quinta-feira, 31 de março de 2011
Som do cavalo
Na vila implanto o som,
o sibilino trote segue os silvos
no ocaso. Vê-se o amor eclode
em casas onde emergem
os fumos
que o outono exuma.
Os alimentos fervem
o seu escasso paladar sobre os feixes.
E são excessivos os óleos e os panos
de envolver os mortos deste dia. O ocaso
que é na vila, e nós
a percorrer no som que a percorria
o amor, tersos lajedos
onde o cavalo freme, os fumos
se degradam,
e lhe desfaz o homem o freio tenso
e ali recolhe
o seu repouso o medo.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 82
o sibilino trote segue os silvos
no ocaso. Vê-se o amor eclode
em casas onde emergem
os fumos
que o outono exuma.
Os alimentos fervem
o seu escasso paladar sobre os feixes.
E são excessivos os óleos e os panos
de envolver os mortos deste dia. O ocaso
que é na vila, e nós
a percorrer no som que a percorria
o amor, tersos lajedos
onde o cavalo freme, os fumos
se degradam,
e lhe desfaz o homem o freio tenso
e ali recolhe
o seu repouso o medo.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 82
Sesta IV
Perdura a imagem
do mar
visto dúctil
o senso suave
de a profunda
água ser mutável.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 66
do mar
visto dúctil
o senso suave
de a profunda
água ser mutável.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 66
Ante - Sesta
Dos tempos e os fios
de águas naturais
só restam os mais
doridos deleites
duradouros
Como se fossem só
dias transitórios
e o homem
não pudesse ao ódio
o ar acrescentar-lhes.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 65
de águas naturais
só restam os mais
doridos deleites
duradouros
Como se fossem só
dias transitórios
e o homem
não pudesse ao ódio
o ar acrescentar-lhes.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p. 65
quarta-feira, 30 de março de 2011
FEDRA
Que insensatez! Que disse eu? Onde estou?
Meus votos, minha mente, o que é que os transtornou?
Perdi-a: os Deuses já não deixam que funcione.
E o meu rosto a corar desta vergonha, Enone:
demais te deixo ver a minha dor enquanto
meus olhos, sem querer, assim se enchem de pranto.
Jean Racine. Fedra. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005, p. 41
terça-feira, 29 de março de 2011
Poema para a padeira que estava a fazer pão enquanto se tratava a batalha de Aljubarrota
Está sobre a mesa e repousa
o pão
com uma arma de amor
em repouso
As armas guardam no campo
todo o campo
Já os mortos não aguardam
e repousam
Dentro de casa ela aguarda
abrir o forno
Ela tem mão que prepara
o amor
Pelos campos todos armas
não repousam
nem aguardam mais os mortos
ter amor
Sobre a mesa põe as mãos
pôs o pão
Fora de casa o rumor
sem repouso
Ela agora abre o fogo
pão
sem repouso ouve os mortos
lá de fora
Lá de fora entram armas
os homens
As mãos dela não repousam
acolhem
Sobre a mesa pôs o pão
arma de paz
Contra as armas da batalha
arma de mão
Contra a batalha das armas
não repousa
Caem contra a mesa os mortos
contra o forno
Outra paz não defende ela
que a do pão
Defende a paz que é da casa
e das mãos.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.26/7
o pão
com uma arma de amor
em repouso
As armas guardam no campo
todo o campo
Já os mortos não aguardam
e repousam
Dentro de casa ela aguarda
abrir o forno
Ela tem mão que prepara
o amor
Pelos campos todos armas
não repousam
nem aguardam mais os mortos
ter amor
Sobre a mesa põe as mãos
pôs o pão
Fora de casa o rumor
sem repouso
Ela agora abre o fogo
pão
sem repouso ouve os mortos
lá de fora
Lá de fora entram armas
os homens
As mãos dela não repousam
acolhem
Sobre a mesa pôs o pão
arma de paz
Contra as armas da batalha
arma de mão
Contra a batalha das armas
não repousa
Caem contra a mesa os mortos
contra o forno
Outra paz não defende ela
que a do pão
Defende a paz que é da casa
e das mãos.
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.26/7
Onda
Pois as coisas cedem e eu me peço
ao tamanho da onda por medida
Pois a causa do amor é a maior
figura que se aumenta por palavras
Também assim a ordem e o sentimento
designem a figura de uma onda
E pois a onda encurva enche solta
no exercício em si fechando a orla
Liberta se exorbita construída
no vidro cai a sua queda
Pois a vejo a ela e ela cedo
no movimento peço tamanho
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.22
ao tamanho da onda por medida
Pois a causa do amor é a maior
figura que se aumenta por palavras
Também assim a ordem e o sentimento
designem a figura de uma onda
E pois a onda encurva enche solta
no exercício em si fechando a orla
Liberta se exorbita construída
no vidro cai a sua queda
Pois a vejo a ela e ela cedo
no movimento peço tamanho
Fiama Hasse Pais Brandão. Obra Breve. Editorial Teorema, Lisboa, 1991, p.22
«Aproximastes-vos, então e paraste junto ao monte; e o monte estava abrasado em fogo, que se erguia até ao céu, coberto de nuvens e de nevoeiro. O senhor falou-vos, do meio do fogo; ouvistes o som das palavras, mas não vistes figura alguma. Era uma voz apenas. O Senhor deu-vos a conhecer a Sua aliança, ordenando-vos que cumprísseis os dez mandamentos que Ele escreveu em duas tábuas de pedra.»
(Deuteronómio, pg. 230)
segunda-feira, 28 de março de 2011
« - Esta aldeia está cheia de ecos. Parece que estão fechados no interior das paredes ou por baixo das pedras. Quando andas, sentes que vão pisando os teus passos. Ouves estalidos. Gargalhadas. Umas gargalhadas já muito velhas, como se estivessem cansadas de rir. E vozes já gastas pelo uso. Ouves tudo isso. Penso que chegará o dia em que estes sons se apagarão.»
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 57
domingo, 27 de março de 2011
68.
Como o coral alastra a sua morte
a arder em árvore púrpura no seio
do mar com a temente alma no meio
dos braços rubros presa do mais forte
Com beijo amargo de ruína veio
a ameaça Ela faz voto de sorte
que acre tormento a tal mando suporte
e é-lhe paga final final receio
Medida no festim desesperado
na turvação lembra a doçura amena
bebe o Lethes do tempo perturbado
qual dando eternidade em mão serena
dota a alma e a herança distribui
O ser simples de quem recusa flui.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.153
a arder em árvore púrpura no seio
do mar com a temente alma no meio
dos braços rubros presa do mais forte
Com beijo amargo de ruína veio
a ameaça Ela faz voto de sorte
que acre tormento a tal mando suporte
e é-lhe paga final final receio
Medida no festim desesperado
na turvação lembra a doçura amena
bebe o Lethes do tempo perturbado
qual dando eternidade em mão serena
dota a alma e a herança distribui
O ser simples de quem recusa flui.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.153
57.
