sexta-feira, 6 de junho de 2025

As Musas Cegas - Vii

 Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.

Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,
ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando.
E uma doce pancada à porta, alguma coisa
que desfaz e refaz um homem. Uma pancada
breve, breve —
e eu estremeço como um archote. Eu diria
que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade.
Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente
ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima
como a minha face.

Essa criança tem boca, há tantas finas raízes
que sobem do meu sangue. Um novo instrumento,
uma taça situou-se na terra, e há tantas
finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia,
uma flor, uma pequena lira,
podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo —
um novo instrumento rodeado pelas campânulas
inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,
pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo
as grandes cabeças sonhadoras.

Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva.
Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me
tantas vezes dos mistérios dessa porta.
Porque então é muito estreita com seus espelhos
detrás, com o vestíbulo frio.
Mas é tão belo uma criança ainda enevoada,
uma criança que ascende como uma
grande música
desta rede de ossos, deste espinho do sexo,
da confusa pungência, escuta: da pungente
confusão
de um homem restrito com a sua vida tão lenta.

Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos.
As vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens,
e as virilhas em chama.
E a minha vida. Mas essa criança
é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta
o meu coração.
No outono eu olhava as águas lentas,
ou as pistas deixadas na neve
de fevereiro, ou a cor feroz,
ou a arcada do céu com um silêncio completo.
Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se
a ciência na minha carne
atónita. Escuta: cada vez a minha vida
é mais hermética.
Essa criança tem os pés na minha boca
dolorosa.

Se ela um dia adormecer com cerejas junto à
respiração pequena e sonhar
estes imensos arcos que os séculos vão colocando
sob os astros — e se de tudo
a sua cabeça estremecer como numa loucura,
com altos picos em volta, com enormes faróis
acendendo e apagando — escuta: se essa criança
imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente
para que ela invente o seu próprio rio
sem nome —
será ainda que do meu sangue se erguem finas
raízes, e o tenebroso tumulto
das minhas sombras
está no fundo, no fundo da sua ingénua vida,
da sua terrível vida sem remédio.
Se ela morrer, escuta, será que a minha boca
diz lá em baixo
essas majestosas e violentas palavras
dos poemas.

Essa criança que aperta as veias que iluminam
a minha garganta. Ela dorme. Escuta:
a sua vida estala como uma brasa, a sua vida
deslumbrante estala e aumenta.
Se um dia os archotes incendiarem essa boca,
e as faúlhas cercarem
o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta:

a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.

Herberto Helder

Demão

Retorna à escuridão
o rosto: entre centelhas, Ficasse tão maduro quando
de te tragar
estremecesses, Que o animassem
os elementos: um interior: um limite do mundo,
E se afinasse como
um galho de marfim
cheio de lume, Que fosse um instrumento
de crescer na terra: um golpe
nela, Abraço,
Com a mão coroada,
Até à bolsa com a lua dentro,
No ovo está o astro, Se pelos dedos
nesse rosto
te plantasses todo na riqueza do sono,
Soldado a nervos: osso:
feixes de fibras:
tímpanos, E as faíscas saltando pelas unhas
as deixassem ígneas,
E uma veia arpoasse igneamente a massa
muscular, Ou
a aorta sorvesse a matéria
tremenda
ao seu abismo, E te encharcasse até às pálpebras,
Essa púrpura por válvulas
contra os dentes, Nos fundamentos há
vezes
em que és ligeiro ao movimento da água,
Ou nas paredes onde os canos se cruzam
como um corpo onde se cruzam
órgãos
tubos, Um alento das coisas: dos tecidos
do mundo, E por exemplo se a louça e o inox
brilhados de dentro: à mesa,
E a madeira respira mais rápida,
E uma grande massa orgânica magnífica
cercada de membros
como um homem,
Essas pinças na cabeça entre as meninges
extraindo
uma estrela, Os canais luminosos da cabeça
iluminam-te todo, Iluminas-te
quando se arranca a língua e há um soluço da fala,
Levantas-te soberbamente
ao rosto, Como a vara
do vèdor fica acesa
pelas ramas de água, Como que salga
o aparelho
do corpo: e o torna substância
alta: giratória, Ou se fulgura a trama
cristalográfica
terrífica da música, Se levanta
entre dedos e cordas
fundidos, De sangue e ar no escuro:
música,
O medo do poder: esta ferida
tão de um nó de músculos estrangulando
uma leveza,
O barro violento, A manobra
das vozes, Fechas os olhos: e as
coisas não te vêem,
As mãos brilham-te abertas,
A morte aumenta a cara


