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domingo, 6 de maio de 2012

REVOLTA

O morto está todo torcido e não olha para as estrelas:
tem os cabelos colados ao empedrado. A noite pôs-se mais fria.
Os vivos regressam a casa ainda a tremer.
É difícil acompanhá-los; dispersam-se todos
e um sobe as escadas, outro desce à adega.
E outro caminha até de madrugada e deita-se num prado,
ao sol. Amanhã no trabalho, alguém fará um sorriso
de desespero. Depois, também isto passará.
 
Quando dormem, parecem o morto: se também há uma mulher,
é mais pesado o odor, mas parecem mortos.
Cada corpo agarra-se, torcido, à cama,
como ao rubro empedrado: o longo cansaço
que dura desde a aurora vale bem uma breve agonia.
Sobre cada corpo coagula uma escuridão suja.
Solitário, o outro corpo morto está estendido às estrelas.
 
Também parece morto o monte de farrapos que o sol
escalda com força, encostado ao muro. Dormir
na rua demonstra confiança no mundo.
Há uma barba entre os farrapos e percorrem-na
moscas atarefadas; na rua, os transeuntes vão e vêm
como moscas; o pedinte faz parte da rua.
A miséria recobre de barba os sorrisos tensos.
como uma erva, e dá um aspecto pacato. Este velho
que podia morrer todo torcido, em sangue,
parece mais uma coisa e está vivo. Assim,
tirando o sangue, cada coisa é uma parte da rua.
E no entanto as estrelas viram sangue na rua.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 229

sábado, 5 de maio de 2012

 
 
                                     «De repente gritou
que se o mundo sofria, se a luz do sol
arrancava blasfémias, não era o destino:
o culpado era o homem. Ao menos pudéssemos partir,
rebentar de fome em liberdade, dizer não
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 229
 
 
« (...)           Aprendeu a medir
pela sua própria fadiga a fome dos outros,
e em todo o lado encontrou injustiças.»
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 227

PAISAGEM IV

(Para a Tina)
Os dois homens fumam na margem. A mulher que nada
sem quebrar a água apenas vê o verde
do seu estreito horizonte. Entre o céu e as árvores
estende-se a água e a mulher desliza nela
sem corpo. No céu pousam nuvens
quase imóveis. O fumo detém-se no ar.
 
Sob o gelo da água também há erva. A mulher
atravessa-a, suspensa: mas nós calcamo-la,
a erva verde, com o corpo. Em toda aquela água não há
outro peso. Só nós os dois sentimos a terra.
Talvez o seu corpo alongado, submerso,
sinta o gelo voraz absorver-lhe o torpor
dos membros escaldantes de sol, dissolvendo-a viva
no verde imóvel. A sua cabeça não se mexe.
 
Também ela estava deitada onde a erva está calcada.
O seu rosto semioculto repousava no braço
e olhava a erva. Não falávamos.
No ar paira ainda aquela primeira comoção
das águas que a acolheram. Por cima de nós paira o fumo.
Agora alcançou a margem e fala, o seu corpo escuro,
gotejante, ergue-se entre os troncos.
A sua voz é bem o único som que se ouve por sobre a água
-rouca e fresca, é a mesma voz de antes.
 
                                        Pensemos, deitados
na margem, naquele verde mais escuro e mais fresco
que submergiu o seu corpo. Depois, um de nós
mergulha na água e atravessa, mostrando os ombros
em braçadas espumosas, o verde imóvel.
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 199

sexta-feira, 4 de maio de 2012

JANTAR TRISTE

É por baixo da ramada, depois do jantar.
Em baixo há água que corre dócil.
Estamos calados, a escutar e a olhar para o rumor
que faz a água ao passar no rego lunar.
Este tempo suspenso é o momento mais doce.
                                   A minha companheira goza o momento
e parece ainda morder o cacho de uvas,
tão cheia de vida é a sua boca: e o sabor perdura,
têm a doçura das uvas, mas os ombros firmes
e as faces bronzeadas encerram todo o Verão.