Se as ébrias singraduras não toleras
- quem cantará teus anos de odisseia
teu vento é dor teu mar te desnorteia -
e em entrar nesta casa perseveras
que tu ó dor antes que as mais veneras
bem que hoje ou nunca lá não estanceia
a aguardar-te Penélope ou Erikleia
mas se algum dia a mim voltar quiseras
penso quão fortes troarão teus passos
se subires os belos degraus lassos
de que é meu velho corpo atravessado
e de novo: inaudível e calado
tacteias planos deste íntimo foro
para aceder-me à câmara do choro.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.129
- quem cantará teus anos de odisseia
teu vento é dor teu mar te desnorteia -
e em entrar nesta casa perseveras
que tu ó dor antes que as mais veneras
bem que hoje ou nunca lá não estanceia
a aguardar-te Penélope ou Erikleia
mas se algum dia a mim voltar quiseras
penso quão fortes troarão teus passos
se subires os belos degraus lassos
de que é meu velho corpo atravessado
e de novo: inaudível e calado
tacteias planos deste íntimo foro
para aceder-me à câmara do choro.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.129
50.
Era a memória ardente a inclinar-se
à giesta do tempo por frescura
mas o que em seu espelho se figura
vê que está só e a mesma dor foi dar-se
noite e dia e silente de amargura
uma saudade em febre o viu queimar-se
até vir por um ''sim'' a consolar-se
e do perdão mudo hino lhe assegura
levando imagens e sinais de vez
O olhar liberto penetrou no assento
do alto luto onde da palidez
dos invernos se erguia outro rebento
de cálices que embalam as sementes
dando ao nome louvando descendentes.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.113
à giesta do tempo por frescura
mas o que em seu espelho se figura
vê que está só e a mesma dor foi dar-se
noite e dia e silente de amargura
uma saudade em febre o viu queimar-se
até vir por um ''sim'' a consolar-se
e do perdão mudo hino lhe assegura
levando imagens e sinais de vez
O olhar liberto penetrou no assento
do alto luto onde da palidez
dos invernos se erguia outro rebento
de cálices que embalam as sementes
dando ao nome louvando descendentes.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.113
58.
Proíbe o deus que a ti me escravizou
que controle os teus tempos de prazer
e das horas te peça contas. Sou
teu vassalo sujeito ao teu querer.
Oh, deixa-me sofrer, sendo a teu mando,
cativa ausência em tua liberdade,
cada revés paciente aguentando,
sem acusar maus tratos ou maldade.
Como te apetecer. Teu foro vence.
Tens sobre o tempo tal prerrogativa
que faças o que queres, pois te pertence,
a perdoar-te acção a ti lesiva.
E eu que espere, embora inferno doa;
nem te censuro acção, ou má, ou boa.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.127
que controle os teus tempos de prazer
e das horas te peça contas. Sou
teu vassalo sujeito ao teu querer.
Oh, deixa-me sofrer, sendo a teu mando,
cativa ausência em tua liberdade,
cada revés paciente aguentando,
sem acusar maus tratos ou maldade.
Como te apetecer. Teu foro vence.
Tens sobre o tempo tal prerrogativa
que faças o que queres, pois te pertence,
a perdoar-te acção a ti lesiva.
E eu que espere, embora inferno doa;
nem te censuro acção, ou má, ou boa.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.127
35.
Do que fizeste a dor não te possua:
rosas têm picos, fontes de prata lama,
nuvens e eclipses turvam sol e lua,
no mais doce botão vil verme acama.
Os homens todos erram e eu segui-os
abandonando-te a falta com perdão;
corrompo-me remindo os teus desvios,
mais erro é desculpá-los do que o são.
Se à falta dos sentidos dou sentido,
a parte a ti adversa é o defensor
e contra mim o pleito é dirigido,
eis em guerra civil meu ódio e amor
e tal que a ser um cúmplice me impele
de quem me é ladrão doce e cruel.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.81
rosas têm picos, fontes de prata lama,
nuvens e eclipses turvam sol e lua,
no mais doce botão vil verme acama.
Os homens todos erram e eu segui-os
abandonando-te a falta com perdão;
corrompo-me remindo os teus desvios,
mais erro é desculpá-los do que o são.
Se à falta dos sentidos dou sentido,
a parte a ti adversa é o defensor
e contra mim o pleito é dirigido,
eis em guerra civil meu ódio e amor
e tal que a ser um cúmplice me impele
de quem me é ladrão doce e cruel.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.81
sábado, 26 de março de 2011
No dia em que partiste percebi que não voltaria a ver-te.
«No dia em que partiste percebi que não voltaria a ver-te. Ias tingida de vermelho pelo sol da tarde, pelo crepúsculo ensanguentado do céu. Sorrias. Deixavas para trás uma aldeia da qual muitas vezes me disseste: ''Amo-a por tua causa; mas odeio-a por todas as outras coisas, até por ter cá nascido.'' Pensei: ''Jamais regressará; nunca voltará.''
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 36
«...Planícies verdes. Ver subir e descer o horizonte com o vento que agita as espigas, o eriçar da tarde com uma chuva de triplas ondulações. A cor da terra, o cheiro da alfafa e do pão. Uma aldeia que cheira a mel derramado...»
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 34
«-...O sujeito de que estou a falar trabalhava como «amansador» na Meia-Lua; dizia chamar-se Inocencio Osorio. Embora todos o conhecêssemos pela alcunha de Saltarico por ser muito leve e ágil a saltar. O meu compadre Pedro dizia que estava talhado para amansar potros; mas a verdade é que ele tinha outro ofício: o de «provocador». Era provocador de sonhos. Era isso que ele era verdadeiramente. E enredou a tua mãe tal como fazia com muitas. Entre outras, eu. Uma vez, senti-me doente e ele apresentou-se e disse-me: «Venho tomar-te o pulso para que te sintas melhor.» E tudo consistia nisto: começava a massajar-te, primeiro nas pontas dos dedos, depois esfregando as mãos; a seguir os braços, e acabava por meter-se entre as nossas pernas, a frio, pelo que aquilo, ao fim de algum tempo, começava a produzir calor. E, enquanto manobrava, falava-te do teu futuro. Entrava em transe, revirava os olhos fazendo invocações e amaldiçoando; enchendo-te de gafanhotos tal como os ciganos. Por vezes, ficava em pelota porque dizia ser esse o nosso desejo. E às vezes acertava; picava em tantos sítios que a algum tinha de ir dar.
«A verdade é que o tal Osorio prognosticou à tua mãe, quando ela o foi ver, que ''nessa noite não devia deitar-se com nenhum homem porque a Lua estava bravia.''»
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 33
13.
Oh, se fosses tu mesmo! Mas assim
só te pertences quanto a vida avança.
Devias preparar-te para o fim
e dar a alguém tão doce semelhança.
