«Tal como Sísifo(1), a rolar o seu rochedo, amontoam textos e mais textos de leis em assuntos que nada têm a ver com eles. Acumulam glosa sobre glosa, opinião sobre opinião, para dar a impressão da extrema dificuldade que possuem. Estão, de facto, convencidos de que é digno de mérito tudo o que exija esforço e trabalho.
Acrescentemos-lhes os Dialécticos e os Sofistas, raça mais barulhenta do que o bronze de Dodona(2), e dos quais, o menos palrador, conseguiria fazer frente às vinte comadres mais palradoras que se encontrassem. Além de serem linguareiros, são também briguentos, a ponto de se encarniçarem na discussão e puxarem da espada por dá cá aquela palha, perdendo, no calor da contenda, todo o amor à verdade. O Amor-Próprio, apesar de tudo isto, fá-los felizes, pois que três silogismos lhes bastam para os levar a discutir com qualquer pessoa, sobre qualquer assunto. A sua obstinação torna-os invencíveis, mesmo que tivessem de se haver com o próprio Estentor.»
1 - Rei mítico de Corinto, condenado pelos deuses, como castigo da sua crueldade, a rolar, depois da morte, um rochedo enorme até ao alto de uma montanha, donde voltava novamente a cair.
2- Antiga cidade do Epiro, em cujo bosque sagrado, consagrado a Júpiter, os vasos de bronze suspensos nos carvalhos, ao serem batidos pelo vento, tocavam uns nos outros, produzindo um ruído interpretado pelos sacerdotes como um oráculo.
Erasmo. O Elogio da Loucura. Tradução, prefácio e notas de Maria Isabel Gonçalves Tomás. Livros de bolso Europa-América., p. 96