Na toalha branca ficaram pão e uvas.
Vazias, as duas cadeiras olham-se cara a cara.
Quem sabe que coisa ilumina o rego lunar
com aquele seu lume doce, nos bosques distantes.
Talvez antes da aurora um sopro mais frio
extinga a lua e os vapores e apareça alguém.
Uma frágil claridade mostraria a garganta
sobressaltada e as mãos febris fecharem-se
em vão sobre os alimentos. Continua o sobressalto da água,
mas no escuro. As uvas e pão continuam no mesmo sítio.
Os sabores atormentam a sombra esfomeada,
que nem sequer consegue lamber no cacho
o orvalho que já se condensa. E com todas as coisas perladas
na aurora, as cadeiras olham-se solitárias.

Por vezes, à beira da água, um cheiro,
como de uvas, de mulher, paira sobre a erva,
e a lua esvai-se em silêncio. Aparece alguém.
mas atravessa incorpóreo o arvoredo e lamenta-se
com aquele gemido rouco dos que não têm voz
e se estendem na erva e não encontram a terra:
tremem-lhe as narinas, somente. Está frio quando o dia nasce,
e estreitar um corpo seria a vida.
Mais difusa que o amarelo lunar, que tem horror
e filtrar-se nos bosques, é esta ânsia sôfrega
de contactos e sabores que macera os mortos.
Outras vezes no solo atormenta-os a chuva.
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 195-197

quinta-feira, 3 de maio de 2012

«Não há cama mais solitária para quem ao romper do dia
ainda dorme estendido, sonhando com a escuridão.»
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 179

domingo, 29 de abril de 2012

BAGAÇO EM SETEMBRO

As manhãs passam claras e desertas
nas margens do rio que de madrugada se enevoa
e escurece o seu verde enquanto espera o sol.
O tabaco que vendem na última casa
ainda húmida, na orla dos prados, tem uma cor
quase negra e um sabor sumarento: o fumo é azulado.
Também têm bagaço, da cor da água.
 
Chegou o momento em que tudo pára
e amadurece. As árvores ao longe estão quietas:
tornaram-se mais escuras. Escondem frutos
que ao mínimo abanão cairiam. As nuvens esparsas
têm uma polpa madura. Ao longe, nas avenidas,
todas as casas amadurecem à calidez do céu.
 
A esta hora só se vêem mulheres. As mulheres não fumam
e não bebem, sabem simplesmente estar ao sol
e recebê-lo tépido, como se fossem frutos.
O ar, cru por causa da névoa, bebe-se aos golos
como bagaço, todas as coisas exalam um sabor a bagaço.
Até a água do rio bebeu as margens
e macera-as no fundo, sob o céu. As ruas
são como as mulheres, amadurecem paradas.
 
A esta hora todos devíamos parar
na rua e ver como tudo amadurece.
Há até uma brisa que não altera as nuvens,
mas que basta para dirigir o fumo azulado
sem o romper: é um novo sabor que passa.
E o tabaco impregnou-se de bagaço. E assim as mulheres
não serão as únicas a gozar a manhã.
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 163-165
                                        «O rio corre tranquilo,
mas os pássaros fazem-no espumar.»
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 139

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi -
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.
«Nada mais há a fazer do que olhar para aquela brancura maligna
por baixo da negra canícula e esperar que chova.»
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 131
 
«Podemos encontrarmo-nos, querendo.»
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 115

''a chuva cicia''

«Jazíamos cansados na humidade
dos dois corpos, adormecidos um sobre o outro.»
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 113
«Chove sem ruído no prado do mar.»
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 97

quarta-feira, 25 de abril de 2012

NOCTURNO

A colina é nocturna, no céu claro.
Nela se enquadra a tua cabeça, que mal se move
e acompanha o céu. És como uma nuvem
entrevista pelos ramos. Ri-se-te nos olhos
a estranheza dum céu que não é o teu.
 