E da beleza que deténs a prazo
no vencimento, então também serias
outra vez tu depois do próprio ocaso
e a branda forma em brando alguém verias.
Quem deixa arruinar tão bela casa
se tem honra viril com que a mantenha,
na borrasca invernal que tudo arrasa,
contra o gelo da morte, a estéril sanha?
Bem sabes, caro amor, gastar a esmo...
Tiveste um pai, teu filho diga o mesmo.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.37
só te pertences quanto a vida avança.
Devias preparar-te para o fim
e dar a alguém tão doce semelhança.
E da beleza que deténs a prazo
no vencimento, então também serias
outra vez tu depois do próprio ocaso
e a branda forma em brando alguém verias.
Quem deixa arruinar tão bela casa
se tem honra viril com que a mantenha,
na borrasca invernal que tudo arrasa,
contra o gelo da morte, a estéril sanha?
Bem sabes, caro amor, gastar a esmo...
Tiveste um pai, teu filho diga o mesmo.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.37
8.
És música e a música ouves triste?
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que a teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
Se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
É canção sem palavras, vária e em
uníssono: ''só não serás ninguém''.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.27
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que a teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
Se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
É canção sem palavras, vária e em
uníssono: ''só não serás ninguém''.
Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.27
*
O método estrito é apenas estudo,
não devia ser impresso.
Devia escrever-se para o público
num estilo livre, sem peias,
juntando-lhe apenas a demonstração rigorosa,
o desenvolvimento sistemático.
A escrita não devia ser insegura,
feita a medo, confusa, sem fim,
mas determinada, clara, sólida,
com pressupostos apodícticos, tácitos.
Uma pessoa de carácter bem definido
causa também uma impressão
benéfica e decidida e estável.
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 77
*
Só saberemos aquilo a que dermos expressão,
isto é, aquilo que soubermos fazer.
Quanto mais completa e diversamente
produzirmos uma coisa, a executarmos,
tanto melhor a conheceremos.
Teremos dela um conhecimento completo
se soubermos comunicá-la e suscitá-la
em toda a parte e de todas as maneiras -
se soubermos produzir, em cada um dos seus órgãos,
uma expressão individual.
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 63
sexta-feira, 25 de março de 2011
47.
Enquanto a noite alarga a escuridão
que os animais e os homens adormece
fogo do sonho e o lar nos humedece
e à amiga morta rasga o coração
Chama na vasta fronde se amanhece
ave tímida ao dia dando a mão
e pelas longas ervas sombras vão
coroando o negro túmulo a luz cresce
A alba faz-se outra vez neste lugar
noite que ventos frios descarregava
vai-se a tarde nas relvas ocultar
perante o raio que inimigo cega
e com as horas dando meio-dia
na cova dela toda a luz se unia.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.107
que os animais e os homens adormece
fogo do sonho e o lar nos humedece
e à amiga morta rasga o coração
Chama na vasta fronde se amanhece
ave tímida ao dia dando a mão
e pelas longas ervas sombras vão
coroando o negro túmulo a luz cresce
A alba faz-se outra vez neste lugar
noite que ventos frios descarregava
vai-se a tarde nas relvas ocultar
perante o raio que inimigo cega
e com as horas dando meio-dia
na cova dela toda a luz se unia.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.107
45.
Porque é minha alma que o belo só procuras?
de há muito tempo que morreu e o mundo às voltas foi
atrás do seu girar e ninguém falta herói
Porque é minha alma que o belo só procuras?
Senhor porque me acordas em choro e amarguras?
ah bem busquei o sono desfigura-se e dói-
-me abandono que em mim com o teu se constrói
Senhor porque me acordas em choro e amarguras?
Falava eu uma a noite a sós no coração
e emudeci confuso decidido a calar
e tanta turvação da minha alma ocultar
nem despertá-la a dar às dores consolação
mas vê da boca em sono quais círios fez brotar
em lágrimas a arder tanta triste canção.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.103
de há muito tempo que morreu e o mundo às voltas foi
atrás do seu girar e ninguém falta herói
Porque é minha alma que o belo só procuras?
Senhor porque me acordas em choro e amarguras?
ah bem busquei o sono desfigura-se e dói-
-me abandono que em mim com o teu se constrói
Senhor porque me acordas em choro e amarguras?
Falava eu uma a noite a sós no coração
e emudeci confuso decidido a calar
e tanta turvação da minha alma ocultar
nem despertá-la a dar às dores consolação
mas vê da boca em sono quais círios fez brotar
em lágrimas a arder tanta triste canção.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.103
quinta-feira, 24 de março de 2011
*
Não se perde a autêntica inocência,
tal como não se perde a vida autêntica.
A inocência que conhecemos
só tem uma vida, como o homem,
e, como ele, não tem regresso.
Quem, como os deuses, ama seres virgens,
nunca poderá desfrutar
da segunda inocência como da primeira -
esta é mais do que aquela.
Certas coisas
só uma vez se manifestam,
porque da sua essência
faz parte o único.
a nossa vida é, a um tempo,
absoluto e dependente.
Só morremos até certo ponto,
A nossa vida é, em parte,
parte de uma vida maior
entre outros seres.
quarta-feira, 23 de março de 2011
22.
Vós lábios meus quereis cicatrizar
sem cura e ficar mudos? rubras feridas
como de espadas já não são tingidas
Deixai me lance à espada E de brotar
hão-de cessar as queixas desmedidas
da boca que há-de o amigo apropriar
desesperou na morte o silenciar
aliei a seu ser dores incontidas
Não sem que tardo alvor maduro a breve
juventude dos anos lhe transborde
e da hora mortal fadiga leve
se dela sangra o mundo em rubro acorde
A golfada das dores já me sossega
e é mar liso que espelha a alba que chega
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.37
sem cura e ficar mudos? rubras feridas
como de espadas já não são tingidas
Deixai me lance à espada E de brotar
hão-de cessar as queixas desmedidas
da boca que há-de o amigo apropriar
desesperou na morte o silenciar
aliei a seu ser dores incontidas
Não sem que tardo alvor maduro a breve
juventude dos anos lhe transborde
e da hora mortal fadiga leve
se dela sangra o mundo em rubro acorde
A golfada das dores já me sossega
e é mar liso que espelha a alba que chega
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.37
*
O destino que nos esmaga
é a indolência do espírito.
Alargando e educando o nosso agir,
transformamo-nos nós próprios em destino.
Tudo parece afluir sobre nós vindo de fora,
porque não há corrente que saia de nós.
Somos negativos porque queremos -
quanto mais positivos formos,
tanto mais negativo será o mundo à nossa volta,
até que, no fim, não haverá negação,
porque nós seremos tudo em tudo.
Deus quer deuses.
Se o nosso corpo mais não é
do que o centro da acção comum dos sentidos,
se dominamos os nossos sentidos,
se temos o poder de os transformar em acção,
de os orientar para a comunidade -
então só depende de nós dar a nós próprios
o corpo que desejamos ter.
