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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

«A tua simples presença física já me esmagava. Lembro-me, por exemplo, de quando nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro, fraco, esguio; tu, forte, alto, largo. Logo na cabine, já me sentia uma figura lamentável, não apenas perante ti, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras para mim a medida de todas as coisas. E ao sairmos da cabine e enfrentarmos as pessoas, eu pela tua mão, um pequeno esqueleto inseguro e descalço sobre as tábuas, com medo da água, incapaz de imitar os teus movimentos a nadar, que repetias, com as melhor das intenções, mas na verdade para minha profunda humilhação - nessas alturas eu entrava em desespero e todas as minhas piores experiências, em todos os campos, se encontravam em grandiosa convergência. Sentia-me sempre muito melhor quando tu mudavas de roupa em primeiro lugar e eu ficava sozinho na cabine, adiando quanto podia a vergonha de sair, até tu voltares para me arrancares dali. E ficava-te grato por não pareceres dar pela minha aflição, e tinha orgulho do corpo do meu pai. Aliás, estas diferenças entre nós continuam a existir ainda hoje.
    A isto juntava-se ainda a tua supremacia intelectual. Chegaras tão longe à tua própria custa, e por isso tinhas essa confiança sem limites nas tuas opiniões. Em criança não ficava tão fascinado com isso como quando comecei a entrar na adolescência. Tu governavas o mundo a partir da tua poltrona. A tua opinião era a única correcta, todas as outras eram absurdas, exageradas, bizarras, anormais. E a confiança que tinhas em ti era tão grande que nem sequer precisavas de ser coerente, mas nunca deixavas de ter razão. Acontecia até não teres opinião sobre um assunto, e consequentemente consideravas liminarmente falsas todas as opiniões possíveis sobre ele.»





Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p.16/7

«Eu era uma criança assustadiça, e apesar disso também teimosa, como são em geral as crianças.»


Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p.12
«É bem possível que, se eu tivesse crescido à margem da tua influência, acabasse também por não ser uma pessoa que o teu coração aprovasse.»



Franz Kafka. Carta ao Pai. Trad. João Barrento. 1ª edição. Edições Quasi, 2008., p.10

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

(...) necessitamos de livros que sobre nós exerçam uma acção idêntica à de uma desgraça que muito nos tenha afligido, tal como a morte de alguém que amássemos mais do que a nós mesmos, como se fôssemos proscritos, condenados a viver nas florestas, afastados de todos os nossos semelhantes, como um suicídio – um livro deve ser o machado que quebre o mar congelado em nós. É assim que eu penso.


Franz Kafka

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

«Estou desesperado como um rato, torturado por dores de cabeça e insónia; a maneira como passo os meus dias ultrapassa qualquer descrição. »


Franz Kafka

A metamorfose

Entende-se no enredo kafkiano, a metamorfose, não como uma transformação de ordem física ou metáfora de estados do ser, mas, sim, como uma representação de uma situação limite que coloca o corpo social sujeito à desumanização, aniquilamento, um desaparecimento bárbaro, que também no limite, retrata a família numa face trágica e desoladora. 

A necessidade de um quarto.

Nas suas cartas a Felice, Kafka, falava da sua absoluta necessidade do silêncio para o exercício da escrita; o de fechar-se no seu quarto, pela altas horas da madrugada, quando já não se ouvem numa casa habitada por pessoas, os barulhos monótomos e comuns, sendo que, à medida que a noite avança eles diminuem até se apagarem totalmente no silêncio.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

«Durmo, desperto, torno a dormir, torno a despertar, miserável existência.
Quando reflicto sobre isso, é-me preciso confessar que a minha educação foi-me prejudicial em muitas coisas por diversos motivos. Entretanto, não fui educado em qualquer retiro afastado, em qualquer ruína nas montanhas. (...) Essa queixa dirige-se contra uma quantidade de pessoas, a saber: os meus pais, alguns membros de minha família, alguns daqueles que frequentavam a nossa casa, vários escritores, uma determinada cozinheira que, por todo um ano, ia levar-me à escola (...).»


Kafka. Diários, s/data, p. 13
«Ao tacto, o pavilhão da minha orelha parecia fresco, agreste,
 frio e enrugado como uma folha. Escrevo isto com toda
certeza obrigado pelo desespero que me causam o meu corpo
 e o porvir deste corpo. »


Franz Kafka

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

«Que tenho eu em comum com os judeus?
 Mal chego a ter algo em comum comigo mesmo,
e deveria meter-me num canto, em completo silêncio,
contente por poder respirar. »


Franz Kafka
"There is always something unaccounted for."


