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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

LXVIII

-De facto, não é coisa que me interesse muito - disse o gato.
-Fazes mal - disse o rato. - Ainda estou novo, e até este momento tenho sido bem alimentado.
-Eu cá também ando bem alimentado - disse o gato - e isso não faz com que eu sinta vontade de me suicidar. Estás portanto a ver por que é que eu acho essa coisa anormal.
-É porque o não viste a ele - disse o rato.
-O que é que ele fez? - perguntou o gato.
Não tinha grande vontade de sabê-lo. Sentia calor e todos os seus pêlos muito elásticos.
-Está à beira da água - disse o rato -; está à espera, e no momento exacto anda e pára no meio da prancha. Fica a ver uma coisa qualquer.
-Não pode ver grande coisa - disse o gato. - Só se for um nenúfar.
-Sim - disse o rato. -E espera que ele suba para o matar.
-É idiota - disse o gato. - É uma coisa sem interesse.
-Depois de esse momento passar - continuou o rato -, volta para a margem e olha para a fotografia.
-Nunca come? - perguntou o gato.
-Nunca - disse o rato. - Está a ficar muito fraco, e não consigo suportá-lo. Um dia destes ainda vai dar um passo em falso quando passar na prancha.
-E o que tens tu a ver com isso? - perguntou o gato. -Ele, sente-se, por acaso, infeliz?...
-Não se sente infeliz - respondeu o rato -, sofre. É o que eu não consigo suportar. E depois vai acabar por cair na água, por se debruçar de mais.
-Sendo assim - disse o gato -, quero prestar-te o serviço; mas não sei porque digo «sendo assim», uma vez que eu não compreendo nada.
-És formidável - disse o rato.
-Mete a cabeça na minha boca e espera - disse o gato.
-Vai demorar muito tempo? - perguntou o rato.
-O tempo de alguém me pisar o rabo - disse o gato.- Tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo bem estendido, não tenhas medo.
O rato afastou as mandíbulas do gato e meteu a cabeça entre os seus dentes afiados. Logo a seguir retirou-a.
-Diz-me cá - perguntou -, hoje de manhã comeste tubarão?
-Ouve - disse o gato - , se não te agrada podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinho.
Parecia aborrecido.
-Não te zangues - disse o rato.
Fechou os pequenos olhos pretos e pôs a cabeça em posição. Cauteloso, o gato encostou os caninos acerados ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos do rato misturaram-se com os seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-se estender no passeio.
   Aproximavam-se, a cantar, onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio o Apostólico.



Memphis, 8 de Março de 1946
Davenport, 10 de Março de 1946.



Boris Vian. A Espuma dos Dias. Tradução revista, apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Relógio D'Água, 2001, p. 106-208
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