Se os nossos sentidos mais não são
do que modificações de um órgão pensante -
do elemento absoluto -
poderemos também, dominando esse elemento,
modificar e dirigir à vontade
os nossos sentidos.
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 47/8
*
A arte de nos tornarmos todo-poderosos:
arte de realizar totalmente a nossa vontade.
De dominar corpo e alma.
O corpo é o instrumento
de formação e modificação do mundo,
Temos de ensinar o corpo
a ser um órgão capaz de tudo.
Modificar o nosso instrumento
é modificar o mundo.
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 45
I
GRÃOS DE PÓLEN
Amigos, o solo é pobre. Precisamos de lançar
muitas sementes para obter uma modesta colheita.
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p.27
Amigos, o solo é pobre. Precisamos de lançar
muitas sementes para obter uma modesta colheita.
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p.27
terça-feira, 22 de março de 2011
14.
Aliei-me à velha noite de maneira
que envelheci com ela e a tristeza
no coração sem paz meteu acesa
a presença das sombras na lareira
O que assim faz ser una essa pobreza
distante sem ter sol na terra inteira
com meu obscurecer quando o não queira
o amigo Na vigília muita vez a
ideia me sacudiu O sonho é raro
em noite assim dá ao insone a sua
claridade impotente para amparo
do homem mas nos seus mundos estua
não lhe brota outra luz no limiar
a lembrança é-lhe lua e faz-lhe par.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.41
que envelheci com ela e a tristeza
no coração sem paz meteu acesa
a presença das sombras na lareira
O que assim faz ser una essa pobreza
distante sem ter sol na terra inteira
com meu obscurecer quando o não queira
o amigo Na vigília muita vez a
ideia me sacudiu O sonho é raro
em noite assim dá ao insone a sua
claridade impotente para amparo
do homem mas nos seus mundos estua
não lhe brota outra luz no limiar
a lembrança é-lhe lua e faz-lhe par.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.41
3.
Parto feliz quanto o silêncio o sele
de que ao nascer fui logo destinado
a ser brilho da noite no olhar dado
a quem silente ao vasto céu se impele
a ser raio que toca os olhos dele
e em que feliz está quem não é nado
e junto à face a ser mais afagado
que no azul voga em nuvem que revele
a luz. Estava escrito nunca havia
de me vibrar a boca sem o canto
e a minha fronte o extremo arco seria
do berço em prece ardente a orlá-lo enquanto
aconteceu que me escapou então
com minha jovem morte em sua mão.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.19
de que ao nascer fui logo destinado
a ser brilho da noite no olhar dado
a quem silente ao vasto céu se impele
a ser raio que toca os olhos dele
e em que feliz está quem não é nado
e junto à face a ser mais afagado
que no azul voga em nuvem que revele
a luz. Estava escrito nunca havia
de me vibrar a boca sem o canto
e a minha fronte o extremo arco seria
do berço em prece ardente a orlá-lo enquanto
aconteceu que me escapou então
com minha jovem morte em sua mão.
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.19
____________________________________________
Mas então quando morre,
esse a quem a beleza
mais tocava, de modo que na forma
era um milagre e os seres celestes o tinham
marcado, e quando, por recíproco enigma eterno,
não podem compreender-se um
ao outro os que viveram juntos
na memória, e não afasta só a areia
ou os prados e comove
os templos, quando a honra
do semideus e dos seus
se esvai e mesmo a sua face
o Altíssimo desvia, assim que em parte alguma um
imortal seja de ver no céu ou
na terra verde, o que se passa?
Friedrich Hölderlin
Mas então quando morre,
esse a quem a beleza
mais tocava, de modo que na forma
era um milagre e os seres celestes o tinham
marcado, e quando, por recíproco enigma eterno,
ou os prados e comove
os templos, quando a honra
do semideus e dos seus
se esvai e mesmo a sua face
o Altíssimo desvia, assim que em parte alguma um
imortal seja de ver no céu ou
na terra verde, o que se passa?
Friedrich Hölderlin
segunda-feira, 21 de março de 2011
domingo, 20 de março de 2011
MASHA (Levanta a luz do candeeiro) O lago está co-
berto de ondas. Ondas gigantescas.
MEDVEDENKO Está uma escuridão total, no jardim. Deviam
ter mandado desarmar o palco. Para ali ficou,
no meio do jardim, desguarnecido e desarti-
culado, como um esqueleto, e com a cortina a
espanejar ao vento. Ontem à noitinha, passei
lá ao pé e pareceu-me ouvir alguém a chorar,
lá dentro.
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 82
berto de ondas. Ondas gigantescas.
MEDVEDENKO Está uma escuridão total, no jardim. Deviam
ter mandado desarmar o palco. Para ali ficou,
no meio do jardim, desguarnecido e desarti-
culado, como um esqueleto, e com a cortina a
espanejar ao vento. Ontem à noitinha, passei
lá ao pé e pareceu-me ouvir alguém a chorar,
lá dentro.
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 82
TREPLEV (...) Perdoa-me, não sei men-
tir - os livros dele dão-me vómitos.
(...)
TREPLEV (Com ironia) ''Realmente dotados de ta-
lento'', ora vejamos! (Furioso) Quanto a
isso, eu tenho muito mais talento do que vo-
cês todos juntos. (Arranca a ligadura da ca-
beça) Vocês e as vossas convençõezinhas ta-
canhas são quem manda na arte, hoje em dia.
Considerem que só o que é feito por vocês é
genuíno, autêntico - suprimem e destroem
tudo o mais. Recuso-me a reconhecer-vos, e
à vossa supremacia! Não admito a tua, nem a
dele!
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 70
tir - os livros dele dão-me vómitos.
(...)
TREPLEV (Com ironia) ''Realmente dotados de ta-
lento'', ora vejamos! (Furioso) Quanto a
isso, eu tenho muito mais talento do que vo-
cês todos juntos. (Arranca a ligadura da ca-
beça) Vocês e as vossas convençõezinhas ta-
canhas são quem manda na arte, hoje em dia.
Considerem que só o que é feito por vocês é
genuíno, autêntico - suprimem e destroem
tudo o mais. Recuso-me a reconhecer-vos, e
à vossa supremacia! Não admito a tua, nem a
dele!
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 70
Directive
Back out of all this now too much for us,
Back in a time made simple by the loss
Of detail, burned, dissolved, and broken off
Like graveyard marble sculpture in the weather,
There is a house that is no more a house
Upon a farm that is no more a farm
And in a town that is no more a town.
The road there, if you’ll let a guide direct you
Who only has at heart your getting lost,
May seem as if it should have been a quarry—
Great monolithic knees the former town
Long since gave up pretense of keeping covered.
And there’s a story in a book about it:
Besides the wear of iron wagon wheels
The ledges show lines ruled southeast-northwest,
The chisel work of an enormous Glacier
That braced his feet against the Arctic Pole.
You must not mind a certain coolness from him
Still said to haunt this side of Panther Mountain.
