sexta-feira, 26 de janeiro de 2024


“Choupos” (ed. Assírio & Alvim)
Adília Lopes


 

domingo, 21 de janeiro de 2024


Elis Regina e Ronaldo Bôscoli

 

No Bico Do Mamilo


No metrôEu penso que passoNum subterrâneoPerto da tua casa
No metrôEu penso que passoNum subterrâneoPerto da tua casa
Como dóiNo bico do mamilo um peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco gelado
No metrôEu penso que passoNum subterrâneoPerto da tua casa
Como dóiNo bico do mamilo um peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco gelado
E engoliUm ovinho de codorna inteiroSó pra ver se preenchia
Meu sistema estomacalEstomacalMeu sistema estomacalEstomacal(Meu sistema estomacal)
Óleo, manteigaSabão e vejaSuicídio pirataEspelho manchado
Óleo, manteigaSabão e vejaSuicídio piratasEspelho manchado
No metrôEu penso que passoNum subterrâneoPerto da tua casa
Como dóiNo bico do mamilo um peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco gelado
No metrôEu penso que passoNum subterrâneoPerto da tua casa
Como dóiNo bico do mamilo um peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco gelado
No bico do mamilo um petelecoUm peteleco geladoNo bico do mamilo um peteleco gelado

''As pessoas dão importância a umas coisas que não valem um caracol.''

Adília LopesBandolim. Assírio&Alvim, 1ª edição, 2016., p. 53

''pássaros vulgares''

 

verbo intransitivo
andar tafultrajar com luxoluxar

The Devil, Probably (1977)


 

A casa das bonecas 
foi demolida

As bonecas
foram parar
ao hospital das bonecas
com maus sonhos


Adília LopesBandolim. Assírio&Alvim, 1ª edição, 2016., p. 37

« O problema de muitos literatos que falam de flores e de frutos, porque os poemas falam de flores e de frutos, é que não sabem nada de botânica. Não sabem nada de nada, muito menos de literatura.»

Adília LopesBandolim. Assírio&Alvim, 1ª edição, 2016., p. 36

BICHOS

 A minha mãe era bióloga. Dizia «O que mata bichos mata pessoas.» As pessoas esquecem-se de que são bichos.

19/5/15


Adília LopesBandolim. Assírio&Alvim, 1ª edição, 2016., p. 32

 Gosto dos outros
que têm defeitos 
gosto dos outros
que não são perfeitos

Adília LopesBandolim. Assírio&Alvim, 1ª edição, 2016., p. 26

 Lena atirou o anel de noivado
à cara do noivo

Adília Lopes. Bandolim. Assírio&Alvim, 1ª edição, 2016., p. 23

''iludências''

sábado, 20 de janeiro de 2024

Ana Frango Elétrico: Promessas e Previsões

Eugénio de Andrade


 

Sérgio Godinho - Etelvina

 Etelvina com seis meses já se tinha de pé

Foi deixada num cinema depois da matuinéeCom um recado na lapela que dizia assimQuem tomar conta de mimQuem tomar conta de mimSaiba que fui vacinadaSaiba que sou malcriada
Etelvina com dezasseis anos já conheciaTodos os reformatórios da terra onde viviaEntregaram-na a uma velha que ralhava assimAi menina sem juizoNem mereces um sorrisoVais acabar num bueiroSem futuro nem dinheiro
"Eu durmo sozinha à noiteVou dormir à beira rio à noite, à noiteAcocorada com o frio à noite, à noite, à noite, à noite, à noite"
Etelvina era da rua como outros são do campoSua cama era um caixote sem paredes nem tampoSua janela uma ponte que dizia assim:Dentro das minhas cidadesJá não sei quem é ladrãoSe um que anda fora de gradesSe outro que está na prisão
Etelvina só gostava era de andar pela cidadeA semear desacatos e a colher tempestadesA meter-se c'os ricaços, a dizer assim:Você que passa de carroFerre aqui a ver se eu deixoVenha cá que eu já o agarroDou-lhe um pontapé no queixo
"Eu durmo sozinha à noiteVou dormir à beira rio à noite, à noiteAcocorada com o frio à noite, à noite, à noite, à noite, à noite"
Etelvina já cansada de viver sem ninguémA não ser de vez em quando amores de vai e vemPôs um anúncio no jornal que dizia assim:Mulher desembaraçadaQuer viver com alma irmãDe quem não seja criadaDe quem não seja mamã
Etelvina já sabia que não ia encontrarNem um príncipe encantado nem um lobo do marSó alguém com quem pudesse dizer assim:O amor já não é cegoAbre os olhinhos à genteFaz lutar com mais apegoA quem quer vida diferente
O seu homem encontro-o à noiteA dormir à beira rio, à noite, à noiteAcocorado com frio à noite, à noite, à noite, à noite, à noite


DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA
Robert Bresson, 1951



De Coração E Raça
Canção de Sergio Godinho

Sou português de coração e raçaMeio século comido pela traçaMantidos numa caixa e agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou racha
Agora vamos é ser donos do nosso trabalharEm vez de andar para alugarCom escritos na camisaE o dinheiro que desliza do salário prá despesaCompro cama vendo mesa deito contas à pobreza
Sou português de coração e raçaMeio século comido pela traçaMantidos numa caixa e agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou racha
Agora vamos é ser donos do nosso produzirEm vez de ter que partirCom escritos numa mala e a idade que resvalaDo nascimento pra morteVou pra leste perco o norte e o meu corpo é passaporte
Sou português de coração e raçaMeio século comido pela traçaMantidos numa caixa e agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou racha
Agora vamos é ser donos do nosso trabalharEm vez de andar para alugarCom escritos na camisaE o dinheiro que desliza do salário prá despesaCompro cama vendo mesa deito contas à pobreza
Sou português de coração e raçaMeio século comido pela traçaMantidos numa caixa e agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou racha-cha-cha-chaE agora ou vai ou rachaE agora ou vai ou racha


Assim Como Um Postal Para O Canadá
Canção de Sergio Godinho

Foi a sede, foi a neveE a falta de alguémQue me trouxe ao consoloDe quem o tem
Já vou, meu amor, eu já venhoSe o despertador tocarEstarei contigo ao jantar
Rapariga, mulher fácilDe compreenderTeu palácio onde a chuvaNão tem dizer
Já estou com o cabelo enxutoE a roupa a secar no fornoE os lábios num caldo morno
O correio hoje à tardeTrouxe um embrulhoAgitei-o para verSe fazia barulho
Abri-o e era um par de luvasE um metro de um bom riscadoEstou pronto para o noivado
Passa um carro a guincharDentro da cidadeSegue a multa por excessoDe velocidade
E eu aqui à janelaEsmagando as moscas de verãoCom o corpo a dizer que não
Telefonaste a dizerQue estás atrasadaFoi a sede que me fezVoltar para a estrada
Mas tudo o que quis dizerFica aqui no gravadorO medo, a alegria e a dor

Diário de um Pároco de Aldeia (1951)


 

Liberdade


Abaixo o pão, habitaçãoSaúde e educaçãoAbaixo o pão, habitaçãoSaúde e educação
Viemos com o peso do passado e da sementeEsperar tantos anos, torna tudo mais urgenteE a sede de uma espera só se estanca na torrenteE a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela caladaSó se pode querer tudo quando não se teve nadaSó quer a vida cheia quem teve a vida paradaSó quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sérioQuando houver
A paz, o pão, habitaçãoSaúde, educaçãoSó há liberdade a sério quando houverLiberdade de mudar e decidirQuando pertencer ao povo o que o povo produzirE quando pertencer ao povo o que o povo produzir
Viemos com o peso do passado e da sementeEsperar tantos anos, torna tudo mais urgenteE a sede de uma espera só se estanca na torrenteE a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela caladaSó se pode querer tudo quando não se teve nadaSó quer a vida cheia quem teve a vida paradaSó quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sérioQuando houver
A paz, o pão, habitação, saúde, educaçãoSó há liberdade a sério quando houverLiberdade de mudar e decidirQuando pertencer ao povo o que o povo produzirE quando pertencer ao povo o que o povo produzir
Viemos com o peso do passado e da sementeEsperar tantos anos, torna tudo mais urgenteE a sede de uma espera só se estanca na torrenteE a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela caladaSó se pode querer tudo quando não se teve nadaSó quer a vida cheia quem teve a vida paradaSó quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sérioQuando houver
A paz, o pão, habitação, saúde, educaçãoSó há liberdade a sério quando houverLiberdade de mudar e decidirQuando pertencer ao povo o que o povo produzirE quando pertencer ao povo o que o povo produzir
A paz, o pão, habitação, saúde, educação...

