, qual cera,
de compaixão por ver a Deus amante,
ao rolar entre as pedras se rompera.
Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.75
por todo o cerco desta chama pura,
e amortecido o sol em sombra escura
dá lágrimas ao fogo e voz ao vento;
porque da morte o negro encerramento
descobre com tremor a sepultura,
e o monte, que separa da planura
o mar vizinho, divide-se atento,
de pedra é, homem duro, de diamante
teu coração, pois morte tão severa
não afoga com pranto teu semblante.
Mas de pedra não é. Sendo-o, qual cera,
de compaixão por ver a Deus amante,
ao rolar entre as pedras se rompera.
Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.75
«Não me calo, por mais que com o dedo,
tocando tua boca ou sobre a fronte
silêncio imponhas ou ameaces medo.
Não há-de haver um espírito valente?
Há-de sempre sentir-se o que se disse?
Nunca se há-de dizer o que se sente?»
Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.63
tocando tua boca ou sobre a fronte
silêncio imponhas ou ameaces medo.
Não há-de haver um espírito valente?
Há-de sempre sentir-se o que se disse?
Nunca se há-de dizer o que se sente?»
Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.63
quinta-feira, 9 de junho de 2011
«Dizem que a mulher é uma ajuda para o marido. Mas terei eu necessidade de ajuda? Ajudo-me a mim mesmo. Sinto muito mais a necessidade de alguém com quem falar, e que não dissesse apenas: ó-ó-ó-ó; de alguém que falasse com raciocínio e entendesse o que se lhe diz. Que é a vida sem uma boa conversa?»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 122/123
Na vida conjugal não há só alegrias
«Na vida conjugal não há só alegrias; também há sofrimentos. Tem que ser assim.»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 100
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 100
A arte de escravizar
«A escravatura desapareceu mas o sistema capitalista progride. Nesta época de ideias liberais, como nos tempos de Bety, a maioria alimenta-se, veste-se e defende-se, e a minoria, continua cheia de fome, maltrapilha e sem defesa. Um tal estado de coisas só é bom para favorecer todas as correntes, porque a arte de escravizar é também progressivamente cultivada. Já não chicoteamos os criados nas estrebarias, mas damos formas refinadas à escravatura ou pelo menos sabemos achar uma desculpa para cada caso particular.»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p. 59
Estranha rapariga! pensei. Estranha rapariga!
«Na sua alegria de agora havia qualquer coisa infantil e ingénua, como se a alegria que desde a nossa infância nos tinha sido reprimida e extinta por uma educação severa, acordasse subitamente na sua alma e achasse meio de se libertar.
Mas quando a noite veio e mandaram vir a carruagem, minha irmã acalmou, encarquilhou-se de novo, e quando se sentou nas almofadas parecia sentar-se no banco dos réus. Partiram. O ruído afastou-se...
Aniuta Blagovo não me dissera uma só palavra.
- Estranha rapariga! pensei. Estranha rapariga!
Veio a quaresma de São Pedro, durante a qual estivemos sempre em jejum. Ocioso, sem ocupação certa. esmagava-me uma tristeza física. Descontente comigo, desleixado, faminto, vagueava pela propriedade, esperando apenas uma disposição de espírito que me permitisse partir.»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.43/4
MENIPO
Que amor é esse da morte que se apoderou de ti, de uma coisa que a maioria não ama?
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 87
Que amor é esse da morte que se apoderou de ti, de uma coisa que a maioria não ama?
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 87
Helena
HERMES
Este crânio aqui é Helena.
MENIPO
E então, foi por isto que milhares de navios se encheram de homens vindos de toda a Hélade e que tantos caíram, Gregos e Bárbaros, e tantas cidades destruídas!
HERMES
Mas não viste, ó Ménipo, a mulher viva, porque terias dito, também tu, que era desculpável «por tal mulher sofrer dores por muito tempo», visto como até as flores, quando secas, se alguém as olhar acreditará naturalmente que não têm beleza. Mas quando elas estão em floração e têm as suas cores, são lindíssimas.
MENIPO
Portanto, aquilo que me surpreende, ó Hermes, é que os Aqueus não tivessem compreendido que sofriam por uma coisa tão efémera e que tão facilmente perde a flor.
HERMES
Não tenho vagar para filosofar contigo, ó Menipo. E, assim, escolhe o lugar, onde quiseres, deita-te e fica estendido. Eu, por mim, vou imediatamente ao encontro dos outros mortos.
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 68/9
Este crânio aqui é Helena.
MENIPO
E então, foi por isto que milhares de navios se encheram de homens vindos de toda a Hélade e que tantos caíram, Gregos e Bárbaros, e tantas cidades destruídas!
HERMES
Mas não viste, ó Ménipo, a mulher viva, porque terias dito, também tu, que era desculpável «por tal mulher sofrer dores por muito tempo», visto como até as flores, quando secas, se alguém as olhar acreditará naturalmente que não têm beleza. Mas quando elas estão em floração e têm as suas cores, são lindíssimas.