Nor need you mind the serial ordeal
Of being watched from forty cellar holes
As if by eye pairs out of forty firkins.
As for the woods’ excitement over you
That sends light rustle rushes to their leaves,
Charge that to upstart inexperience.
Where were they all not twenty years ago?
They think too much of having shaded out
A few old pecker-fretted apple trees.
Make yourself up a cheering song of how
Someone’s road home from work this once was,
Who may be just ahead of you on foot
Or creaking with a buggy load of grain.
The height of the adventure is the height
Of country where two village cultures faded
Into each other. Both of them are lost.
And if you’re lost enough to find yourself
By now, pull in your ladder road behind you
And put a sign up CLOSED to all but me.
Then make yourself at home. The only field
Now left’s no bigger than a harness gall.
First there’s the children’s house of make-believe,
Some shattered dishes underneath a pine,
The playthings in the playhouse of the children.
Weep for what little things could make them glad.
Then for the house that is no more a house,
But only a belilaced cellar hole,
Now slowly closing like a dent in dough.
This was no playhouse but a house in earnest.
Your destination and your destiny’s
A brook that was the water of the house,
Cold as a spring as yet so near its source,
Too lofty and original to rage.
(We know the valley streams that when aroused
Will leave their tatters hung on barb and thorn.)
I have kept hidden in the instep arch
Of an old cedar at the waterside
A broken drinking goblet like the Grail
Under a spell so the wrong ones can’t find it,
So can’t get saved, as Saint Mark says they mustn’t.
(I stole the goblet from the children’s playhouse.)
Here are your waters and your watering place.
Drink and be whole again beyond confusion.
Robert Frost. From Steeple Bush | Holt, 1947
Back in a time made simple by the loss
Of detail, burned, dissolved, and broken off
Like graveyard marble sculpture in the weather,
There is a house that is no more a house
Upon a farm that is no more a farm
And in a town that is no more a town.
The road there, if you’ll let a guide direct you
Who only has at heart your getting lost,
May seem as if it should have been a quarry—
Great monolithic knees the former town
Long since gave up pretense of keeping covered.
And there’s a story in a book about it:
Besides the wear of iron wagon wheels
The ledges show lines ruled southeast-northwest,
The chisel work of an enormous Glacier
That braced his feet against the Arctic Pole.
You must not mind a certain coolness from him
Still said to haunt this side of Panther Mountain.
Nor need you mind the serial ordeal
Of being watched from forty cellar holes
As if by eye pairs out of forty firkins.
As for the woods’ excitement over you
That sends light rustle rushes to their leaves,
Charge that to upstart inexperience.
Where were they all not twenty years ago?
They think too much of having shaded out
A few old pecker-fretted apple trees.
Make yourself up a cheering song of how
Someone’s road home from work this once was,
Who may be just ahead of you on foot
Or creaking with a buggy load of grain.
The height of the adventure is the height
Of country where two village cultures faded
Into each other. Both of them are lost.
And if you’re lost enough to find yourself
By now, pull in your ladder road behind you
And put a sign up CLOSED to all but me.
Then make yourself at home. The only field
Now left’s no bigger than a harness gall.
First there’s the children’s house of make-believe,
Some shattered dishes underneath a pine,
The playthings in the playhouse of the children.
Weep for what little things could make them glad.
Then for the house that is no more a house,
But only a belilaced cellar hole,
Now slowly closing like a dent in dough.
This was no playhouse but a house in earnest.
Your destination and your destiny’s
A brook that was the water of the house,
Cold as a spring as yet so near its source,
Too lofty and original to rage.
(We know the valley streams that when aroused
Will leave their tatters hung on barb and thorn.)
I have kept hidden in the instep arch
Of an old cedar at the waterside
A broken drinking goblet like the Grail
Under a spell so the wrong ones can’t find it,
So can’t get saved, as Saint Mark says they mustn’t.
(I stole the goblet from the children’s playhouse.)
Here are your waters and your watering place.
Drink and be whole again beyond confusion.
Robert Frost. From Steeple Bush | Holt, 1947
The Idea of Order at Key West
She sang beyond the genius of the sea.
The water never formed to mind or voice,
Like a body wholly body, fluttering
Its empty sleeves; and yet its mimic motion
Made constant cry, caused constantly a cry,
That was not ours although we understood,
Inhuman, of the veritable ocean.
The sea was not a mask. No more was she.
The song and water were not medleyed sound
Even if what she sang was what she heard,
Since what she sang was uttered word by word.
It may be that in all her phrases stirred
The grinding water and the gasping wind;
But it was she and not the sea we heard.
For she was the maker of the song she sang.
The ever-hooded, tragic-gestured sea
Was merely a place by which she walked to sing.
Whose spirit is this? we said, because we knew
It was the spirit that we sought and knew
That we should ask this often as she sang.
If it was only the dark voice of the sea
That rose, or even colored by many waves;
If it was only the outer voice of sky
And cloud, of the sunken coral water-walled,
However clear, it would have been deep air,
The heaving speech of air, a summer sound
Repeated in a summer without end
And sound alone. But it was more than that,
More even than her voice, and ours, among
The meaningless plungings of water and the wind,
Theatrical distances, bronze shadows heaped
On high horizons, mountainous atmospheres
Of sky and sea.
It was her voice that made
The sky acutest at its vanishing.
She measured to the hour its solitude.
She was the single artificer of the world
In which she sang. And when she sang, the sea,
Whatever self it had, became the self
That was her song, for she was the maker. Then we,
As we beheld her striding there alone,
Knew that there never was a world for her
Except the one she sang and, singing, made.
Ramon Fernandez, tell me, if you know,
Why, when the singing ended and we turned
Toward the town, tell why the glassy lights,
The lights in the fishing boats at anchor there,
As the night descended, tilting in the air,
Mastered the night and portioned out the sea,
Fixing emblazoned zones and fiery poles,
Arranging, deepening, enchanting night.
Oh! Blessed rage for order, pale Ramon,
The maker's rage to order words of the sea,
Words of the fragrant portals, dimly-starred,
And of ourselves and of our origins,
In ghostlier demarcations, keener sounds.
Wallace Stevens
The water never formed to mind or voice,
Like a body wholly body, fluttering
Its empty sleeves; and yet its mimic motion
Made constant cry, caused constantly a cry,
That was not ours although we understood,
Inhuman, of the veritable ocean.
The sea was not a mask. No more was she.
The song and water were not medleyed sound
Even if what she sang was what she heard,
Since what she sang was uttered word by word.
It may be that in all her phrases stirred
The grinding water and the gasping wind;
But it was she and not the sea we heard.
For she was the maker of the song she sang.
The ever-hooded, tragic-gestured sea
Was merely a place by which she walked to sing.
Whose spirit is this? we said, because we knew
It was the spirit that we sought and knew
That we should ask this often as she sang.