Sérgio Godinho

polemista


 

''país paupérrimo''

 https://www.dn.pt/opiniao/cavaco-e-a-sua-arte-de-nos-fazer-esquecer-como-governou-16980923.html/

cronistas políticos

 ''PSD hegemónico''

Pedro Mexia

xurreira

 ''Cavaco Silva está viciado no auto-elogio.''

Pedro Mexia

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024


 

"Eu contei pro papi que gosto muito de ser lambida, mas parece que ele nem me escutou, e se eu pudesse eu ficava muito tempo na minha caminha com as pernas abertas mas parece que não pode porque faz mal, e porque tem isso da hora. É só uma hora, quando é mais, a gente ganha mais dinheiro, mas não é todo mundo que tem tanto dinheiro assim pra lamber".

Trecho do livro O caderno rosa de Lori Lamby
 Escritora e poeta Hilda Hilst.


“Aflição de ser eu e não ser outra./ Aflição de não ser, amor, aquela/ Que muitas filhas te deu, casou donzela/ E à noite se prepara e se adivinha”, escreveu em 1959, no livro Roteiro do Silêncio.

Hilda Hilst


'' As coisas avançaram evidentemente, mas o fascismo está sempre a espreitar uma ocasião, um buraquinho, um sítio, um país, um ser humano. Está sempre ali para saltar em cima. Nós, portugueses e brasileiros, que já passamos por fascismos, sabemos que eles estão por aí. E, pior, agora estão por aí a olhar para nós com suásticas tatuadas nos braços.''

Entrevista, Maria Teresa Horta


Dora Maar, 1936 | Fotografia Man Ray 

 Minha Senhora de Mim, de 1971

Maria Teresa Horta

ardência

inflexão

Poetisa

''Eu gosto muito dessa palavra poetisa. Várias vezes os poetas e os críticos me disseram: 'Você é uma grande poeta'. E eu sempre disse que isso é mau português. Eu não sou um, sou uma. Faz toda a diferença.''

Maria Teresa Horta

“Os fascistas estão por aí com suásticas tatuadas a olhar para nós”

Maria Teresa Horta

O Processo de Joana D' Arc | Robert Bresson


 

King Crimson - Epitaph


The wall on which the prophets wroteIs cracking at the seamsUpon the instruments of deathThe sunlight brightly gleams
When every man is torn apartWith nightmares and with dreamsWill no one lay the laurel wreathWhen silence drowns the screams
Confusion will be my epitaphAs I crawl a cracked and broken pathIf we make it we can all sit back and laughBut I fear tomorrow I'll be cryingYes, I fear tomorrow I'll be cryingYes, I fear tomorrow I'll be crying
Between the iron gates of fateThe seeds of time were sownAnd watered by the deeds of thoseWho know and who are known
Knowledge is a deadly friendIf no one sets the rulesThe fate of all mankind I seeIs in the hands of fools
The wall on which the prophets wroteIs cracking at the seamsUpon the instruments of deathThe sunlight brightly gleams
When every man is torn apartWith nightmares and with dreamsWill no one lay the laurel wreathWhen silence drowns the screams?
Confusion will be my epitaphAs I crawl a cracked and broken pathIf we make it we can all sit back and laughBut I fear tomorrow I'll be cryingYes, I fear tomorrow I'll be cryingYes, I fear tomorrow I'll be crying
CryingCryingYes, I fear tomorrow I'll be cryingYes, I fear tomorrow I'll be cryingYes, I fear tomorrow I'll be cryingCrying

''a pintura de estados de alma''

''Os Jogos da Fome''

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Claude Cahun // I am in training, don't kiss me, 1927


 

Exílio


Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades

Sophia de Mello Breyner Andresen

Explicação do País de Abril

 aís de Abril é o sítio do poema.

Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.

Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.

Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.

País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.

País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.

Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.

País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.

Mais aprende que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.

                                                                                 Manuel Alegre

"Todos temos um lugar onde a vida se acerta." - José Luís Peixoto (in "Galveias")


 

Abril de sim, Abril de Não

 Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.
Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.
Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
 
Manuel Alegre

Abril


Havia uma lua de prata e sangue
em cada mão.

Era Abril.

Havia um vento
que empurrava o nosso olhar
e um momento de água clara a escorrer
pelo rosto das mães cansadas.

Era Abril
que descia aos tropeções
pelas ladeiras da cidade.

Abril
tingindo de perfume os hospitais
e colando um verso branco em cada farda.

