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domingo, 26 de janeiro de 2014

''Corrói-te e persegue-te o espectro da angústia''

Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 35

O TEU PULSAR É O MEU


E lutei contra o sono e contra a fadiga,
contra a ira sem fim e contra o desenraizamento.
Esquadrinhei e esgaravatei sem hesitação,
por entre as débeis e cegas fagulhas
da minha memória por encontrar durante um ano,
um solitário dia, apenas um instante
em que pude dizer: jamais te amei;
mas não encontrei qualquer resquício para, sozinho, mentir-me,
para sequer afirmar a mais pequena negação.
O teu pulsar é o meu. Ali, onde começa
esse desejo intenso em que nomeamos a vida,
ali, resplandecendo nos diferentes dias,
na ardente espessura do meu assombro,
com o sim e com o não do abismo ou da sorte,
esperas-me silenciosa como árvore de fogo 
que sustém essa fruta lustral da esperança.
O meu olhar invoca-te agora,
no rumo indeciso de qualquer distância
desse mar que me canta e seduz
com os olhos impetuosos do relâmpago.
És a sede do Éden que eu não entendo
e, nos profundos acordes da tua voz,
permaneces perene, com a tensa
música da alma e da audaz Primavera,
em todas as palavras do sangue.




Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 33

É TÃO RARO O AMOR POR SI PRÓPRIO


Sigo na escuridão sem rosto. Sofre
a criança solitária que palpita nos meus olhos,
perdida na espiral da angústia.
Ela nada pede, escuta um futuro despido.
Está sombria e ausente e já não me sorri.
Não sei como conduzi-la à alegria.
Com as minhas lágrimas silencia e não pode dormir.

Sou parte da bruma que não me ama.
Um pequeno pulsar une-me a tudo o que vivo,
já não se sabe se sou o que ainda sou
ou sou o que me nega obstinadamente.
É tão raro o amor por si mesmo
que na sua fronteira treme com o seu contrário
e por vezes se troca ou se suprime.
Como entender então a súbita piedade,
a injustiça de um ódio que por vezes se comove
mostrando-me a sua gelada transparência?



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 31

DESVANECES-TE AO AMANHECER


Desvaneces-te ao amanhecer.
Só fica a tua sombra entre as minhas mãos,
uma presença de ar, desejo e sonho e riso
que dissipa o seu incêndio consumido

(...)


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 29

RITUAL DOS ESCRAVOS


Dá-me o que não tens, mas que é a tua essência,
acaso esse desejo tão íntimo e proibido,
o que mais te pertence: a tua entrega e a tua renúncia.
Tudo o que serás quando a tua plenitude
alcance o futuro que tenha amadurecido
como um dourado fruto pela luz do Outono.

Talvez a noite límpida nos reúna
para que conheçamos o mal do difícil,
o mail indivisível do amor,
onde por fim possamos existir
no ténue esplendor com que a vida
nos escolhe e fatalmente nos mistura.

Por isso peço-te que com firmeza cumpras
o rigoroso ritual dos escravos:
mudar a liberdade da esperança
pela ânsia que juntos nos aprisiona.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 28

RESSURREIÇÃO


A meio da tarde sou um morto qualquer,
e o desejo uma duna que se estende
no seu próprio deserto, no seu pântano sem ondas.
Por não querer saber não sonho nem com a paisagem,
deixo de ouvir o território que disseca o rio
como se fosse o esqueleto em funga
da miragem, pedra que ancorou sob o silêncio.

Tudo se altera na noite. As estrelas ressurgem
de poliedros fulgurantes. São despertos os felinos
que rasgam com veemência um sol que se fez sombra.
A sede põe-se em pé, com metáforas cresce
no alto arvoredo do coração profundo.
Aqui canta o enigma dos bosques,
o círculo que aquece o teu corpo no meu:
bela praia-mar dos sentidos plenos,
ebriedade e delírio da ressurreição.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 27

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

THANATOS E EROS


Espelho dentro de um absorto espelho,
quem vês dentro de ti mesmo,
o teu frio, talvez, a tua carência,
ou o convulso mistério que te embebe
para ser parte de ti o que do éden tu desejas?
Serás, por acaso,  o meu altivo delírio,
a outra metade perdida e nunca encontrada,
o outro inimigo que me procura?