If it was only the dark voice of the sea
That rose, or even colored by many waves;
If it was only the outer voice of sky
And cloud, of the sunken coral water-walled,
However clear, it would have been deep air,
The heaving speech of air, a summer sound
Repeated in a summer without end
And sound alone. But it was more than that,
More even than her voice, and ours, among
The meaningless plungings of water and the wind,
Theatrical distances, bronze shadows heaped
On high horizons, mountainous atmospheres
Of sky and sea.
It was her voice that made
The sky acutest at its vanishing.
She measured to the hour its solitude.
She was the single artificer of the world
In which she sang. And when she sang, the sea,
Whatever self it had, became the self
That was her song, for she was the maker. Then we,
As we beheld her striding there alone,
Knew that there never was a world for her
Except the one she sang and, singing, made.
Ramon Fernandez, tell me, if you know,
Why, when the singing ended and we turned
Toward the town, tell why the glassy lights,
The lights in the fishing boats at anchor there,
As the night descended, tilting in the air,
Mastered the night and portioned out the sea,
Fixing emblazoned zones and fiery poles,
Arranging, deepening, enchanting night.
Oh! Blessed rage for order, pale Ramon,
The maker's rage to order words of the sea,
Words of the fragrant portals, dimly-starred,
And of ourselves and of our origins,
In ghostlier demarcations, keener sounds.
Wallace Stevens
sexta-feira, 18 de março de 2011
Já lá vai o tempo em que se semeava...
Com os zunzuns em torno da comemoração do Dia Mundial da Poesia, noto em mim, ó Álvaro, por aquela sensação de azedume do estômago. Como é que as putas chegam a papel impresso? Dinheiro. Tendo dinheiro. É decadente, só lhe posso chamar a fase da decadência. Com Camões e Pessoa nesta bandeira, lembram-se de putas menores que ainda nem largaram as fraldas (como eu já as tive) e, Deus Pai, como é que é possível? Só um 'pseudo-povo', hastearia fagulhas, quando tem a chama na pátria para aleitar as crias, o suficiente. Este rebanho não tem memória da mão que o varejou, porque nunca foi varejado, nem sequer, colhe das sementeiras ao alcance da mão, a verdadeira palavra. Haja neste país quem possa ficar para semente...
ACTO III
(Sala de jantar em casa de SORIN. À esquerda e à direita, há portas. Aparador. Outro armário, com muitos remédios. Mesa, no meio da sala. Uma mala e caixas de chapéus. Preparativos de viagem, bem visíveis. TRIGORIN está a almoçar. MASHA, de pé, junto da mesa)
MASHA Se lhe falo nisto, é precisamente por o senhor
ser escritor. Se quiser, pode utilizar tudo. Se
ele estivesse gravemente ferido, eu não seria
capaz de continuar a viver nem mais um mi-
nuto. Ah, mas ainda conservo algum ânimo, e
resolvi arrancar este amor do meu coração, de
uma vez para sempre, arrancar-lhe raízes.
TRIGORIN Como?
MASHA Casando-me. Vou casar-me com o
Medvedenko.
TRIGORIN O professor?
MASHA Sim.
TRIGORIN Para mim não é muito clara a razão que a
compeliu a isso.
MASHA É um amor sem esperança, ano após ano à
espera...Se eu me casar, deixo de ter tempo
para o amor. Responsabilidades novas hão-
-de apagar os antigos afectos. De qualquer
modo vai ser uma situação nova para mim.
Acompanha-me? (Enche os copos)
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 59/60
MASHA Se lhe falo nisto, é precisamente por o senhor
ser escritor. Se quiser, pode utilizar tudo. Se
ele estivesse gravemente ferido, eu não seria
capaz de continuar a viver nem mais um mi-
nuto. Ah, mas ainda conservo algum ânimo, e
resolvi arrancar este amor do meu coração, de
uma vez para sempre, arrancar-lhe raízes.
TRIGORIN Como?
MASHA Casando-me. Vou casar-me com o
Medvedenko.
TRIGORIN O professor?
MASHA Sim.
TRIGORIN Para mim não é muito clara a razão que a
compeliu a isso.
MASHA É um amor sem esperança, ano após ano à
espera...Se eu me casar, deixo de ter tempo
para o amor. Responsabilidades novas hão-
-de apagar os antigos afectos. De qualquer
modo vai ser uma situação nova para mim.
Acompanha-me? (Enche os copos)
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 59/60
NINA O que é que está a escrever?
TRIGORIN São só uns apontamentos...Ocorreu-me agora
mesmo um tema...(Mete o bloco de notas na
algibeira) Um tema para um conto. Uma ra-
pariga que passou a vida à beira de um lago,
Assim, como você. Essa rapariga ama o lago.
como uma gaivota, e é feliz e livre como uma
gaivota. Um homem passa, olha para ela, e
como não tem mais nada que fazer, destrói-a
- como aquela gaivota ali. (Pausa)
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.58
TRIGORIN São só uns apontamentos...Ocorreu-me agora
mesmo um tema...(Mete o bloco de notas na
algibeira) Um tema para um conto. Uma ra-
pariga que passou a vida à beira de um lago,
Assim, como você. Essa rapariga ama o lago.
como uma gaivota, e é feliz e livre como uma
gaivota. Um homem passa, olha para ela, e
como não tem mais nada que fazer, destrói-a
- como aquela gaivota ali. (Pausa)
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.58
quinta-feira, 17 de março de 2011
Monsieur le Président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour partir à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le Président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter
Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins
Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir
S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le Président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour partir à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le Président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter
Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins
Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir
S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le Président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer
Boris Vian
Mas quando, de repente, vi a minha roupa reflectida como que num espelho,
Percebi nela o meu eu inteiro também,
E através dela reconheci e vi a mim mesmo.
Pois, embora nós derivássemos de um único e mesmo, estávamos
parcialmente divididos; e aí, de novo, éramos um, com uma única
forma.
E até os tesoureiros que tinham trazido a roupa
Eu via como dois seres, mas existia uma única forma em ambos,
Uma única prova real consistindo em duas metades.
E eles tinham o meu dinheiro e riqueza nas suas mãos, e deram-me a minha
recompensa:
A bela roupa de cores vivas;
Que era bordada com ouro, pedras preciosas e pérolas para dar uma
impressão conveniente.
Layton, As Escrituras Gnósticas, pg. 443.
Percebi nela o meu eu inteiro também,
E através dela reconheci e vi a mim mesmo.
Pois, embora nós derivássemos de um único e mesmo, estávamos
parcialmente divididos; e aí, de novo, éramos um, com uma única
forma.
E até os tesoureiros que tinham trazido a roupa
Eu via como dois seres, mas existia uma única forma em ambos,
Uma única prova real consistindo em duas metades.
E eles tinham o meu dinheiro e riqueza nas suas mãos, e deram-me a minha
recompensa:
A bela roupa de cores vivas;
Que era bordada com ouro, pedras preciosas e pérolas para dar uma
impressão conveniente.