A colina de terra e folhas encerra
com a sua negra massa o teu olhar vivo,
a tua boca tem a prega duma doce cavidade
no meio das encostas distantes. Pareces brincar
à grande colina e à claridade do céu:
para me dares prazer, repetes a paisagem antiga
e torna-la mais pura.
 
                                    Mas vives noutro lugar.
O teu terno sangue fez-se noutro lugar.
As palavras que dizes não têm comparação
com a tristeza áspera deste céu.
És apenas uma nuvem dulcíssima, branca,
que uma noite ficou presa nos ramos antigos.
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 81

''Cada árvore tem o seu próprio suor frio no escuro''

Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 63

domingo, 22 de abril de 2012

 
«                (é presico tempo
para que o sol e a chuva sepultem os mortos)»
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 59

O DEUS-CABRÃO

O campo é um país de verdes mistérios
para o rapazinho que vem passar o Verão. A cabra, se come
dumas flores, incha-lhe a barriga e não pára de correr.
Quando o homem gozou com uma rapariga
-têm pelos em baixo - o bebé incha-lhe  a barriga.
Enquanto guardam as cabras, armam-se em fortes e troçam uns dos outros,
mas, ao cair da noite, cada um começa a olhar por cima do ombro.
Os rapazes sabem ver se a cobra passou ali
pelo rastro sinuoso que deixa na terra.
Mas se a cobra passou no meio da erva
ninguém a vê. São as cabras que se plantam
na erva por cima da cobra e que gozam deixando-se chupar.
As raparigas também gozam quando se deixam tocar.
 
Quando a lua aparece, as cabras nunca mais param quietas,
é preciso arrebanhá-las e tocá-las para casa,
senão empina-se o cabrão. Dá um salto no meio do prado,
esventra as cabras todas e desaparece. Com os calores, as raparigas
metem-se pelos bosques dentro, sozinhas, de noite,
e o cabrão, se balem deitadas na erva, vem a correr ter com elas.
Mas a lua que desponte: empina-se e esventra-as.
E as cadelas que ladram à lua
é porque sentiram o cabrão aos saltos
no alto dos montes e farejaram o cheiro do sangue.
E os animais agitam-se dentro das cortes.
Somente os mantins mais fortes roem a corda com os dentes
e um deles solta-se e corre atrás do cabrão
que o salpica e embebeda com um sangue mais vermelho que o fogo,
e depois dançam todos, de pé nas patas traseiras e a ulular à lua.
 
Quando de manhã o canzarrão regressa pelado e a rosnar,
os aldeãos chegam-no à cadela à força de pontapés no traseiro.
E à rapariga que vagueia ao lusco-fusco e aos rapazes que regressam
já noite cerrada com uma cabra perdida dão-lhe cachaços.
Emprenham as mulheres os camponeses e derreiam-se sem con-
                                                                                               templações.
Andam sempre fora, dum lado para o outro, de dia e de noite,
                                                                                    e não têm medo
de ir cavar mesmo à luz da lua ou de acender uma fogueira
de gravetos no escuro. Por isso a terra verde
é tão bela e, sachada, tem as cores,
ao romper do dia, dos rostos dourados pelo sol. Vai-se para a vin-
                                                                                                    dima
 
e come-se e canta-se; na desfolhada
dança-se e bebe-se. Ouvem-se raparigas a rir-se
pois alguém falou no cabrão. Lá em cima, nos bosques,
entre as cristas pedregosas, os aldeãos viram-no:
procurava a cabra e dava marradas nos troncos das árvores.
Porque, quando um animal não sabe trabalhar
e só serve para a cobrição, tem prazer em destruir.
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 43-45
«(...) quando o sol
nascia já o dia era velho para eles.»
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 31
''Um perfume de terra e vento envolve-nos na escuridão,''
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 29
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