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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

XVI

Duas aranhas esperam a mosca
com radiadores ventiladores rosa-chá
passagem ao estado de amora
alguns coupons
e várias teses de combate moderno

A mosca
passa
ou não passa
é um pouco como todas as coisas
estão mas não aparecem
e podem levar anos nisso

Mas duas aranhas esperam a mosca
com serviço de Turismo Dlão
lume aceso
página de sentença judiciária

Ao fundo
o galo enerva-se e quebra a mobília
numa grande convivência francesa
c0'a mosca que foge espavorida no vento

Agora à luz das baratas e dos apetrechos para campo
duas aranhas esperam a aranha
e esta é que não escapa
à ligeira tremura de ter vindo
pois nenhuma aranha escapou jamais às aranhas
nenhuma não sendo mosca fugiu
ao que mandam os deuses




Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.104/5

XIV

hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitéio onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora êste foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt...uma poção de estricnina
deu-lhe a molesa foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio Itálico


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.102

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

movimento

movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu a leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim
que não tem dizer
e é mais movimento?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.63

história de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca a janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.22/3

sábado, 5 de dezembro de 2009

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny in Pena Capital I. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

You Are Welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny in Pena Capital I. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999

terça-feira, 24 de novembro de 2009

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny
in Pena Capital I
Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999

uma certa quantidade

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles

Mário Cesariny
in Pena Capital I
Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Poema

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca.


Mário Cesariny
in Pena Capital
Assírio & Alvim, 1999
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