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domingo, 30 de janeiro de 2011

Os Navios

       Da imaginação até ao Papel. É uma difícil passagem, é um perigoso mar. A distância parece curta à primeira vista, e embora seja assim quão longa viagem é, e quão prejudicial por vezes para os navios que a empreendem.
       O primeiro prejuízo provém da natureza assaz frágil das mercadorias que os navios transportam. Nos mercados da Imaginação a maior parte das coisas e as melhores são fabricadas de vidros finos e de cerâmicas transparentes, e com todo o cuidado do mundo muitas vezes se partem no caminho, e muitas vezes se partem quando as desembarcam para a terra. E todo o prejuízo deste género é sem remédio, porque é impensável que o navio volte atrás para recolher coisas da mesma forma. Não há hipótese de encontrar a mesma loja que as venda. Os mercados da Imaginação têm lojas grandes e luxuosas mas não de duração longa. As suas transacções são curtas, arrematam as suas mercadorias rapidamente e liquidam de seguida. É muito raro para um navio voltar e encontrar os mesmos exportadores com os mesmos géneros.
       Um outro prejuízo provém da capacidade dos navios. Partem dos portos dos continentes prósperos sobrecarregados, e depois quando se encontram em alto mar vêem-se obrigados a deitar para fora parte da carga para salvar o todo. De tal modo que quase nenhum navio consegue levar completos tantos tesouros quantos recolheu. As coisas despejadas são obviamente os géneros de menor valia, mas por vezes acontece que os marinheiros, na sua grande pressa, cometem erros e deitam ao mar objectos preciosos.
        Mal chegam ao porto branco do papel e são precisos outros sacrifícios de novo. Vêm os oficiais da alfândega e examinam um género e pensam se devem permitir o desembarque; recusam deixar que se descarregue um outro género; e de certas tralhas apenas aceitam pequena quantidade. Um lugar tem as suas leis. Nem todas as mercadorias têm a entrada livre e é estritamente proibido o contrabando. A importação de vinhos é impedida porque os continentes de que vêm os navios fazem vinhos e álcoois de uvas que crescem e amadurecem a temperatura mais generosa. Os oficiais da alfândega não querem para nada estas bebidas. São demasiado embriagadoras. Não são propícias para quaisquer cabeças. Para além disso existe uma companhia no lugar que tem o monopólio dos vinhos. Fabrica líquidos que têm a cor do vinho e o sabor da água, e deles se pode beber o dia inteiro sem que subam à cabeça. É uma velha companhia. Goza de grande reputação, e as suas acções estão sempre sobrevalorizadas.
         Devemos, porém, ficar satisfeitos quando os navios entram no porto mesmo que seja com todos estes sacrifícios. Porque ao fim de contas com vigia e com muito cuidado limita-se o número de recipientes partidos e atirados ao mar durante a viagem. Também, as leis do lugar e as normas alfandegárias são tirânicas em grande medida mas não de todo proibitivas, e grande parte da carga desembarca-se. Nem os oficiais da alfândega são infalíveis, e alguns dos géneros impedidos passam dentro de caixas fraudulentas em que se escreve uma coisa por fora e por dentro se tem outra, e importam-se alguns bons vinhos para banquetes excelentes.
        Triste, triste é outra coisa. É quando passam alguns navios enormes, com joalharias de coral e mastros de ébano, com grandes bandeiras desfraldadas brancas e vermelhas, cheios de tesouros, que nem sequer se aproximam do porto quer por todos os géneros que levam serem proibidos, quer por o porto não ter bastante profundidade para os acolher. E seguem o seu caminho. Vão de vento em popa sobre as suas velas de seda, o sol fulgura na sua figura de proa em ouro, e afastam-se tranquila e majestosamente, afastam-se para sempre de nós e do nosso porto constrito.
        Felizmente são muito raros estes navios. Apenas vemos dois, três durante a nossa vida inteira. E rapidamente os esquecemos. E depois de passarem alguns anos se algum dia - quando estamos inertes olhando a luz e ouvindo o silêncio - por acaso voltarem os nossos ouvidos mentais algumas estrofes entusiásticas, de início não as reconhecemos e atormentamos a nossa memória para recordar onde as tínhamos ouvido antes. Dificilmente acorda a antiga memória e recordamos que estas estrofes são do cântico que salmodiavam os marinheiros, belos como heróis da Ilíada, quando passavam os grandes, os excelsos navios e avançavam indo - quem sabe para onde.
 