Layton, As Escrituras Gnósticas, pg. 443.
terça-feira, 15 de março de 2011
TREPLEV (Entra, sem chapéu, com uma espingarda.
Traz na mão uma gaivota morta) Está aqui
sozinha?
NINA Sozinha. (TREPLEV poisa a gaivota no chão,
aos pés de NINA) Que quer isto dizer?
TREPLEV Hoje cometi um acto desprezível. Matei esta
gaivota. E agora deponho-a a teus pés.
NINA Mas o que é que tu tens? (Pega na gaivota e
observa-a).
TREPLEV (Após uma pausa) Não vai tardar muito que
eu me mate também.
NINA Não estou a reconhecer-te.
TREPLEV Foi desde que eu deixei de te reconhecer a ti.
Mudaste, no teu comportamento para comigo.
Tens um olhar frio...a minha presença constran-
ge-te.
NINA E tu, de há algum tempo para cá, tornaste-te
irritável. Nem é fácil apanhar o sentido do
que tu dizes - parece que falas por símbolos.
Quer parecer-me que esta gaivota também
é um símbolo, obviamente, mas não o
entendo, desculpa-me. (Põe a gaivota em
cima do banco) Sou demasiado simples para
poder entender-te.
TREPLEV Tudo começou naquela noite, com o falhanço
da minha peça. Um falhanço estúpido! E as
mulheres não perdoam nunca o insucesso. Já
queimei a peça, não ficou nem uma folha. Se
tu soubesses como eu me sinto infeliz. Essa
tua frieza é horrível. É inacreditável. Sinto-me
como se tivesse acordado de repente, e visse
o lago todo seco, bebido pela terra. Disseste
que eras simples de mais para me entenderes.
Mas entenderes o quê? A minha peça desa-
gradou a todos. E tu não dás valor à minha
inspiração, consideras-me medíocre, uma
nulidade, como a maior parte das outras pes-
soas...(Bate com um dos pés) Ah, como eu
estou a compreender tudo, a compreender
muitíssimo bem! É como se me tivessem dado
uma martelada na cabeça. Maldito! Maldito
orgulho que me está a sugar o sangue até à
derradeira gota, que é como uma víbora...
(Vê TRIGORIN a aproximar-se, lendo o seu
bloco de apontamentos) Eis que vem aí um
verdadeiro génio, tem as passadas de Hamlet,
e, como ele, avança de livro na mão. (Zomba)
''Words, words, words...'' Ainda este sol
vem longe e já o teu sorriso desponta. A
frieza do teu olhar aquece sob os seus raios.
Não quero ser importuno. (Sai, rápido)
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.48-50
Traz na mão uma gaivota morta) Está aqui
sozinha?
NINA Sozinha. (TREPLEV poisa a gaivota no chão,
aos pés de NINA) Que quer isto dizer?
TREPLEV Hoje cometi um acto desprezível. Matei esta
gaivota. E agora deponho-a a teus pés.
NINA Mas o que é que tu tens? (Pega na gaivota e
observa-a).
TREPLEV (Após uma pausa) Não vai tardar muito que
eu me mate também.
NINA Não estou a reconhecer-te.
TREPLEV Foi desde que eu deixei de te reconhecer a ti.
Mudaste, no teu comportamento para comigo.
Tens um olhar frio...a minha presença constran-
ge-te.
NINA E tu, de há algum tempo para cá, tornaste-te
irritável. Nem é fácil apanhar o sentido do
que tu dizes - parece que falas por símbolos.
Quer parecer-me que esta gaivota também
é um símbolo, obviamente, mas não o
entendo, desculpa-me. (Põe a gaivota em
cima do banco) Sou demasiado simples para
poder entender-te.
TREPLEV Tudo começou naquela noite, com o falhanço
da minha peça. Um falhanço estúpido! E as
mulheres não perdoam nunca o insucesso. Já
queimei a peça, não ficou nem uma folha. Se
tu soubesses como eu me sinto infeliz. Essa
tua frieza é horrível. É inacreditável. Sinto-me
como se tivesse acordado de repente, e visse
o lago todo seco, bebido pela terra. Disseste
que eras simples de mais para me entenderes.
Mas entenderes o quê? A minha peça desa-
gradou a todos. E tu não dás valor à minha
inspiração, consideras-me medíocre, uma
nulidade, como a maior parte das outras pes-
soas...(Bate com um dos pés) Ah, como eu
estou a compreender tudo, a compreender
muitíssimo bem! É como se me tivessem dado
uma martelada na cabeça. Maldito! Maldito
orgulho que me está a sugar o sangue até à
derradeira gota, que é como uma víbora...
(Vê TRIGORIN a aproximar-se, lendo o seu
bloco de apontamentos) Eis que vem aí um
verdadeiro génio, tem as passadas de Hamlet,
e, como ele, avança de livro na mão. (Zomba)
''Words, words, words...'' Ainda este sol
vem longe e já o teu sorriso desponta. A
frieza do teu olhar aquece sob os seus raios.
Não quero ser importuno. (Sai, rápido)
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.48-50
ARKADINA (...) Onde é que está o Boris Alexeevich?
NINA Está lá em baixo, a pescar.
ARKADINA Nunca se cansa de pescar, não entendo.
(Prepara-se para prosseguir leitura)
NINA Que livro é esse?
ARKADINA Na Água, do Maupassant, minha querida.
(Lê umas linhas, para consigo) Bem, o que
vem a seguir não tem interesse, nem sequer é
verdadeiro. (Fecha o livro) Estou preocupa-
díssima, verdadeiramente aflita, no meu
íntimo. Sabe dizer-me o que é que se passa
com o meu filho? Porque é que ele anda tão
abatido, tão triste? Deixa-se ficar dias e dias
inteiros, à beira do lago, e mal o vejo.
MASHA Tem o coração doente. (Para NINA, com ti-
midez) Não faz o favor de nos ler uma pas-
sagem da peça dele?
NINA (Depois de encolher os ombros) Quer que eu
leia? Mas é tão pouco interessante, a peça.
MASHA Quando é ele próprio a ler, os seus olhos
brilham, e empalidece. Uma voz linda, me-
lancólica. Parece mesmo um poeta.
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.40
NINA Está lá em baixo, a pescar.
ARKADINA Nunca se cansa de pescar, não entendo.
(Prepara-se para prosseguir leitura)
NINA Que livro é esse?
ARKADINA Na Água, do Maupassant, minha querida.
(Lê umas linhas, para consigo) Bem, o que
vem a seguir não tem interesse, nem sequer é
verdadeiro. (Fecha o livro) Estou preocupa-
díssima, verdadeiramente aflita, no meu
íntimo. Sabe dizer-me o que é que se passa
com o meu filho? Porque é que ele anda tão
abatido, tão triste? Deixa-se ficar dias e dias
inteiros, à beira do lago, e mal o vejo.
