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sábado, 26 de março de 2011

«-...O sujeito de que estou a falar trabalhava como «amansador» na Meia-Lua; dizia chamar-se Inocencio Osorio. Embora todos o conhecêssemos pela alcunha de Saltarico por ser muito leve e ágil a saltar. O meu compadre Pedro dizia que estava talhado para amansar potros; mas a verdade é que ele tinha outro ofício: o de «provocador». Era provocador de sonhos. Era isso que ele era verdadeiramente. E enredou a tua mãe tal como fazia com muitas. Entre outras, eu. Uma vez, senti-me doente e ele apresentou-se e disse-me: «Venho tomar-te o pulso para que te sintas melhor.» E tudo consistia nisto: começava a massajar-te, primeiro nas pontas dos dedos, depois esfregando as mãos; a seguir os braços, e acabava por meter-se entre as nossas pernas, a frio, pelo que aquilo, ao fim de algum tempo, começava a produzir calor. E, enquanto manobrava, falava-te do teu futuro. Entrava em transe, revirava os olhos fazendo invocações e amaldiçoando; enchendo-te de gafanhotos tal como os ciganos. Por vezes, ficava em pelota porque dizia ser esse o nosso desejo. E às vezes acertava; picava em tantos sítios que a algum tinha de ir dar.
    «A verdade é que o tal Osorio prognosticou à tua mãe, quando ela o foi ver, que ''nessa noite não devia deitar-se com nenhum homem porque a Lua estava bravia.''»
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 33

terça-feira, 8 de março de 2011

        « A chuva transformava-se em brisa. Ouviu: «O perdão dos pecados e a ressurreição da carne. Amén.» Isso era cá dentro, onde as mulheres rezavam o fim do rosário. Levantavam-se; fechavam-se os pássaros; trancavam a porta; apagavam a luz.
         Só permanecia a luz da noite, o ciciar da chuva como um murmúrio de grilos...
         -Porque é que não foste rezar o rosário? Estamos na novena pelo teu avô.
         Lá estava a sua mãe, na ombreira da porta, de vela na mão. A sua sombra, que se estendia até ao tecto, longa, desdobrada. E as vigas do tecto desenvolviam-se em pedaços, despedaçada.
          -Sinto-me triste - disse.
          Então, ela voltou-se. Apagou a chama da vela. Fechou a porta e abriu os seus soluços que continuaram a ouvir-se, confundindo-se com a chuva.
          O refúgio da igreja deu as horas, uma a seguir à outra, como se o tempo estivesse encolhido.»




Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 31
«Os teus lábios estavam molhados como se o orvalho os houvesse beijado.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 28

quarta-feira, 2 de março de 2011

Comala

«Eu imaginava ver tudo aquilo através das memórias da minha mãe; da sua nostalgia, entre retalhos de suspiros. Ela viveu sempre a suspirar por Comala, pelo regresso; mas nunca voltou. Agora venho eu em vez dela. Trago os olhos com que ela viu estas coisas, porque sempre me deu os seus olhos para ver: «Passado o desfiladeiros de Los Colimotes, há a vista mais bonita de uma planície verde, um pouco amarela por causa do milho maduro. Daí vê-se Comala, branqueando a terra, iluminando-a durante a noite.» E a sua voz era sussurrada, quase apagada, como se falasse consigo mesma...A minha mãe.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 20
«- Não lhe vás pedir nada. Exige-lhe o que nos pertence. O que me devia ter dado e nunca deu...O esquecimento a que nos votou, meu filho, cobra-lho caro.
   -Assim farei, mãe.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 19

