quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Súplica

O outono demora-se no mundo
A juventude há muito despediu
a primavera da primeira ave
Respiro as lágrimas das raparigas
recordo-me do seu odor nocturno
Escuto o movimento lento da ramada
esqueci a escada habitual do dia-a-dia
a cortina da chuva corre-se de novo
Nesta manhã de outono alviões da vida
murmuram-nos mulheres minuciosas
O ombro da colina ergue o nevoeiro
na madrugada não cantaram os melros
A areia bebe cheia a chuva enquanto
nós infinitamente nos distanciamos
de quanto - diz a santa - desejamos
Aonde está a mãe da minha infância?
Talvez com ela tudo começasse
É nos fins do verão alguém morreu
foi-se a ferocidade das cigarras
no caminho das tílias percorridas
Deixo cair as mãos pois nem sempre me restam essas
aves do mar que a tempestade impele
em tempo de equinócio para a costa
É o cabo do mundo é o fim do ano
a era perfeita da culpabilidade
Respiro já os meus últimos dias
Sobre este céu nenhuma ave adeja
Que a terra humedecida me proteja



Ruy Belo. Transporte No Tempo. Introdução de Fernando Pinto do Amaral. Editorial Presença, 4ª edição, Lisboa, 1997., p. 27

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