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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

carta de emile

a minha cidade tinha um rio
donde sobre hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos

as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória

mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir
- porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver

nem pão nem balas
nem esperança - e cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos

tudo se decompõe
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna


Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 48/79

aqueronte

ensanguentou-se a fonte dos sonhos
por isso fecha os olhos e vê
como o desejo acabou - vê a prata suja
envolvendo os amantes
no meio de sedas cintilantes espelhos e fogos
onde o sussurro das horas se perde
na trepadeira fatal da paixão


como um protege o outro - os dois procurando
um sémen limpo e
nenhuma palavra será adiada ou dita como antes


como a terra é um veludo a escorrer da boca
para a boca - triste néctar envenenado
contra os lábios que se despendem da casa
dos afectos
dos amigos
das coisas insignificantes e
da rua que não voltarão a ver

isolados dos outros
pernoitando na dormência ávida dos rios avançam
deitados no fundo da pesada barca - etéreos
entram com vagar na cidade desmoronada
na fissura deste tempo pestífero
que já não lhes pertence



Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 26/7

casa

durante a noite
a casa geme agita-se aquece e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia

esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema

levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa - respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo

olhas-te no espelho
atribuis-te um nome um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas - com o vento
que arrasta contigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos




Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 22/3

recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte


vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal


Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 9

sábado, 26 de junho de 2010

Lunário

«E no centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar. E sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são uma sinalização em direcção à morte – embora seja sempre absurdo morrer.»

Al Berto. Lunário. Assírio & Alvim, 2ª Edição, Lisboa, 1999., p.161
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