 
 
 
 
Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 145-147
«Quando vestir as roupas negras e quando morar dentro de uma casa negra, dentro de um quarto escuro, abrirei de vez em quando o móvel com alegria, com desejo e com desespero.»

 

Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 144

Antes de o tempo os mudar

Entristeceram grandemente     no momento da sua separação.
Eles não a queriam;       foram as circunstâncias.
Necessidades vitais       fizeram um deles
ir embora para longe -        Nova Iorque ou Canadá.
O seu amor não era     por certo como dantes;
tinha diminuído       a atracção gradualmente,
tinha diminuído       muito a sua atracção.
Mas separar-se,     não o queriam.
Foram as circunstâncias. -     Ou porventura artista
foi a Sorte      separando-os agora
antes de apagar-se o sentimento deles,      antes de o Tempo os mudar;
o um para o outro       ficará para sempre como se fosse
esse belo rapaz      dos vinte e quatro anos.



Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 115

Em desespero

De todo o perdeu.            E agora adiante
dos lábios de um seu             qualquer novo amante
seus lábios demanda;        na união de um qualquer
seu novo amante        o engano demanda
de ser aquele rapaz,         a quem ele se entrega.

De todo o perdeu,      como se nem existisse.
Porque pretendia - ele lho disse -   pretendia salvar-se
do estigmatizado,        do mórbido prazer;
Ainda era tempo de -   ele lho disse - salvar-se.

De todo o perdeu,      como se nem existisse.
Por imaginação,       por alucinações
nos lábios doutros rapazes          os lábios dele demanda;
sentir procurando     seu amor de novo.



Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 111
E da tragédia o Verbo fulgurante
não tires nunca do teu pensamento -



Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 99
O corpo morto do herói com devoção e com tristeza Febo levanta-o e leva-o para o rio.
Lava-o do pó e do sangue;
fecha as feridas horríveis, sem deixar
que se veja nenhum traço; aromas
de ambrosia despejada sobre ele; e com esplêndidas
roupagens olímpicas o veste.
A sua pele branqueia; e com um pente de pérolas
penteia os cabelos todos negros.
Seus belos membros aforma e deita.


O Funeral de Sarpèdón




Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 91

Deslealdade

Ora nós, que elogiamos muita coisa em Homero, não louvaremos
uma [...] Nem Ésquilo, quando faz dizer a Tétis que Apolo, ao
cantar nos seus esponsais, exaltara a sua bela progénie

de vida isenta de doenças e de longa duração.
Depois que anunciou que de tudo, no meu destino,
cuidariam os deuses,

                                                                                                                   entoou o péan, para minha alegria.
                                                                                                                  Julgava eu que era sem dolo, Febo
                                                                                                                  a boca imortal, plena da arte dos oráculos.
                                                                                                                 E ele, o mesmo que cantou este hino,[...] 
                                                                                                                      [...] ele mesmo é que o matou,
                                                                                         
                                                                                                                  esse  filho que é meu.


Platão, República II (383a-b)



Quando casaram Tétis com Peleu
levantou-se Apolo no esplêndido festim
do casamento, e falou da ventura dos recém-casados
com o rebento que sairia da sua união.
Disse: A este nunca lhe tocará a doença
e terá vida longínqua. - Quando disse isto,
Tétis alegrou-se muito, pois as palavras
de Apolo que conhecia de profecias
lhe pareceram garantia para o seu filho.