Herberto Helder


    Marcel Mariën

 

Diga

(Similia Similibus)



Quem deita sal na carne crua deixa
a lua entrar pela oficina e encher o barro forte:
vasos redondos, os quadris
das fêmeas — e logo o meu dedo se põe a luzir
ao fôlego da boca: onde
o gargalo se estrangula e entre as coxas a fenda
é uma queimadura
vizinha
do coração — toda a minha mão se assusta,
transmuda,
se torna transparente e viva, por essa força que a traga
até dentro,
onde o sangue mulheril queimado
a arrasta pelos rins e aloja, brilhando
como um coração,
na garganta — o sal que se deita cresce sempre
ao enredo dos planetas: com unhas
frias e nuas
retrato as lunações, talho a carne límpida
— porque eu sou o teu nome quando
te chamas a toda a altura
dos espelhos e até ao fundo, se teus dedos abertos tocam
a estrela
como uma pedra fechada no seu jardim selvagem
entre a água: tu tocas
onde te toco, e os remoinhos da luz e do sal se tocam
na carne profunda: como em toda a olaria o movimento
toca a argila e a torna
atenta
à translação da casa pela paisagem rodando sobre si
mesma — a teia sensível,
que se fabrica no mundo entre a mão no sal
e a potência
múltipla de que esta escrita é a simetria,
une
tudo boca a boca: o verbo que estás a ser a cada
tua morte
ao que ouço, quando a luz se empina e a noite inteira
se despenha
para dentro do dia: ou a mão que lanço sobre
esse cabelo animal
que respira no sono, que transpira
como barro ou madeira ou carne salgada
exposta
a toda a largura da lua: o que é grave, amargo, sangrento.

Herberto Helder

Os Animais Carnívoros


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco-
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o
que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e
urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às
nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então
os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora
era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos
eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era
uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas
abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder

Lugar - Iv

 

Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde
uma paixão bárbara, um amor.
Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um desespero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em quem toco levemente
levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro da minha idade, desde
a treva, de crime em crime — espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
das suas cabeças
ardentes: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

Herberto Helder

                                                                                            Marcel Mariën

 

Lugar - Ii

 


Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
de silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, raios límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta — dizem em mim — até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.

Há em cada instante uma noite sacrificada
ao pavor e à alegria.
Embatente com suas morosas trevas.
Desde o princípio, uma onda que se abre
no corpo, degraus e degraus de uma onda.
E alaga as mãos que brilham e brilham.
Digo que amaria o interior da minha canção,
seus tubos de som quente e soturno.
Há uma roda de dedos no ar.
A língua flamejante.
Noite, uma inextinguível
inexprimível
noite. Uma noite máxima pelo pensamento.
Pela voz entre as águas tão verdes no sono.
Antiguidade que se transfigura, ladeada
por gestos ocupados no lume.

Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios altíssimos da voz.
As raízes afogadas no nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.
Quando se esclarecem as portas que rodam
para o lugar da noite. Noite
de uma voz
humana. De uma acumulação
atrasada e sufocante.
Há sempre sempre uma ilusão abismada
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo
do cruzamento do fogo.
Prodígio para as vozes de uma vida repentina.

E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.

Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.

Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior
da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.

Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino.
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.

Eleni Karaindrou Le Voyage



                                                                                                   Marcel Mariën
 

Poemacto - Ii

 Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.

Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
E sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espirito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

— Era uma casa — como direi? — absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no meu esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
— Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta — como
direi? — um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
— Prefiro enlouquecemos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
— Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste
tocadas
num trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.