domingo, 9 de janeiro de 2011

No Camino de Dios ficou o Chihuila

   «Corremos tudo o que podíamos. No Camino de Dios ficou o Chihuila, acaçapado atrás de um medronheiro, com a manta enrolada no pescoço, como se estivesse a defender-se do frio. Ficou a olhar-nos quando corríamos cada um para seu lado para dividirmos a morte. E ele parecia rir-se de nós, com os seus dentes descarnados, coloridos de sangue.
      Aquele desconcerto que nos aconteceu foi bom para muitos; mas a outros correu-lhes mal. Era raro que não víssemos pendurado pelos pés algum dos nossos em qualquer pau de algum caminho. Ali permaneciam até que se faziam velhos e se retorciam como couros para curtir. Os urubus comiam-nos por dentro, tirando-lhe as tripas, até deixar só a casca. E como os penduravam alto, ali estavam eles bamboleando-se ao sopro do ar durante muitos dias, às vezes meses, às vezes já só as tiras penduradas das calças meneando-se ao vento, como se alguém as tivesse posto a secar ali. E uma pessoa sentia que as coisas agora eram a sério, ao ver aquilo.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 220
«Sentíamos  aqueles seus olhos bem abertos, que não dormiam e que estavam acostumados a ver de noite e a conhecer-nos na escuridão.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 218
«Mas nós também lhes tínhamos medo. Era digno de se ver como se nos engasgavam os tomates na garganta só com ouvir o barulho das suas guarnições ou as ferraduras dos seus cavalos a golpearem as pedras de algum caminho, onde os esperávamos para lhes armar alguma emboscada. Ao vê-los passar, quase sentíamos que nos olhavam de esguelha como dizendo: «Já os farejamos, apenas nos estamos a fazer dissimulados.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 214
«Muito antes de chegarmos a San Buenaventura demo-nos conta de que os ranchos estavam a arder. Das tulhas da fazenda alçava-se mais alta a labareda, como se se estivesse a queimar um charco de aguarrás. As faíscas voavam e enroscavam-se na escuridão do céu, formando grandes nuvens alumiadas.
   Continuámos caminhando em frente, encandeados pela luminária de San Buenaventura, como se alguma coisa nos dissesse que o nosso trabalho era estar ali, para acabar com o que restasse.
   Mas ainda não tínhamos conseguido chegar quando encontrámos os primeiros a cavalo, que vinham a trote, com a soga amarrada na cabeça da sela e puxando uns homens com os pés atados que, de vez em quando, até caminhavam sobre as mão, e outros homens aos quais já tinham caído as mãos e que traziam a cabeça dependurada.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 212
«Tencionávamos deixar passar os anos para depois voltar ao mundo, quando já ninguém se lembrasse de nós.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 211

domingo, 26 de dezembro de 2010

   « E Natália esqueceu-se de mim desde então. Eu sei como lhe brilhavam antes os olhos como se fossem charcos alumiados pela lua.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 191

'Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália...'

«Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo, que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre nos separava a sombra de Tanilo: sentíamos que as suas mãos empoladas se metiam entre nós e levavam Natália para que o continuasse a cuidar. E sempre assim seria enquanto ele estivesse vivo.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 189

Talpa

«Nem depois, nem no regresso, quando viemos caminhando de noite sem conhecer o sossego, andando às apalpadelas como adormecidos e pisando com passos que pareciam pancadas sobre a sepultura de Tanilo. Nessa altura, Natália parecia estar endurecida e trazer o coração apertado para não o sentir ferver dentro dela. Mas dos seus olhos não saiu nem uma lágrima.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 187

O homem

«(...) Esperei-te um mês, acordado de dia e de noite, sabendo que chegarias de rastos, escondido como uma víbora venenosa. E chegaste tarde. E eu também cheguei tarde. Cheguei atrás de ti. Entreteve-me o enterro do recém-nascido. Agora percebo porque é que me murcharam as flores na mão.»
   «Não devia tê-los matado a todos», ia pensando o homem. «Não valia a pena pôr esse fardo tão pesado nas minhas costas. Os mortos pesam mais do que os vivos; esmagam-nos. Devia tê-los tenteado um por um até dar com ele; tê-lo-ia conhecido pelo bigode; embora estivesse escuro, teria sabido onde lhe bater antes que se levantasse...No fim de contas, é melhor assim: ninguém os chorará e eu viverei em paz. A questão é encontrar a passagem para sair daqui antes que me agarre a noite.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 173
«Caminharei mais para baixo. Aqui o rio tem um remoinho e pode devolver-me onde não quero regressar.»
«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e os meus ossos endureceram antes dos teus.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

O homem

«Não devia tê-los matado a todos; ter-me-ia conformado com aquele que tinha de matar; mas estava escuro e os vultos eram iguais...No fim de contas, sendo tantos custar-lhes-á menos o enterro.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

'as minhas outras duas irmãs, as mais velhas'

«Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim que lhes cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima.
   Então o meu papá correu com as duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei para onde; e aí andam como putas.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 166
   «Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
    E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
    Bramou só Deus sabe como.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5
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