E enquanto Aquiles crescia, e era
a sua beleza alarde da Tessália,
Tétis lembrava-se da palavra do deus.
Mas um dia chegaram velhos com notícias,
e disseram a chacina de Aquiles em Tróia.
E Tétis rasgava a sua roupa púrpura,
e arrancava de cima de si e atirava
ao chão as pulseiras e os anéis.
E por entre os seus prantos lembrou-se do passado;
e perguntou que fazia o sábio Apolo
por onde andava o poeta que nos festins
maravilhosamente fala, por onde andava o profeta
quando matavam o seu filho na flor da vida.
E responderam-lhe os velhos que Apolo
ele próprio desceu a Tróia
e com os troianos matou Aquiles.


 
Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 87-89

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Dias de 1903

Não voltarei a encontrá-los - esses tão depressa perdidos....
esses olhos poéticos, esse pálido
rosto....no anoitecer da rua....

Não os encontrarei mais - aos adquiridos inteiramente por acaso,
que tão facilmente deixei;
e que depois com ansiedade queria.
Esses olhos poéticos, esse pálido rosto,
aqueles lábios não os encontrei mais.



Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 71
«O Lanes a quem amaste não está aqui, Marcos,
no túmulo a que vens chorar, e ficas horas e horas.
O Lanes a quem amaste tu o que tens mais perto de ti
quando em tua casa te fechas e vês a imagem,
a qual um tanto conservou do que tinha que valesse,
a qual um tanto conservou do que tinhas amado.»


Túmulo de Lanes




Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 61

As coisas perigosas

Disse Myrtias (estudante sírio
em Alexandria; sendo reis
augustus Constans e augustus Constantius;
em parte gentio, e em parte cristianizante);
«Fortalecido com teoria e estudo,
eu e as minhas paixões não vou temer como cobarde.
O meu corpo aos prazeres vou dar,
aos deleites sonhados,
aos desejos eróticos mais audazes,
aos ímpetos lascivos de meu sangue, sem
medo nenhum, pois sempre que queira -
e terei vontade, fortalecido
como estarei com teoria e estudo -
nos momentos críticos hei-de encontrar
o meu espírito, como dantes, ascético.»




Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 43

Troianos

São nossos esforços, os dos infortunados;
são nossos esforços como os dos troianos.
Conseguimos um pouco; um pouco
levantamos a cabeça; e começamos
a ter coragem e boas esperanças.

Mas sempre surge alguma coisa que nos pára.
Aquiles junto do fosso à nossa frente
surge e com grandes gritos assusta-nos. -

São nossos esforços como os dos troianos.
Cuidamos que mudaremos com resolução
e valor a contrariedade da sorte,
e estamos cá fora para lutar.

Mas quando vier o momento decisivo,
o nosso valor e a nossa resolução perdem-se;
a nossa alma fica alterada, paralisa;
e em redor das muralhas corremos
à procura de nos salvarmos pela fuga.

Porém a nossa queda é certa. Em cima,
nas muralhas já começou o pranto.
Choram pelas memórias e os sentimentos dos nossos dias.
Amargamente choram por nós Príamo e Hécuba.



Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 33

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ítaca

Tradução de Jorge de Sena


Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado — não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria — nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.


Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes o quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.


Konstantinos Kaváfis
«O que George Seferis, o primeiro crítico grego de Kaváfis verdadeiramente atento, achava singular nele era que ninguém poderia ter previsto, com base nos seus trabalhos iniciais, que tinha talento suficiente para ser considerado, no devido tempo, um poeta de conteúdo, ou mesmo o mais importante poeta de língua grega do século XX, sendo sua obra mundialmente traduzida.»