MENIPO
Portanto, aquilo que me surpreende, ó Hermes, é que os Aqueus não tivessem compreendido que sofriam por uma coisa tão efémera e que tão facilmente perde a flor.
HERMES
Não tenho vagar para filosofar contigo, ó Menipo. E, assim, escolhe o lugar, onde quiseres, deita-te e fica estendido. Eu, por mim, vou imediatamente ao encontro dos outros mortos.
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 68/9
quarta-feira, 8 de junho de 2011
dizia-se que, não podendo resistir àquele divertimento, tinham enlouquecido.
«O combóio» reunia-se ordinariamente junto das tabernas e no mercado. Bebia, comia, praguejava porcamente e, à passagem das mulheres de porte duvidoso, lançava assobios agudos. Os nossos vendeiros, para distraírem aquela canalha, obrigavam os cães e os gatos a beberem vodka, ou amarravam uma lata de petróleo vazia ao rabo dum cão para depois o açularem. O cão desatava a correr pela rua fora, arrastando a lata, e a ganir de medo, julgando-se perseguido por um monstro; corria pela cidade, pelos campos, até parar completamente exausto. Havia na cidade alguns cães que estavam sempre a tremer, com o rabo metido entre as pernas: dizia-se que, não podendo resistir àquele divertimento, tinham enlouquecido.»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.26
terça-feira, 7 de junho de 2011
«Os ulmeiros, cobertos de orvalho, enchiam o espaço dum perfume suave. Sentia-me triste; não queria abandonar a cidade...Amava a minha terra! Parecia-me tão bela e tão terna! Gostava da sua verdura, das manhãs soalheiras e calmas, do repicar dos sinos; mas as pessoas com quem convivia na cidade eram-me estranhas, aborreciam-me, chegavam a ser-me repelentes. Não gostava delas nem as entendia. Não era capaz de compreender de que e porque viviam aqueles sessenta e cinco mil homens.»
Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.26
sábado, 4 de junho de 2011
XVII MENIPO E TÂNTALO
MENIPO
Porque choras, ó Tântalo? ou porque te lamentas, de pé, à beira do lago?
TÂNTALO
Porque, ó Menipo, morro de sede.
MENIPO
És assim tão preguiçoso que te não abaixas para beber, ou então, por Zeus, para recolher a água na concha da mão?
TÂNTALO
Isso de nada me valeria, se eu me abaixasse, porque a água foge, sempre que me sente aproximar. E se alguma vez a recolho e aproximo dos lábios, não humedeço suficientemente depressa a ponta dos lábios que, escapando-se por entre os dedos, não sei como, ela me não deixe de novo a mão seca.
MENIPO
É extraordinário o que te acontece, ó Tântalo. Todavia, diz-me cá: porque é que ainda tens a necessidade de beber? Na verdade, não tens corpo, mas está sepultado algures na Lídia aquilo que justamente podia ter fome e ter sede, mas tu, que és alma, como é que ainda podes ter sede?
TÂNTALO
Isso é exactamente o meu castigo, ter a alma sede como se fosse corpo.
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 66
Porque choras, ó Tântalo? ou porque te lamentas, de pé, à beira do lago?
TÂNTALO
Porque, ó Menipo, morro de sede.
MENIPO
És assim tão preguiçoso que te não abaixas para beber, ou então, por Zeus, para recolher a água na concha da mão?
TÂNTALO
Isso de nada me valeria, se eu me abaixasse, porque a água foge, sempre que me sente aproximar. E se alguma vez a recolho e aproximo dos lábios, não humedeço suficientemente depressa a ponta dos lábios que, escapando-se por entre os dedos, não sei como, ela me não deixe de novo a mão seca.
MENIPO
É extraordinário o que te acontece, ó Tântalo. Todavia, diz-me cá: porque é que ainda tens a necessidade de beber? Na verdade, não tens corpo, mas está sepultado algures na Lídia aquilo que justamente podia ter fome e ter sede, mas tu, que és alma, como é que ainda podes ter sede?
TÂNTALO
Isso é exactamente o meu castigo, ter a alma sede como se fosse corpo.
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 66
DIÓGENES
«Mas sabes o que hás-de fazer? Vou dar-te um remédio para a tua tristeza. Visto que o eléboro não cresce aqui, ao menos procura a água do Letes e bebe à boca cheia e volta a beber e faz isso muitas vezes. Assim cessarás de aborrecer-te com os bens de Aristóteles.»
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 57
«Mas sabes o que hás-de fazer? Vou dar-te um remédio para a tua tristeza. Visto que o eléboro não cresce aqui, ao menos procura a água do Letes e bebe à boca cheia e volta a beber e faz isso muitas vezes. Assim cessarás de aborrecer-te com os bens de Aristóteles.»
Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 57