--Franz Kafka, Conversations with Kafka

DORA'S PAPERS

Dora's cahier, or diary, missing for almost 50 years, was uncovered, along with 15 letters to Marthe Robert, Kafka's French translator, written between 1951-1952, in Paris. Two years later, a second diary was discovered by Klaus Wagenbach, which had laid forgotten in archive in Berlin. These diaries, written in the last year of her life, represent Dora's attempt to "say once what is necessary to say about Kafka. Everything. Without reservation." In January 2000, working with professional archival researchers, Dora's secret 35-page file from the Comintern in the Central Archives of the Communist Party in Moscow was obtained





Page 9 of Dora's cahier, her Kafka diary, begun on her birthday in 1951, when she learned she was dying. © Diamant Family

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Princípios de Novembro de 1910

«Mas esquecer não é a palavra que convém aqui...A memória deste homem não sofreu mais do que a sua força de imaginação. Quanto a remover montanhas, nem a sua memória nem a sua imaginação o podem; este homem, é necessário reconhecê-lo, mantém-se fora do nosso povo, fora da nossa humanidade, não cessa de ser esfomeado, só o instante lhe pertence, o instante ininterrupto de calamidade, instante que não é seguido de nenhuma faísca, de nenhum momento de reconforto; há sempre uma mesma coisa: as suas dores, mas no mundo inteiro nenhuma outra coisa que se possa fazer passar por remédio, não há mais solo do que aquele que podem cobrir as suas mãos (....)»
 
 
 
 
Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 29

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Domingo, 19 de Julho de 1910

«Durmo, acordo, readormeço, reacordo, miserável vida.
Quando penso nisso, é-me necessário confessar que a minha educação me prejudicou muito por várias razões.»


Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 28
«(...) Não ganharias nada em deixar o teu círculo e na verdade o que perderias em permanecer dentro dele? A isto limito-me a responder: também preferia deixar-me moer com pancadas no círculo a ser aquele que bate no exterior, mas onde diabo está o círculo? Houve um tempo em que eu o via no solo como traçado por salpicos de cal, mas presentemente apenas flutua em torno de mim, que digo, nem flutua sequer»

Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27
Por que não habito eu dentro de mim mesmo?

Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27

terça-feira, 8 de junho de 2010

Fragmentos

O que eu toco desfaz-se.



Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 121

O abutre

Era um abutre, e dava-me bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias, e agora dava-me já bicadas nos pés propriamente ditos. Picava e voltava a picar, depois voava várias vezes, inquieto, à minha volta, e continuava o seu trabalho. Passou por ali um senhor, ficou um momento parado a olhar, e depois perguntou-me por que razão eu me não defendia do abutre. «Mas, eu não me posso defender», disse eu. « Ele chegou e começou a dar bicadas, é claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um bicho destes tem muita força; e depois já me queria saltar para a cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora já estão quase desfeitos». «Não percebo porque se deixa torturar assim», disse o homem, «basta um tiro para acabar com o abutre». «Ah, é?», perguntei eu. «E o senhor não podia tratar disso?» «Com muito gosto», disse ele. «Só preciso de ir a casa buscar a espingarda. É capaz de esperar uma meia hora?» «Não sei», disse eu, e fiquei por um instante hirto de dor. E depois pedi: «Mas tente de qualquer modo, por favor». «Está bem», disse o senhor, «vou o mais depressa que puder». O abutre tinha ficado calmamente a ouvir a conversa, olhando, ora para mim, ora para o senhor. Agora apercebi-me de que ele tinha compreendido tudo. Levantou voo, inclinou-se muito para trás para tomar balanço suficiente e depois, como um lançador de dardo, enfiou o bico pela minha boca e por mim adentro. Caído de costas, senti, agora liberto, como ele irremediavelmente se afogava no meu sangue, que enchia todas as profundezas e alagava todas as margens.



Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 104

Prometeu

A lenda procura explicar o inexplicável;
como vem de um fundo de verdade, tem de
acabar por regressar ao inexplicável.

Há quatro lendas sobre Prometeu. A primeira conta que, por ter traído os deuses junto dos homens, foi agrilhoado ao Cáucaso e os deuses enviaram águias que lhe iam comendo o fígado, que renascia sempre de novo.
A segunda conta que Prometeu, devido às dores provocadas pelos golpes dos bicos, se foi metendo cada vez mais pelo rochedo adentro, até se fundir com ele.
A terceira diz que, ao longo dos milénios, a sua traição foi esquecida, que os deuses esqueceram, as águias também, e até ele próprio.
A quarta conta que todos se cansaram daquilo que se tornara sem fundo. Cansaram-se os deuses, cansaram-se as águias. A ferida fechou de cansaço.
Restou o inexplicável monte rochoso.




Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 89

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Decisões

«Devemos ser capazes de superar facilmente um estado lastimável, ainda que com uma energia forçada. [...]
Por isso, o melhor conselho é aceitar tudo, comportarmo-nos como uma massa pesada e, ainda que nos sintamos impelidos por um vendaval, não ceder à tentação de dar um único passo desnecessário, olhar para os outros com olhos de bicho, não sentir o menor arrependimento, esmagar com as próprias mãos aquilo que ainda resta da vida como um fantasma, ou seja, aumentar ainda o último silêncio, próprio do túmulo, e não aceitar mais nada a não ser ele.
Um gesto característico de um estado de espírito como este é o de passar com o dedo mínimo pelas sobrancelhas.»


Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 39/40
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