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sábado, 26 de março de 2022

 F.M.I.

Vou, vou-vos mostrar
Mais um pedaço da minha vida
Um pedaço um pouco especial
Trata-se de um texto que foi escrito
Assim, de um só jorro
Numa noite de Fevereiro de 79
E que talvez tenha um ou outro pormenor
Que já não é muito actual
Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura
Sem ter modificado nada
Por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores
Que possam ser já não muito actuais
E que isso não contribua para desviar a vossa atenção
Do que me parece ser o essencial neste texto
Chama-se FMI
Quer dizer, Fundo Monetário Internacional
Não sei porque é que se riem
É uma organização democrática dos países todos
Que se reúnem, como as pessoas
Em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos
E no fim tomar as decisões que interessam a todos
É o internacionalismo monetário
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimor do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução!
FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI
Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!
FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico hara-kiri
FMI Panegírico, pro-lírico daqui
Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si e palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Num encontrão imediato do 3º grau
FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI
Entretém-te filho, entretém-te
Não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer
Mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt'e-quer
Messe gigantesca, vem-te vindo, VIM na cozinha, VIM na casa-de-banho
VIM no Politeama, VIM no Águia D'ouro, VIM em toda a parte, vem-te filho
Vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão
Olha os pombinhos pneumáticos que te arrulham por esses cartazes fora
Olha a Música no Coração da Indira Gandi
Olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d'olho
O respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
Nós somos um povo de respeitinho muito lindo
Saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?
Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde
Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo
O teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos
Como o Astro, não é filho?
O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar
Para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta destabilização filha-da-puta, não é filho?
Pois claro!
Estás aí a olhar para mim
Estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto
Pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus zodíacos:
Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?
Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde de nascente?
A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó
Tu és Sepúlveda, tu és Adamastor, pois claro
Tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho?
Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!
Entretém-te filho, entretém-te!
Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva,
E salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
A one, a two, a one two three
FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI
Come on you son of a bitch!
Come on baby a ver se me comes!
'Camóne' Luís Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas!
E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares
Zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal
Zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro
Zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros
Zás, enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer
E acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano
A estender o braço
Meio Rolão Preto, meio Steve McQueen
Ok boss, tudo ok
Estamos numa porreira meu
Um tripe fenomenal
Proibido voltar atrás
Viva a liberdade, né filho?
Pois, o irreversível, pois claro, o irreversívelzinho
Pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes
Agora todos se chateiam de outra maneira, né filho?
Ora que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo
Cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é?
Preocupações, crises políticas pá?
A culpa é dos partidos pá!
Esta merda dos partidos é que divide a malta pá
Pois pá, é só paleio pá
O pessoal na quer é trabalhar pá!
Razão tem o Jaime Neves pá!
Olha deixaste cair as chaves do carro!
Pois pá!
Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?
É pá, deixa-te disso, não destabilizes pá!
Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata
Uma porra pá, um autentico desastre o 25 de Abril
Esta confusão pá, a malta estava sossegadinha
A bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa
Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carágo
Mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah?
Meia dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá
Isto é tudo a mesma carneirada!
Oh sr. guarda venha cá, á
Venha ver o que isto é, é
O barulho que vai aqui, i
O neto a bater na avó, ó
Deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando
Que ao menos agora pode-se falar
Ou já não se pode?
Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah?
Estás desiludido com as promessas de Abril, né?
As conquistas de Abril!
Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho?
E tu fizeste como o avestruz
Enfiaste a cabeça na areia
Não é nada comigo, não é nada comigo, né?
E os da frente que se lixem
E é por isso que a tua solução é não ver
é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada
Precisas de paz de consciência
Não andas aqui a brincar, né filho?
Precisas de ter razão
Precisas de atirar as culpas para cima de alguém
E atiras as culpas para os da frente
Para os do 25 de Abril
Para os do 28 de Setembro
Para os do 11 de Março
Para os do 25 de Novembro
Para os do... que dia é hoje, ah?
FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI
Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho?
Todos temos culpas no cartório
Foi isso que te ensinaram
Não é verdade?
Esta merda não anda
Porque a malta, pá
A malta não quer que esta merda ande
Tenho dito
A culpa é de todos
A culpa não é de ninguém
Não é isto verdade?
Quer-se dizer
Há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular! Somos todos muita bons no fundo, né?
Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?
Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-faxistas
Estas coisas até já nem querem dizer nada
Ismos para aqui
Ismos para acolá
As palavras é só bolinhas de sabão
Parole parole parole e o Zé é que se lixa
Cá o pintas é sempre o mexilhão
Eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol
Pronto
Viva o Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes!
Fora o arbitro, gatuno! Qual gatuno, qual caralho!
Razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho?
Entretém-te filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs
Que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores
Entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais
Entretém-te filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho
Entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar
Entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes
Entretém-te filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante
Enquanto tu adormeces a não pensar em nada
Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia secreta
Telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!