Obscura tentação do proibido,
a tua indagação explica-me, turva-me até inflamar
a perversa paixão da aparência,
a vã leveza que me nega e te apaga,
a que lança na minha alma a sua promessa de amor
até ficar contigo, alheio e deslumbrado,
para assim me destruíres lentamente.
Mas o que procuras em mim? Serão os meus sonhos
ou as minhas reencarnações futuras?

Afasta de mim a tua exaltação tenebrosa,
ou será que formaremos sempre um só ser,
fundidos num corpo de cega luz.
Sei que somos duas forças fustigadas,
a luta fraticida entre Thanatos e Eros,
a impiedade da noite e o desdém da luz,
a claridade que pulsa com a sua agónica sombra.
O horror e o afã de se extinguir na tua vertigem,
sorvendo o teu brilho e o meu soluço,
tornam infindável a miragem.
O tempo divide-nos e reúne-nos.
Na palavra elevada voltamos a olhar-nos,
lenta ressurreição, sonho de pátria e vento,
olhos onde começamos a encontrar
as súbitas presenças da minha face e do teu revés,
enquanto a solidão e o silêncio se afundam
e nos deixam cativos, frente a frente, no nada.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 18

«Toco a hostil humidade no anoitecer
das tensas palavras que não esqueço
e escuto a palpitação do poema,
como se fosse o infinito espaço
que abraçasse o planeta solitário que eu sou.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 18

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O SANGUE IRREFREÁVEL


A avidez que descubro nas minhas pupilas
como fera encerrada por um íntimo acaso.
Atracção por aquele fogo, a miragem
estende as suas areias perante o mar de Verão,
perante o voo dos pássaros que anunciam
o diálogo furtivo dos corpos.

Reino da lascívia sob palmeiras sombrias,
ardente brisa, música plena dos sentidos
iniciada na alma, respirada
com fruição pelos meus cinco salteadores dementes.
Quantas luzes se acenderam. Quanta pura agitação
nos lábios e nas ancas fugidias.

Emergi da espuma como um sol solitário.
Passei por dunas, oásis, cheirei esticados lençóis,
despertei os racimos mais pretos e os mais túmidos,
senti as certezas que estes dedos abriam.
Ali a dança, abismo de doçura,
e o seu vibrante ventre de timbale,
bebendo-se na desordem o meu futuro
sob o ar de uma vertigem de estrelas.
Fui tirano e escravo do gozo e da dor,
da dura saudade dos beijos,
da fugacidade depredadora
de tudo quanto vive e ama consumindo-se.
Despedaçado, escutei o pavor do capricho,
a impiedade que me nega ou aquela onde amanheço.

Morri com a convicção em tantas ocasiões
para ressuscitar com um vigor fragante,
e depois e depois e depois, depois de tantos anos,
sonho perante o mar rebelde do estio,
sonho com a juventude de um erguido desejo
e espero a maré das horas
vindo e indo até ao último deserto,
lá onde se dilui o sangue irrefreável.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 13/4

Consciência

Já nem conservas a fibra dos sonhos
que reclame a herança perdida da tua sorte?
Exiges certezas, uma fidelidade
de acordo com a paz do coração,
livre dos presságios onde espreita
o exausto pulsar do vencido.
Quanto desdém usurpa a tua integridade.
Ainda no erro manténs o orgulho
de ser entre medíocres o senhor dos náufragos.
Os teus olhos esculpiram no ar distante
a esperança, a única possível
de não ouvir a chuva de qualquer infortúnio.
É tão difícil perdurar, continuar
a insistir num ténue registo de palavras,
procurando-as pelos anos sombrios,
como se elas salvassem ou desculpassem
esta inquietude de merecer a vida.


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 11

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