quinta-feira, 6 de agosto de 2015

MORSE

Velha lacerada de trapos
Alpargatas de desprezos
Encardidos abandonos
De cada lado um saco de plástico
Sacos a abarrotar misérias
Como se tivesse dois cães a guardá-la
Castelã do passeio
Nada dissemos senão o olhar
De súbito hoje ela rasga o silêncio:
-Crianças e animais são os mais puros
Nós já não. Não acha?
Abriu a caverna da boca na pergunta
Acenei-lhe adeus como a dizer
Talvez que a amava mas que nada sabia
Mas que nada sabia fazer
Pela lepra do seu mistério
Ela ergueu então o desprezo já desinteressado
Da sua mão ossuda e cinzenta
Soube mais tarde que aqueles dois sacos (com trapos)
Eram todos os seus bens caminhava com eles
Para que não fosse roubada
Tesouro público inquilina solitária do mundo
Lixo sem cotação seu corpo e seus bens
Lixo que incomoda e suja só de olhar
Quem te beijaria? Hoje nem um beijo de leve
Nós já não. Tem razão teu mistério



Matilde Rosa AraújoVoz Nua. Livros Horizonte, Lisboa, 1986., p. 22

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