Herberto Helder

90


Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua pa:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecei
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

Herberto Helder

As Palavras 6


Ficarão para sempre abertas as minhas salas negras.
Amarrado à noite, eu canto com um lírio negro sobre a boca.
Com a lepra na boca, com a lepra nas mãos.
Este mamífero tem sal à volta, este mineral transpira, a primavera precipita-se.
Com a lepra no coração.
Mais de repente, só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo de medo.
E uma vida mais lenta só com uma estrela às costas, uma tonelada de luz inquieta, uma estrela respirando como um carneiro vivo.
Igual a esta espécie de festa dolorosa, apenas um ramo de cabelos violentos e o seu odor a pimenta, no lado escuro como se canta que as salas vão levantar o seu voo.
Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas em dez dedos com sono, como uma rosa acima do pénis.
Ao cimo do caule de sangue, essa flor confusa.
Um equilíbrio igual, só a estrela ao cimo do êxtase.
Só alguma coisa parada no cimo de uma visão tremente.
A primavera, que eu saiba, tem o sal como cor imóvel.
Por um lado entra a noite, assim de súbito negra.
De uma ponta à outra enche-se o espaço aplainando tábuas.
Rasga-se seda para aprender o ritmo.
Abraço um corpo com as camélias a arder.
Abertas para sempre as negras partes de mais uma estação.
Semelhante a isto as mulheres andam pelas galerias transparentes, e o palácio queima a noite onde estou cantando.
É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver — e num lado há espelhos bêbedos, no outro um cardume ilegível de sons obscuros.
Sabe-se então pelo silêncio em volta, sabe-se em volta que são lírios sonoros.
Passando as mulheres colhem estes sons irrompentes, e as mãos ficam negras junto à beleza insensata.
Elas sorriem depois com um talento terrível.
Levamos às costas um carneiro palpitante.
Pesa tanto uma estrela quando se acorda nas salas negras abertas de par em par, e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos, e sobre a boca um lírio em brasa, branco, branco, que não nos deixa respirar.
A lepra na boca, que não nos deixa respirar.
Um ramo de lepra contra o corpo, como isto então só o movimento de águas obscuras pelos canais de um canto, como um palácio de salas negras abertas para sempre.
Este animal respira como um espelho de pé, no ar, no ar.

Herberto Helder

Photo by Solène Milcent


 

P̲i̲nk̲ ̲F̲lo̲y̲d ̲-̲ ̲U̲mma̲g̲u̲mma̲

4A

Mulheres geniais pelo excesso da seda, mães
do ouro
vagaroso.
Sopram a lua pela boca dos púcaros.
A força de labareda, as porcelanas
apuram-se, altas,
nos dedos. E elas medem girassóis pupila a pupila,
paisagens,
rasgões da água. Entre os braços arrebatam-se
cereais, fogo.
A escrita suprema de imaginar por música
as coisas: louças, comidas, roupas.
Num inebriamento de beleza composta em número.
Deitam leite nos cântaros.
E inclinam a cara, vêem no precipício
a altura voltada daquela arte da vertigem
de que são o centro. Se mungem o gado, esplendem
de pêlo e segredo, abaladas pelo bafo
do fundo: uma vaca é um jarro sumptuoso
com o rosto delas, oculto
e húmido, o rosto movido a luz.
Uma camélia soprada.
E as mãos pensando sempre.
Quem se banha nessas ribeiras fêmeas escoando-se
nas imagens fica infuso, os membros
em raio de estrela.
Está molhado pelo coração dentro.
Quando pelas suas ciências elas param na memória.
Quando se abre uma ferida. Quando a ferida
sangra.
Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.

 

''Ele nada sabe e pensa que tudo sabe. Isso aponta claramente para uma carreira política.''

George Bernard Shaw
Dramaturgo irlandês


Musgo

 Sonho amarelo da ausência
Do alto das telhas ingênuas
Aguarda

Aguarda para descer
Sobre as pálpebras fechadas da terra
Sobre as faces apagadas das casas
Sobre as mãos apaziguadas das árvores

Aguarda imperceptível
Para a mobília enviuvada
Abaixo no quarto
Revestir cuidadoso
De uma capa amarela

Vasko Popa

No começo


Agora ficou fácil
Salvamo-nos da carne
O que faremos agora
Diz algo
Talvez queiras ser
A espinha do raio
Diz algo mais
O que direi
O osso pélvico da tempestade
Diz outra coisa
Nada mais sei
Costela celeste
Não somos os ossos de ninguém
Diz uma terceira coisa

Vasko Popa
 poetas da Iugoslávia

quinta-feira, 5 de junho de 2025

terça-feira, 27 de maio de 2025

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Mar branco

''A imagem futura''

Precognição

 ''Ter cognição do futuro''

How Do You Sleep?

