(...)
«Lembra-se do focinho de homens e mulheres que espiou
em orgias, e do mundo santo como aqueles vários dedos
cumprimentavam, no dia seguinte,
e se cruzavam em rezas sinceras e públicas.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 169
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domingo, 24 de julho de 2011
4
E Bloom tem uma memória e não a perdeu.
Teve familiares desonestos, amigos antigos
que lhe provocam agora repulsa,
inimigos de que se lembra com prazer.
Teve amigos e inimigos. Lembra-se de adultérios
escabrosos em casais perfeitos.
E lembra-se de Mary.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 168
Teve familiares desonestos, amigos antigos
que lhe provocam agora repulsa,
inimigos de que se lembra com prazer.
Teve amigos e inimigos. Lembra-se de adultérios
escabrosos em casais perfeitos.
E lembra-se de Mary.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 168
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138
A vida, é certo, não será um sítio excepcional para as paixões.
Nos países humanos, o amor mistura-se muito
com palavras equívocas.
O fogo que existe numa lareira, por exemplo,
é um fogo servil, cultural, educado.
Uma coisa vermelha, mas mansa,
que nos obedece.
Só é natureza, o fogo na lareira,
quando, vingando-se, provoca um incêndio.
E o amor assim funciona. Mas é preferível o contrário.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 163
Nos países humanos, o amor mistura-se muito
com palavras equívocas.
O fogo que existe numa lareira, por exemplo,
é um fogo servil, cultural, educado.
Uma coisa vermelha, mas mansa,
que nos obedece.
Só é natureza, o fogo na lareira,
quando, vingando-se, provoca um incêndio.
E o amor assim funciona. Mas é preferível o contrário.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 163
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133
E não há vinganças subtis. A vingança
é uma coisa imensa, ou não é.
O rancor não tem meio,
se estás nele estás sempre no limite,
no ponto extremo que te obriga a não conhecer
outras acções que não as da maldade.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 161
é uma coisa imensa, ou não é.
O rancor não tem meio,
se estás nele estás sempre no limite,
no ponto extremo que te obriga a não conhecer
outras acções que não as da maldade.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 161
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132
Mary morreu e Bloom amava-a,
caro Jean M.
O mundo é isto: combate-se. Atacamos, defendemos.
Há milénios atrás, em certos locais,
as flores foram indícios da futura fábrica.
Vejo e percebo: do jardim
vem um fumo que já não cheira a delicadezas.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 161
caro Jean M.
O mundo é isto: combate-se. Atacamos, defendemos.
Há milénios atrás, em certos locais,
as flores foram indícios da futura fábrica.
Vejo e percebo: do jardim
vem um fumo que já não cheira a delicadezas.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 161
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109
A boa imagem do coração, deve-se, em grande parte,
ao seu eficaz esconderijo. Sabe melhor isso
do que eu, Jean M. Os outros
são apenas alguém que nos olha.
Vigiar ou seduzir. Tudo o resto é cegueira.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 153
ao seu eficaz esconderijo. Sabe melhor isso
do que eu, Jean M. Os outros
são apenas alguém que nos olha.
Vigiar ou seduzir. Tudo o resto é cegueira.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 153
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74
Mas o meu pai aprendeu a lição. Pagou juros altíssimos
por um mau investimento, mas regressou
à cadeira ainda com vontade de se levantar.
As derrotas devem surgir
enquanto somos novos e fortes, pois aí os insucessos
fortalecem, enquanto mais tarde poderão enfraquecer.
Uma derrota no tempo certo é aquilo que
te fará vencer no tempo certo. E estes
podem ser dois tempos ou um. Parece-me.
75
A intensidade com que se é esmagado não importa,
de facto o que importa é a intensidade que nos resta
depois de sermos esmagados.
A realidade não é coisa física,
mas pressentimento que nos cerca,
nojo - ou por vezes, raramente,
um certo assombro feliz.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 143
Mas o meu pai aprendeu a lição. Pagou juros altíssimos
por um mau investimento, mas regressou
à cadeira ainda com vontade de se levantar.
As derrotas devem surgir
enquanto somos novos e fortes, pois aí os insucessos
fortalecem, enquanto mais tarde poderão enfraquecer.
Uma derrota no tempo certo é aquilo que
te fará vencer no tempo certo. E estes
podem ser dois tempos ou um. Parece-me.
75
A intensidade com que se é esmagado não importa,
de facto o que importa é a intensidade que nos resta
depois de sermos esmagados.
A realidade não é coisa física,
mas pressentimento que nos cerca,
nojo - ou por vezes, raramente,
um certo assombro feliz.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 143
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27
As mulheres sempre foram mais
minuciosas na vingança - disse Bloom. Folheiam-na
sem saltar uma página. E tratam das unhas
antes de pagar no machado.
Pelo contrário, o homem com raiva
e ressentimento é atabalhoado, desastrado,
incapaz de encontrar a pronúncia perfeita da violência.
28
como se pegasse em ferramentas
despropositadas: a charrua
para arrancar uma flor,
o martelo para ver mais perto.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 128
As mulheres sempre foram mais
minuciosas na vingança - disse Bloom. Folheiam-na
sem saltar uma página. E tratam das unhas
antes de pagar no machado.
Pelo contrário, o homem com raiva
e ressentimento é atabalhoado, desastrado,
incapaz de encontrar a pronúncia perfeita da violência.
