terça-feira, 2 de maio de 2017

DESTINO DA CARNE


Não, não é isto. Não olho
um céu do outro lado do horizonte.
Não contemplo uns olhos tranquilos, poderosos,
que acalmam as águas ferozes que aqui bramam.
Não olho essa cascata de luzes que descem
de uma boca até um peito, até mãos suaves,
finitas, que este mundo encerram, entesouram.

Por toda a parte vejo corpos nus, submissos
ao cansaço do mundo. Carne fugaz que talvez 
tenha nascido para ser chispa de luz, para se abrasar
de amor e ser o nada sem memória, a formosa
redondeza da luz.
E que está aqui, está aqui, flacidamente eterna,
sucessiva, constante, sempre, sempre cansada.


É inútil que um vento distante, com forma vegetal,
                                                                                 [ ou uma língua,
lamba devagar e longamente o seu volume, o aguce,
o lime, o acaricie, o exalte.
Corpos humanos, rochas cansadas, pardos vultos
que à beira-mar consciência sempre
tendes de que a vida não acaba, não, e se transmite.
Corpos que amanhã repetidos, infinitos, rolais
como uma espuma lenta, desiludida, sempre.
Sempre carne do homem, sem luz! Sempre rolados
desde além, de um oceano sem origem que envia
ondas, ondas, espumas, corpos cansados, orlas
de um mar que não acaba, sempre ofegante em
                                                                                [suas margens.


Todos, multiplicados, repetidos, sucessivos,
                                                                                  [amontoais a carne,
a vida, sem esperança, monotonamente iguais sob os 
                   [céus foscos que impassíveis se herdam.
Sobre esse mar de corpos que aqui brotam sem
                                          [trégua, que aqui desabrocham
nitidamente e, mortais, ficam nas praias,
não se vê, não, esse rápido batel, ágil veleiro
que com quilha de aço, rasgue, torça,
abra sangue de luz e impetuoso fuja
rumo ao fundo horizonte, rumo à origem
última da vida, ao extremo do oceano eterno
que, humanos, espalha
os seus corpos cinzentos. Para a luz, para essa
                                                 [escada ascendente de brilhos
de um peito benigno para uma boca sobe,
para uns olhos enormes, totais, que contemplam,
para umas mãos silenciosas, finitas, que prendem,
onde cansados sempre, vitais, ainda nascemos.


Antologia de Vicente Aleixandre. Selecção, tradução e prólogo de José Bento. Editorial Inova/Porto., p. 98

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