Edmund Keeley. O essencial de Kaváfis (fragmentos)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

História

Aconteça o que acontecer, aqui fico - murmurou
ele.
A margem é imensa, as pedras
alteram a sua cor à passagem da hora.
Se contemplas a água, logo após o crepúsculo,
verás o último filho de Tiestes
sem espada, sem coroa, apenas
no flanco direito a cicatriz duma estrela.
Quanto ao resto dir-se-á que estava escrito
o amor, o massacre e o regresso,
o poder efémero, a ausência de descendentes,
e a minúscula cruz de ferro
pendurada num fio, nessa mesma noite,
e pisada no solo pelos cascos dos cavalos.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.99

As mulheres

As mulheres estão muito distantes. As suas rou-
pas, o cheiro de «Boa Noite».
Pousam o pão na mesa para que não se sinta
como estão ausentes.
É então que nos sentimos culpados. Levantamo-nos
da cadeira e dizemos:
«Estás muito cansada hoje » ou então «Deixa, eu
acendo o candeeiro».
Quando pegamos no fósforo ela volta-se lenta-
mente
e dirige-se para a cozinha com uma aplicação
inexplicável. As costas
são uma pequena colina de amargura carregada
de mortos sem fim,
os mortos da família, os mortos dela e a nossa
morte.
Ouvem-se-lhe os passos a afastar latas velhas,
ouvem-se as travessas a chorar na banca, depois
ouve-se
o comboio que transporta os soldados para a
frente.


Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.85

domingo, 5 de dezembro de 2010

Por fim calou-se, a infeliz. Creio ouvir no silêncio
a sua razão,
tão vulnerável no seu furor, tão injustamente
tratada,
com os seus amargos cabelos lançados para os
ombros como a erva dos túmulos,
emparedada na sua acanhada visão da justiça.
Adormeceu talvez,
sonha possivelmente com um lugar inocente, com
animais simples,
casas caiadas de branco cheias com os belos aromas
do pão fresco e das rosas.

Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca
que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -
lembras-te?
Estava ali, separada da charrua, olhava para o
longe
e com os vapores das narinas embaciadas
o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e
ferida
nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,
tinha conhecido talvez a negação, a submissão,
a intransigência e a hostilidade, tudo junto.

Sustentava entre os dois cornos
a mais pesada parte do céu, como uma coroa.
Depois
baixou a testa, bebeu a água do regato
lambendo com a língua sangrenta essa outra
língua
fresca da sua imagem de água, como se lambesse
longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-
mente,
do exterior a sua ferida interna, como se lambesse
a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;
- mata talvez a sede -
só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem
sabe?

Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em
nada,
ela própria intacta e calma como um santo;
apenas
entre as suas duas patas enraizadas na ribeira
um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-
tinha-se, mudava de forma,
um lago vermelho que se assemelhava a um postal
e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-
parecia
como se todo o sangue passasse para uma veia
invisível do mundo,
muito longe, liberto, fácil; por isso
se mantinha calma; como se tivesse sabido
que o nosso sangue não se perde,
nada, nada se perde neste grande nada,
este inconsolável, este impiedoso, este incompa-
rável,
tão doce, tão consolador, tão nada.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76
Esta noite de espera deixa-me uma aberta para
o exterior
e o interior. Não distingo claramente. Talvez
grandes máscaras deterioradas, agrafes metálicos;
as sandálias dos mortos torcem-se na humidade,
movem-se sozinhas como se caminhassem sem pés
 - não caminham;
e essa grande rede do banho, quem a teceu?
nó a nó - não se desfaz -, negra - não é a mãe.