Podes estar descansado que o Teng Hsiao-ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter
O Brezhnev está a tratar de ti com o João Paulo II
Tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas
A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias
Ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel
Que se some nas areias em plena praia
Ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!
Vão te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, tens tu a ver, tens tu a ver com isso, não é filho?
Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é?
Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer
Votas à esquerda moderada nas sindicais
Votas no centro moderado nas deputais
E votas na direita moderada nas presidenciais!
Que mais querem eles, que lhe ofereças a Europa no natal?!
Era o que faltava!
É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, ora toma
Para safado, safado e meio, né filho?
Nem para a frente nem para trás
E eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né?
Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega
Entretém-te meu anjinho, entretém-te
Que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti
Se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia
Se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso
Se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos
Ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo!
Descansa, não penses em mais nada
Que até neste país de pelintras se acho normal
Haver mãos desempregadas
E se acha inevitável haver terras por cultivar!
Descontrai baby, come on descontrai
Afinfa-lhe o Bruce Lee
Afinfa-lhe a macrobiótica
O biorritmo, o hoscópio
Dois ou três ovniologistas
Um gigante da ilha de Páscoa
E uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas!
Piramiza filho, piramiza
Antes que os chatos fujam todos para o Egipto
Que assim é que tu te fazes um homenzinho
E até já pagas multa se não fores ao recenseamento
Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá!
Dá-lhe no Travolta
Dá-lhe no disco-sound
Dá-lhe no pop-chula
Pop-chula pop-chula
Iehh iehh
J. Pimenta forever!
Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti
Não te chega para o bife?
Antes no talho do que na farmácia
Não te chega para a farmácia?
Antes na farmácia do que no tribunal
Não te chega para o tribunal?
Antes a multa do que a morte
Não te chega para o cangalheiro?
Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir
Cabrões de vindouros, ah?
Sempre a merda do futuro, a merda do futuro
E eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam lá, e eu?
José Mário Branco, 37 anos
Isto é que é uma porra
Anda aqui um gajo cheio de boas intenções
A pregar aos peixinhos
A arriscar o pêlo, e depois?
É só porrada e mal viver é?
O menino é mal criado, o menino é 'pequeno burguês'
O menino pertence a uma classe sem futuro histórico
Eu sou parvo ou quê?
Quero ser feliz porra
Quero ser feliz agora
Que se foda o futuro
Que se foda o progresso
Mais vale só do que mal acompanhado
Vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa
Filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego
Não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho
Não há paciência
Não há paciência
Deixem-me em paz caralho
Saiam daqui
Deixem-me sozinho, só um minuto
Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho
Filhos da puta
Deixem só um bocadinho
Deixem-me só para sempre
Tratem da vossa vida que eu trato da minha
Pronto, já chega
Sossego porra
Silêncio porra
Deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só
Deixem-me morrer descansado
Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado
Eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto
Eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro
E o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa
Deixem-me só porra, rua, larguem-me
Desopila o fígado, arreda, T'arrenego Satanás, filhos da puta
Eu quero morrer sozinho ouviram?
Eu quero morrer
Eu quero que se foda o FMI
Eu quero lá saber do FMI
Eu quero que o FMI se foda
Eu quero lá saber que o FMI me foda a mim
Eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se eu tornar a ir para o hospital, pronto
Bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões
O FMI não existe
O FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma
O FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio
Rua, desandem daqui para fora
A culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa
Oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe
Mãe, eu quero ficar sozinho
Mãe, não quero pensar mais
Mãe, eu quero morrer mãe
Eu quero desnascer
Ir-me embora
Sem sequer ter que me ir embora
Mãe, por favor
Tudo menos a casa em vez de mim
Outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar
E de me encontrar fugindo
De quê mãe?
Diz, são coisas que se me perguntem?
Não pode haver razão para tanto sofrimento
E se inventássemos o mar de volta
E se inventássemos partir, para regressar
A partir e aí nessa viagem
Ressuscitar da morte às arrecuas que me deste
Partida para ganhar
Partida de acordar
Abrir os olhos
Numa ânsia colectiva de tudo fecundar
Terra, mar, mãe
Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto
Lembrar nota a nota o canto das sereias
Lembrar o depois do adeus
E o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal
Lembrar cada lágrima
Cada abraço
Cada morte
Cada traição
Partir aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar
Assim mesmo
Como entrevi um dia
A chorar de alegria
De esperança precoce e intranquila
O azul dos operários da Lisnave a desfilar
Gritando ódio apenas ao vazio
Exército de amor e capacetes
Assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou
Olá camaradas, somos trabalhadores
Eles não conseguiram fazer-nos esquecer
Aqui está a minha arma para vos servir
Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam antiquíssimos rumores
As festas e os suores
Os bombos de Lavacolhos
Assim mesmo senti um dia
A chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila
O bater inexorável dos corações produtores, os tambores
De quem é o carvalhal?
É nosso!
Assim te quero cantar
Mar antigo a que regresso
Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena
Diz lá, valeu a pena a travessia?
Valeu pois
Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe
No fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados
De mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco
Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos
O meu canto e a palavra
O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo
Dos vossos antepassados que ainda não nasceram
A minha arte é estar aqui convosco
E ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez
Sou português, pequeno burguês de origem
Filho de professores primários
Aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes
Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto
Muito mais vivo que morto
Contai com isto de mim para cantar e para o resto
Ser solidário assim, para além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E improvavelmente ser feliz
De como aqui chegar não é misterio contar
O que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará, por certo, esta canção
Ser solidário sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo arredime
Mas sim, o amor dos homens que se exprime
De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu vos daria
No ventre das canções, sabedoria