So Sgt. Pepper took you by surpriseYou better see right through that mother's eyeThose freaks was right when they said you was deadThe one mistake you made was in your head
Oh, how do you sleepOh, how do you sleep at night
You live with straights who tell you, you was kingJump when your momma tell you anythingThe only thing you done was yesterdayAnd since you're gone you're just another day
Oh, how do you sleepOh, how do you sleep at night
Oh, how do you sleepOh, how do you sleep at night
A pretty face may last a year or twoBut pretty soon they'll see what you can doThe sound you make is muzak to my earsYou must have learned something in all those years
Oh, how do you sleepOh, how do you sleep at night




Joshua Benoliel

''as ilusões do olhar''

''fotografia testemunhal''

 Alexandre Pomar , jornalista e crítico de arte

“A fotografia portuguesa é como a imagem de um negro no túnel do Rossio a cantar o Black is black”

Gérard Castello-Lopes

''Pássaros de Asas Cortadas''

 filme português realizado por Artur Ramos em 1963

Eleni Karaindrou - Ulysses' Gaze


 

«Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres.»



Arte Poética III

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.

Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.

E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de Ésquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça.» Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o Sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência.



A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres.» Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.

O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.

Eis-nos aqui reunidos, nós escritores portugueses, reunidos por uma língua comum. Mas acima de tudo estamos reunidos por aquilo a que o padre Teilhard de Chardin chamou a nossa confiança no progresso das coisas.

E tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar, saudar os meus amigos ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles que estão unidos por uma fé e por uma esperança.



(Palavras ditas em 11 de Julho de 1964 no almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuido a Livro Sexto.)

''tragédia de contornos shakespearianos''

domingo, 25 de maio de 2025

 

“O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está origem de todos os outros.”

 Milan Kundera, The Unbearable Lightness of Being

Lana Del Rey - Tomorrow Never Came


Deborah Turbeville

 

Transe


Transe
Num tempo neutro acordo
entre a noite e o dia
sob um céu ilegítimo condensa-se
a mudança
Nuvens totais exprimem
a presente longínqua
madrugada
as aves sobrevivem na queda
ao
tempo branco
Acordo sob um céu sob um tecto
dum quarto
É uma imagem pobre uma velha
metáfora. No exterior porém
das paredes toalhas além
dos vidros turvos de nuvens
apagadas
agride-me a imagem invisível
opaca
da madrugada externa
que
no dia se espalha
como uma norma espessa
uma neutra linguagem
O céu é como um poço como um mar
como um lago
comparações banais mas as mais
eficazes onde aves
como peixes
transitam lentamente errando
nas palavras
Procuro adormecer
o silêncio do
dia inutiliza a vida
Provavelmente nada
mudará ou talvez
tudo tenha mudado há muito
ou vá mudando
sob o lago do céu onde os
peixes descrevem
ilegítimos voos como velhas
metáforas.

Gastão Cruz

demomania

objectificação

'' o mal banal''

Raquel Meller " la Violetera " 1926


 

 “Saudades! Sim... Talvez... e porque não?...

Se o nosso sonho foi tão alto e forte.
Que bem pensara vê-lo até à morte.
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte.
Deve-nos ser sagrado como o pão!
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar.
Mais a saudade andasse presa a mim!”

Florbela Espanca

''mordendo-lhes os calcanhares''

Ted Hughes. O Fazer da Poesia. Tradução Helder Moura Pereira. Assírio&Alvim, 2002., p. 27

 45.

Estou mudo porque todas as palavras te escutam.


Vasco Gato, Contra Mim Falo, edição INCM

"Morrer pelos Passarinhos"


Marcel Mariën, Balance
 

 « Mandíbulas e dentes ainda não mudados,
presos pela boca ao anzol;»

Ted Hughes. O Fazer da Poesia. Tradução Helder Moura Pereira. Assírio&Alvim, 2002., p. 23

- A Raposa-Pensamento

Ted Hughes. O Fazer da Poesia. Tradução Helder Moura Pereira. Assírio&Alvim, 2002., p. 20

Maçarico-real

"Se o povo quiser ir para o inferno, é para o inferno que iremos"

Miles Davis - Freddie Freeloader

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