domingo, 16 de janeiro de 2011

Solene saudação a uma fotografia

E de novo de súbito a helena viva aqui numa fotografia
helena que ficou nesse país onde nasci e sempre fico
e fico mesmo mais sempre que ausente
helena tão discreta no recorte dos gestos
na forma de vestir no corte de cabelo
que tenta mas em vão dissimular que é bela
ou o consegue só junto de quem jamais conseguiria vê-la
ao nível exigente onde ela na verdade se situa
helena recortada contra a pedra contra o mar redondo
da baía
onde há não muito ainda e no entanto há tanto
tempo colaborámos por exemplo na exaltação do verão
e afrontámos a morte implícita no tempo
helena vertical dúctil porém em tão frágil figura
helena sorridente e inocente como uma criança
mas no fundo talvez superiormente maliciosa
milagre de mulher deus que talvez procure
por detrás de tantos rostos que se os dias me os trouxeram
me os levaram
única metafísica possível para quem volta em verdade hoje
da vida
com a concha das mãos acumulados do vazio
vindo afinal do fundo das mais várias verdades
mulher coisa mudável num momento como um mar
objecto de beleza só visível no conjunto
irredutível a uns olhos aos cabelos ao nariz
tão frágil flor que a mim há pouco forte apenas vista me
faz frágil
num tempo detergente que nos lava que nos leva quanto
tínhamos gente
helena como que translúcida e não menos transparente
do que se fosse alma esse corpo que ela totalmente é
helena natural portanto provocante
ignorante das praxes do exército
talvez por se encontrar isenta do serviço militar
helena inflecte o braço esquerdo e faz-me a continência
sem nada ó insolência na cabeça
helena que perdi e tanto mais perdi
por ter desde o início consciência de perdê-la
mulher que vi envolta pelas dobras do verão
ficar no mar sob o dossel de tule do céu azul
helena que deixei e quase nunca saudei
quando como uma folha o tempo me a levou
e me a matou à vista numa esquina ou curva
helena já definitivamente ausente quando se me apresentou
helena inacessível tanto mais se mais visível
helena inexpugnável como funda fortaleza
(lutar por encontrar imagem menos gasta em futura versão)
não só por não ter armas e ter só o mínimo de mãos
mas por ser o sorriso a sua única defesa
helena deste verão helena todo o ano
em virtude talvez de um expediente técnico por mim
desconhecido
helena perturbante e mais desconcertante
à força de nem mesmo - ingenuidade minha? - dar
por isso
helena deste outono madrileno só porque a fotografia
lhe permite sair do labirinto desse verão onde a deixei
helena assistemática e imprevisível como coisa viva
que quanto mais conheço desconheço
e nunca mais conheci melhor que quando a conheci
há anos nos distantes trás-os-montes
mais branca mesmo do que a camisola e do que a flor
da árvore (e não me lembrar eu ó diabo ou do nome
ou da forma da flor dissimulada pela cor)
plantada junto à casa onde camilo quando jovem habitou
helena que comove um homem que se isola
mais sozinho na vida que num quarto
ao fundo do comprido corredor de um casarão
onde talvez procure a protecção de muita gente nova
pois até aprendeu com thomas mann há pouco que a
velhice
é afinal a única impureza verdadeira
helena luminosa mais que a própria luz
helena que distante se me impõe
e sobressai do meio das múltiplas coisas
dispersas pelo espaço limitado por quatro paredes
helena talvez nada talvez tudo ou quase tudo
(melhor é não falar de percentagens
depois daquela viva discussão no verão)
helena ergue o braço e mais do que evitar a luz
do sol dessa intensa estação onde sei só agora que me
senti bem
helena em desafio faz-me a continência
E eu ao descobri-la ali perdida na fotografia
entre diapositivos e agendas caixas de comprimidos
botões de punho livros algodão sobre a mesa-de-cabeceira
aó consigo cumprimentá-la atrapalhadamente
com a proverbial solenidade portuguesa
tão rígida mas menos militar - bem o sabes ó salvador
tu que em mafra já és a esperança miliciana do exército
a até dispões de um pronto - do que a continência:
helena passou bem vossa excelência?



Ruy Belo. Transporte No Tempo. Introdução de Fernando Pinto do Amaral. Editorial Presença, 4ª edição, Lisboa, 1997., p. 87-89

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