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

 ''o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma, o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio, rua, desandem daqui para fora, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe...''

José Mário Branco

 ''Sempre a merda do futuro, e eu que me quilhe, pois pá, sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pelo, e depois? É só porrada e mal viver é? O menino é mal criado, o menino é pequeno burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado, vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto.''

José Mário Branco

''A culpa é dos partidos pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta pá, pois pá, é só

paleio pá, o pessoal não quer é trabalhar pá! Razão tem o Jaime Neves pá! (Olha deixaste

cair as chaves do carro!) Pois pá! (Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?) Eh

pá, deixa-te disso, não destabilizes pá! Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata.

Uma porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril, esta confusão pá, a malta estava

sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide pá,

Tarrafais e o carago, mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah? Quantos bufos é

que não havia nesta merda deste país, ah? Quem é que não se calava, quem é que arriscava

coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah? Meia dúzia de líricos, pá, meia

dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá, isto é tudo a mesma

carneirada!''

José Mário Branco 

 “Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pelo, e depois? É só porrada e mal viver é?”

 “Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”.


Branco, José Mário (1996), Ser Soli(d/t)ário, EMI - Valentim de Carvalho.

terça-feira, 28 de abril de 2020

9- Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos

Letra de Sérgio Godinho
Música de José Mário Branco

Ai o meu pobre filho, que rico que é
ai o meu rico filho, que pobre que é
nascidos do mesmo ventre
um vive de joelhos pr'ó outro passar à frente
e esta velha mãe pr'áqui já no sol poente
Um dia há muito tempo, vi-os partir
levando cada um do outro o porvir
seguiram pla estrada fora
um voltou-se pra trás, disse adeus que me vou embora
voltaremos trazendo connosco a vitória
De que vitória falas, disse eu então
da que faz um escravo do teu irmão?
ou duma outra que rebenta
como um rio de fúria no peito feito tormenta
quando não há nada a perder no que se tenta?
Passaram muitos anos sem mais saber
nem por onde paravam, nem se por ter
criado os dois no mesmo chão
eram ainda irmãos, partilhavam ainda o pão
e o silêncio enchia de morte o meu coração
Depois vieram novas que o que vivia
da miséria do outro, se enriquecia
não foi pra isto que andei
dias que foram longos e noites que não contei
a lutar pra ter a justiça como lei
Às vezes rogo pragas de os ver assim
sinto assim uma faca dentro de mim
sei que estou velha e doente
mas para ver o mundo girar dum modo diferente
'inda sei gritar, e arreganhar o dente



Estou quase a ir embora, mas deixo aqui
duas palavras pra um filho que perdi
não quero dar-te conselhos
mas s'é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos
doa a quem doer, faz o que tens a fazer

domingo, 24 de novembro de 2019



A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes
São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas
Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda


Compositores: José Mário Branco
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