Era Abril
o mês imprescindível que trazia
um sonho de bagos de romã
e o ar
a saber a framboesas.

Abril
um mês de flores concretas
colocadas na espoleta do desejo
flores pesadas de seiva e cânticos azuis
um mês de flores
um mês.

Havia barcos a voltar
de parte nenhuma
em Abril
e homens que escavavam a terra
em busca da vertical.

Ardiam as palavras
Nesse mês
e foram vistos
dicionários a voar
e mulheres que se despiam abraçando
a pele das oliveiras.

Era Abril que veio e que partiu.

Abril
a deixar sementes prateadas
germinando longamente
no olhar dos meninos por haver.


José Fanha, Lisboa, Portugal
(Do livro "Tempo azul")

 Poema: A Cor da Liberdade


 
 
               Não hei-de morrer sem saber
               qual a cor da liberdade.
 
               Eu não posso senão ser
               desta terra em que nasci.
               Embora ao mundo pertença
               e sempre a verdade vença,
               qual será ser livre aqui,
               não hei-de morrer sem saber.
 
               Trocaram tudo em maldade,
               é quase um crime viver.
               Mas, embora encondam tudo
               e me queiram cego e mudo,
               não hei-de morrer sem saber
               qual a cor da liberdade.
 
Jorge de Sena    
(1919-1978)  

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

lirial

Double Portrait with Hat, 1936–37


 

 Reconhece-se sem ascendência,

sem descendência
e sem paciência para estes dias,
para esta televisão, para este jornalismo,
para esta classe média da democracia,
para este subsídio de Natal,
para esta indevida abundância,
para esta tanta ignorância.

Enfim, problemas de primeiro mundo,
e lembra-se do senhor Feynman
a explicar teoria quântica às prostitutas de Las Vegas.

Não sabe de física quântica,
sabe de corpos e de corações,
de axiomas, de princípios e de intenções,
sabe que até os monarcas obedecem ao corpo.

E pensa em faias, teixos e choupos
e que a verticalidade não é uma qualidade da carne.

Agora que a elasticidade das palavras
ultrapassa todas as figuras de estilo,
se lessem Tolstói e Dostoiévski,
seriam menos filisteus,
seriam menos embusteiros.

Mas gabam-se de fazer negócios da China,
sem conhecer Pequim,
saber uma palavra de mandarim,
saber quem foi Mao Tsé-Tung,
ter visto um dragão,
corpo de tigre, barbas de bode,
barbatanas de carpa e barriga de cobra,
diz a lenda que capaz de cuspir fogo,
convocar o vento, invocar a chuva e voar,
um dragão pode ficar tão grande quanto o céu
ou tão pequeno quanto a cabeça de um alfinete.

Se não tinhas, não vendias!
Pelo que não finjam que não sabem do que está a falar,
pois os ludibriados, como os amantes pretéritos,
guardam as mesmas más memórias.

Poema de Raquel Serejo Martins 

 Alla Venezia trionfante


Passava os dias no café mais antigo do mundo,
sucessor de Goethe, de Casanova, de Proust,
no Verão ainda era menino para pedir um sorvete.

Passava os dias a ver passar pedreiros e outros artistas,
as floristas abriam pontualmente as lojas,
o barulho das portas, das persianas,
das janelas, das varandas, dos sinos,
os bandos de pombos na praça,
às vezes gaivotas,
a melodia dos cheiros, das águas,
e comovia-se com esta azáfama diária.

Porém a falência das floristas,
a decadência da cortesia,
a vulgaridade da violência
e a invulgaridade da ternura,
sabe como o sexo é fácil e o amor difícil,
e talvez essa seja a razão mor da sua tristura.

Flaubert dizia que a tristeza é um vício,
sabe o que é um vício,
como ao Campos, “a vida sabe-lhe a tabaco louro,
nunca fez mais do que fumar a vida”,
sabe que só os poetas levam o mundo a sério
e só lamenta as palavras de amor que nunca disse.

Passava os dias no café mais antigo do mundo,
viu crescer o trânsito de gôndolas e vaporettos
até que os turistas começaram a fotografar sem tréguas,
viu até que deixou de se confundir com a cidade.

Agora lagarto ao sol apesar das novas nuvens,
consta que se retirou para um T1 em Balmoral,
já ninguém sabe a sua idade,
ouvem-se rumores sobre a sua sanidade
e raramente é visto fora dos limites da sua propriedade.