MASHA Tem o coração doente. (Para NINA, com ti-
midez) Não faz o favor de nos ler uma pas-
sagem da peça dele?
NINA (Depois de encolher os ombros) Quer que eu
leia? Mas é tão pouco interessante, a peça.
MASHA Quando é ele próprio a ler, os seus olhos
brilham, e empalidece. Uma voz linda, me-
lancólica. Parece mesmo um poeta.
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.40
Noite de Inverno
«Um lobo vermelho a ser estrangulado por um anjo. As tuas pernas tilintam, a andar, como gelo azul, e um sorriso cheio de tristeza e arrogância empederniu-te o rosto, e a fonte empalidece com a volúpia da geada;»
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 91
Metamorfose Do Mal
(2ª versão)
(...)
«Alguém te abandonou na encruzilhada, e tu olhas longamente para trás. Passos argênteos na sombra de macieiras raquíticas. Purpúreo, o fruto resplandece nos ramos negros, e na erva a serpente está na muda de pele. Oh, a escuridão! O suor que apareceu na fronte de gelo e os tristes sonhos no vinho, na taberna da aldeia sob traves negras de fumo. Tu, deserto ainda, que faz nascer por magia ilhas de rosas das nuvens castanhas do tabaco e lhes arranca do interior o grito selvagem de um grifo que caça, rodando falésias negras, por mares, tempestades e gelos. Tu, um metal verde e por dentro um rosto de fogo que quer sair para cantar, de cima do monte de ossadas, tempos sinistros e a queda flamejante do anjo. Oh, desespero que num grito mudo cai de joelhos!
Um morto vem visitar-te. Do coração corre-lhe o sangue que ele próprio verteu, e no sobrolho negro
aninha-se um instante indizível. Encontro lúgrebe. Tu - uma lua de púrpura, quando o outro aparece na sombra verde da oliveira. Segue-o a noite eterna.»
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 87
segunda-feira, 14 de março de 2011
DORN Ainda outra coisa. Na obra de arte, tem de
haver sempre um pensamento claro e bem
definido. Temos de saber para que se está a
escrever. De outro modo, quando envereda-
mos por um caminho cheio de pitoresco mas
sem objectivo, perdemos o rumo e somos
aniquilados pelo nosso próprio talento.
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.34
haver sempre um pensamento claro e bem
definido. Temos de saber para que se está a
escrever. De outro modo, quando envereda-
mos por um caminho cheio de pitoresco mas
sem objectivo, perdemos o rumo e somos
aniquilados pelo nosso próprio talento.
A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.34
(...)
«À noite, no terraço, embriagámo-nos com vinho castanho.
Vermelho arde o pêssego na folhagem;
Doce sonata, alegre riso.
Belo é o silêncio da noite.
Na planície negra
Encontramo-nos com pastores e estrelas brancas.'»
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 57
domingo, 13 de março de 2011
Cântico Da Noite
I
Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.
Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.
Somos os viadantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte,
À espera que venham cortá-las.
II
Que em mim se consume o último sofrimento,
Não vos detenho, forças negras do Mal!
Vós sois a estrada para o grande silêncio,
Por onde entramos em noites de cristal.
No velho hábito crepita o meu lume.
Paciência! Morre a estrela, os sonhos passam
Para aqueles reinos, para nós sem nome,
Que só os homens sem sonhos atravessam.
III
Coração negro, oh noite cerrada,
Quem espelha vossos sacros recantos,
Do vosso mal os derradeiros antros?
A nossa dor deixa a máscara gelada -
A nossa dor, o nosso prazer,
E esse riso de pedra da máscara sem dundo,
Que fez ruir as coisas deste mundo
E escapa a quem o queira conhecer.
Mas ele aí está, inimigo de fora,
Rindo das coisas por quem nos arriscamos,
Ensombrando as canções que cantamos
E deixando no escuro o que em nós chora.
IV
Tu és o vinho que embriaga o mundo,
E eu esvaio-me em sangue em danças de amor,
Coroando de flores a minha dor!
É a tua vontade, oh noite sem fundo!
Eu sou a harpa em ti a tanger,
E as últimas dores no meu coração
Cedem à tua negra canção,
Que me faz eterno e me apaga o ser.
V
Paz profunda, dorme o vento,
Nem um som de sinos traz.
Doce mãe de sofrimento -
É da morte a tua paz.
Deixa que sangrem para dentro,
Sara as feridas, estende a mão
De bálsamo e compaixão,
Doce mãe de sofrimento -
VI
Que o meu silêncio seja a tua canção!
De que te serve o ciciar do deserdado,
Que dos jardins da vida se afastou?
Deixa-te em mim ser o não nomeado -
Como se em mim te erguesses sem sonhar,
Como a ausência de toque nos sinos,
Como a noiva de mel da minha dor
E a papoila ébria dos meus sonhos.
VII
Ouvi flores nos abismos a morrer
E das fontes a queixa inebriada
E da boca dos sinos uma canção a sair,
Noite, e uma pergunta ciciada;
E, chaga de morte, um coração nascer
Do outro lado desta pobre jornada.
VIII
As trevas apagaram-se sem nada dizer,
Tornei-me sombra morta em pleno dia -
Saí então da casa do prazer
Para a noite me engolir.
Com o coração cheio de silêncio vi
Como ele é insensível ao tédio do dia -
E te oferece um sorriso de espinhos de ti,
Noite - até ao fim!
IX
Noite, muda porta do meu sofrimento,
Olha o meu sangue negro da chaga a correr,
E como já se inclina o cálice da dor!
Oh noite, é o momento!
Tu, noite, jardim do esquecimento
Do brilho órfão do mundo desta pobreza minha!
Murcha a coroa de espinhos, a folhagem da vinha.
Oh vem, supremo tempo!
X
Tempos houve em que o meu demónio ria,
E eu era uma luz em jardins soalheiros,
Tinha jogo e dança por companheiros
E o vinho do amor que me inebria.
Tempos houve em que o meu demónio chorava,
E eu era uma luz em jardins de crueldade,
Tinha por companheira a humildade
Que a casa da pobreza iluminava.
Hoje o meu demónio não ri nem chora,
Eu sou uma sombra num jardim perdido,
E o meu companheiro, pela morte enegrecido,
É o silêncio vazio de antes da aurora.
XI
Meu pobre sorriso que te cortejava,
Minha triste canção que no escuro se apagava.
Agora a jornada quer chegar ao fim.
Concede que eu entre na tua catedral
Como outrora um simples devoto, fiel,
Para mudo te adorar a ti.
XII
Tu és em funda meia-noite
Uma praia morta num mar de silêncio,
Uma praia morta: Esquecimento!
Tu és em funda meia-noite.
Tu és em funda meia-noite
O céu em que foste estrela por vezes,
O céu em que já não florescem deuses.
Tu és em funda meia-noite.
Tu és em funda meia-noite
Um não-concedido em ventre de amor,
O que nunca foi e não tem ser!
Tu és em funda meia-noite.
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 25-35