Uma sombra imensa alonga-se por cima das ar-
cadas;
uma pedra destaca-se e cai na ravina - no entanto
ninguém caminhou -
e depois nada; e subitamente um ramo quebrado
pelo peso ligeiro do céu. As rãs
saltam, ágeis e mudas, na erva húmida. Silêncio.
No poço caem ratos cor de cinza, afogam-se;
constelações espessas movem-se lentamente; dei-
tam-se fora
coisas que os banquetes abandonam, ânforas, taças,
espelhos e cadeiras.
ossos de animais, liras e diálogos inteligentes. Os
poços nunca enchem.
Dir-se-ia que dedos de fogo, dedos de orvalho
passam sucessivamente pelo nosso peito,
descrevendo círculos inquiridores em torno dos
nossos mamilos
e também nós flutuamos de círculo em círculo,
em torno dum centro
desconhecido, indefinido e no entanto definido;
círculos infindáveis
em torno dum grito mudo, em torno duma facada;
e a faca
mergulha, creio, no nosso coração e este torna-se
o centro
como o poste no meio da eira, na colina,

e em torno os cavalos, as espigas, os malhadores,
os condutores
e as ceifeiras entre as medas, com a cabeça da
lua nos ombros,
ouvindo o relincho dos cavalos até ao extremo
do seu sono,
ouvindo os touros urinar nos salgueiros e nas
silvas
e os pés inumeráveis da centopeia e do cântaro,
o rastejar da serpente tranquila nos olivais
e o crepitar da pedra ardente que se contrai ao
arrefecer.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.72/3
Também possuo uma vida e devo vivê-la. Nada
de vinganças;
que poderia, mais uma morte, arrancar à morte,
sobretudo uma morte violenta? E que poderia
acrescentar à vida? Os anos
passaram. Não sinto ódio; esqueci, talvez?, estou
cansado? Não sei.
Até sinto uma relativa simpatia pela criminosa;
ela mediu abismos imensos,
um grande crescimento fez crescer-lhe os olhos
na obscuridade
e ela vê - vê o inesgotável, o irrealizável, o imu-
tável. Ela vê-me.
Também eu quero ver o assassínio de meu pai na
totalidade apaziguadora da morte,
esquecê-lo na morte completa
que também nos espera. Esta noite revelou-me
a inocência de todos os usurpadores. E todos somos,
de um modo ou outro, usurpadores - estes dos
povos, dos tronos,
aqueles do amor ou da morte; minha irmã
usurpadora da minha única vida; e eu da tua.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.66
E ela teima em preparar o hidromel e a comida
para os mortos
que já não têm sede e não têm fome e não têm
boca
e já não sonham reabilitações ou vinganças. Ela
invoca sempre
a sua infabilidade (que espécie de infabilidade,
realmente?) talvez para fugir
à responsabilidade duma escolha sua, duma deci-
são sua
- quando os dentes dos mortos, descarnados, dis-
persos pela terra,
são a semente branca, num imenso vale negro,
que faz nascer os únicos infalíveis, invisíveis, as
árvores brancas,
o brilho do fósforo no luar até ao fim dos anos.
Ah, como pode a sua boca suportar essas palavras
desenterradas, sim, de velhas malas (essas malas
ornamentadas com grandes pregos), desen-
terradas
no meio de velhos chapéus da mãe, fora da moda,
a mãe já não os usa - não os quereria. Viste-a
no jardim
esta tarde? - Como é ainda bela! - não envelhe-
ceu nada
talvez porque vigia o tempo, age sobre o tempo
a cada momento - quero dizer: rejuvenesce,
sabendo a juventude que perde; e talvez por isso
a ganha novamente.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.60/1

Forma da ausência

XII
 
Este quarto tornou-se um poço profundo.
O candeeiro é uma estrela pregada na água.
A cama infantil no seu lugar; os lençóis, por agora
lançam reflexos circulares
enquanto à superfície da toalha
as horas lentas, imponderáveis, caem como fetos
de palha,
nela traçando círculos invisíveis. Ninguém fala
no interior - e se falasse ninguém ouviria. Quando
um copo
tomba, cai sem fazer ruído na palma do silêncio.
Não se quebra.
Sozinho, dissolvido da na água, o antigo grito da
separação
torna o poço mais sombrio e mais profundo.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.36
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