28
como se pegasse em ferramentas
despropositadas: a charrua
para arrancar uma flor,
o martelo para ver mais perto.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 128
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26
No erotismo o que importa é no corpo da amada
não existir saída.
Uma boa luta - amorosa -
é pois aquela onde os dois corpos estão,
um no outro,
como se no meio do famoso labirinto
de onde ninguém consegue sair.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 127
não existir saída.
Uma boa luta - amorosa -
é pois aquela onde os dois corpos estão,
um no outro,
como se no meio do famoso labirinto
de onde ninguém consegue sair.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 127
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(...)
«Não sou indiferente às repetições, suporto melhor o tédio
que certas aventuras desnecessárias.
Não estou, pois, obcecado por novidades.
Porém, não suporto que, em mim,
a não surpresa já não me surpreenda.»
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 104
«Não sou indiferente às repetições, suporto melhor o tédio
que certas aventuras desnecessárias.
Não estou, pois, obcecado por novidades.
Porém, não suporto que, em mim,
a não surpresa já não me surpreenda.»
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 104
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sábado, 23 de julho de 2011
70
Procuro uma mulher, disse Bloom, ou então
a sabedoria. Se em Paris não as encontrares juntas,
responderam-lhe, pelo menos com uma delas
te cruzarás. E uma pode levar-te à outra.
Claro que é menos provável
uma mulher levar-te à sabedoria
que ao seu quarto, disseram a Bloom,
mas se por um extraordinário acaso tal acontecer,
não te esqueças de a relembrar: o quarto, primeiro
o quarto. E Bloom sorriu.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 99/100
a sabedoria. Se em Paris não as encontrares juntas,
responderam-lhe, pelo menos com uma delas
te cruzarás. E uma pode levar-te à outra.
Claro que é menos provável
uma mulher levar-te à sabedoria
que ao seu quarto, disseram a Bloom,
mas se por um extraordinário acaso tal acontecer,
não te esqueças de a relembrar: o quarto, primeiro
o quarto. E Bloom sorriu.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 99/100
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segunda-feira, 18 de julho de 2011
«E é evidente: conhecem-se os homens pelo que lêem
mas não só. Como matam - que armas usam -
e como se apaixonam - que palavras utilizam nas
declarações de amor. (...)»
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 51
mas não só. Como matam - que armas usam -
e como se apaixonam - que palavras utilizam nas
declarações de amor. (...)»
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 51
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40
E tendo já a flecha começado o seu caminho,
como a queres parar? Tal como a morte (que é coisa única:
se já começou não a poderás suspender),
também assim a tua vontade.
Bem mais fácil é decepar um braço grosso
e musculado. Vê pois como pensar é acto potente
e os seus efeitos - as ideias - são matéria resistente.
Vai veloz para um sítio; e que não tenhas tempo para recuar
- eis um conselho, Bloom.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 43
como a queres parar? Tal como a morte (que é coisa única:
se já começou não a poderás suspender),
também assim a tua vontade.
Bem mais fácil é decepar um braço grosso
e musculado. Vê pois como pensar é acto potente
e os seus efeitos - as ideias - são matéria resistente.
Vai veloz para um sítio; e que não tenhas tempo para recuar
- eis um conselho, Bloom.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 43
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quarta-feira, 13 de julho de 2011
«Bloom, ele, de facto, procurará o impossível:
encontrar a sabedoria enquanto foge;
fugir enquanto aprende.»
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 42
encontrar a sabedoria enquanto foge;
fugir enquanto aprende.»
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 42
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26
Só depois deste grito a ironia regressa,
dizendo, quando muito:
morro, é certo, mas mesmo assim
guardo uma elegante distância em relação
à minha morte.
Eis. Bloom, em traços largos,
a apresentação da velha ironia
que por vezes utilizaremos para evitar
rir às gargalhadas, ou chorar.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 37
dizendo, quando muito:
morro, é certo, mas mesmo assim
guardo uma elegante distância em relação
à minha morte.
Eis. Bloom, em traços largos,
a apresentação da velha ironia
que por vezes utilizaremos para evitar
rir às gargalhadas, ou chorar.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 37
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12
Cuidado com os homens que partem com vontade
e felizes: na primeira acção, se necessário,
serão capazes de matar.
Cuidado, pois, Bloom, com a tua vontade.
(Mas preocupa-te também, nesta viagem,
com o modo como fazes as coisas.)
Porém Bloom não parte de Lisboa feliz, o que já não é mau.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 33
e felizes: na primeira acção, se necessário,
serão capazes de matar.
Cuidado, pois, Bloom, com a tua vontade.
(Mas preocupa-te também, nesta viagem,
com o modo como fazes as coisas.)
Porém Bloom não parte de Lisboa feliz, o que já não é mau.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 33
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10
Falaremos da hostilidade que Bloom,
o nosso herói,
revelou em relação ao passado,
levantando-se e partindo de Lisboa
numa viagem à Índia, em que procurou sabedoria
e esquecimento.
E falaremos do modo como na viagem
levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 32
o nosso herói,
revelou em relação ao passado,
levantando-se e partindo de Lisboa
numa viagem à Índia, em que procurou sabedoria
e esquecimento.
E falaremos do modo como na viagem
levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto.
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Melancolia contemporânea (um itinerário). Prefácio Eduardo Lourenço. Editorial Caminho, 2ª ed., 2011., p. 32
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