Raquel Serejo Martins

''modos vienenses''

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Corvo-marinho


Marianna Rothen

 

''mar sagrado''

 «Hoje temos muito que dizer, muito que comunicar, porque somos alguém. Perdemos o hábito quer do silêncio, que de nos calarmos. »

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 112

 Rosa - ó pura contradição ! -
prazer de não ser sono de ninguém
sob tantas pálpebras.

Noite feita de rosas. Noite feita de muitas, muitas
rosas claras, noite luminosa feita de rosas,
sono de mil rosas, sou o teu adormecido.
Iluminado adormecido dos teus perfumes; profundo
adormecido das tuas frias intimidades.

(...)

Rilke

roseiam

 «As rosas são recatadas. Nisso consiste a sua magnificência. As rosas roseiam. O seu verbo é rosear.»

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 111

 «A hortênsia sargentiana rompe pela primeira vez em botões. Esteve doente durante dois anos. Eu ocupei-me amorosamente dela. E ela corresponde agora ao meu amor.»

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 110


 Fanny Fournier, Galore, de Candy

by Marianna Rothen 

Lírio-de-água

 Exausto da viagem...
em lugar de buscar uma morada...
aí, as glicínias!

Matsuo Bashō

 ''saudações floristas enviadas do meu jardim''

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 106

«As inumeráveis flores da giesta, com o seu brilho amarelo, iluminam a noite e enchem-me de felicidade.»

 Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 107

Lagartas de roseira


 

Romance De Um Dia Na Estrada



Andava já há vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos para a morte
Um dia fraco, outro forte

Quando um barulho de cama
A voltar-se de impaciente
Me fez parar de repente
Era noite e o casarão
Não tinhas lados nem frente
Dentro havia luz e pão
Me fez parar de repente

Ó da casa, abram-me a porta
Fiz as luzes se apagarem
Cheguei-me mais à janela
Vi acender-se uma vela
Passos de mulher andarem
E uma mulher muito bela
Chegou-se mais à janela

Não tenhas medo, eu não trago
Nem ódio nem espingardas
Trago paz numa viola
Quase que não fui à escola
Mas aprendi nas estradas
O amor que te consola
Trago paz numa viola

Meu marido foi pra longe
Tomar conta das herdades
Ela disse "Companheiro"
Eu disse "Vem", ela "Tu primeiro"
"Tu que me falas de estradas"
"E eu só conheço um carreiro"
Ela disse "Companheiro"

A contas com a nossa noite
Afundados num colchão
Entre arcas e um reposteiro
Descobrimos um vulcão
Era o mês de Fevereiro
E o Inverno se fez Verão
Descobrimos um vulcão

E eu que falava de estradas
E só conhecia atalhos
E ela a mostrar-me caminhos
Entre chaminés e orvalhos
Pela manhã, sem agasalhos
Voltei a rumos sozinhos
E ela a mostrar-me caminhos

Andarei mais vinte dias
ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos para a morte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte

inescrutável

 


«O meu candidato favorito, Ahn Cheol-soo, não é capaz de rugir. Mas é capaz de refletir.»

 Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 104

Rosa Japonesa

 ''Rosa, ó pura contradição, prazer.''

Lápide de Rilke


                         Chinatown: Directed by Roman Polanski. With Jack Nicholson, Faye Dunaway

''vermelho purpúreo''

''beleza enfermiça''



 «Da macieira sem folhas pendia ainda uma maçã enrugada.»

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 93

 ''A dor tornou-me permeável e vulnerável.''

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 84

''Hoje o tempo foi totalizado como tempo laboral.''

 Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 82

 



Marianna Rothen



 

 «A deusa Hera, que nasceu debaixo de um agnocasto, copulava uma vez por ano com Zeus. A seguir, quando se banhava no rio Imbraso, a sua virgindade renovava-se.


Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 80

festivamente

flor olhos-negros ou olho-de-vénus

 «Floresce também a rosa azul chamada Novalis. O azul é a cor do romantismo.»

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 79

 « Floresce o hibisco azul. O hibisco é a flor nacional da Coreia.»

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 79

 « No meio, no outono, floresciam cosmos. Do lado direito, havia uma madressilva num grande vaso. Morreu, deixando-me abandonado pelo amor. Então também os relógios pararam. A dor foi muito grande.»

Byung-Chul Han. Louvor da Terra. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D' Água. 2020., p. 79
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