terça-feira, 21 de junho de 2011


    «Além disso, a minha Sofia era tímida - o que explicava os seus acessos de coragem. Era demasiado jovem para ter ideia que a existência não é feita de arrebatamentos súbitos e de obstinada constância, mas de compromissos e de esquecimentos. Deste ponto de vista, ela teria ficado sempre muito jovem, mesmo que morresse aos sessenta anos.»

(...)

   «Tinha sofrido porque o amor se não erguera ainda sobre a paisagem da sua vida, e esta falta de luz aumentava a aspereza dos maus caminhos que o acaso dos tempos a fizera trilhar. Agora que ela amava, desfazia-se uma por uma das suas últimas hesitações, com a simplicidade dum viandante enregelado que despe ao sol a roupa encharcada, e apresentava-se diante de mim nua como mulher alguma o esteve. E talvez que, tendo horrivelmente esgotado duma só vez todos os seus terrores e resistências contra o homem, não pudesse ela oferecer doravante ao seu primeiro amor senão a encantadora graça dum fruto que se propõe igualmente à boca e à faca.»


Marguerite Yourcenar. O Golpe de misericórdia. Tradução de Rafael Gomes Filipe e prefácio de Agustina Bessa-Luís. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, p. 59

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