“Eu fecho os olhos e todo o mundo cai morto; eu levanto minhas pálpebras e tudo nasce de novo. Acho que te inventei (dentro da minha cabeça)”
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Chove Chuva
Conto de Dalton Trevisan
A fumaça da chuva sobe pela chaminé das casas e se espalha sobre a cidade. Um fio de silêncio cai de cada gota. As gatas dengosas se viram de costas para dormir. Chove chuvinha, um lado da palmeira nunca se molha.
A casa das formigas não tem porta, e quando chove, não se afogam? Piam milhares de pardais entre as folhas do chorão. Não existe melhor conchego que um barzinho. Nada como a meia grossa de lã. Apaixonadas ou não, mocinhas espirram na fila do ônibus.
Neste instante há no mínimo três mil pessoas infelizes com o sapato furado. Basta que não chova eu me chamo Felipe, o Belo. Como pisar na lama, garotas da várzea, sem sujar as sapatilhas? Orelhas de piás são puxadas por brincarem na chuva. Os mascates que vendem maçã na rua, em desespero comem as maçãs?
Não estivesse chovendo eu teria sete filhos.
Guardas de trânsito abrem os braços na esquina e apitam: por que choves, Senhor? Chove que chuva, apaga o meu recado de amor no muro.
Mães pensam nos filhos tão longe, uns dedos trêmulos na vidraça: dona mãe, me deixa entrar. Em cada lata vazia repicam os sinos da chuva.
As mãos no bolso não esquentam. Alguns viúvos choram na fila, esse ônibus nunca vem. Ora, gotas de chuva, pensam os vizinhos. Todos querem esse guarda- -chuva esquecido num dia de sol, quando havia sol.
Os rabanetes no canteiro pulam as cabecinhas de fora.
Os armários das velhas casas estalam. Antigos baús são abertos, dia ruim para as traças. Há medo de vampiro na cidade.
Asinhas encharcadas, filhotes de pardais caem das árvores e se afogam nas poças.
As vovozinhas choram de frio na beira do fogão de lenha. Cães arranham a porta, licença para entrar. A sopa de caldo de feijão, epa! te queimou a língua.
Mesmo com chuva, há pares de namorados à sombra das árvores. Nem a chuva tira uma solteirona da janela.
Chapinhando as poças investe uma trinca de gordalhufas – pra cá pra lá, bundalhões hotentotes tremelicantes!
Senhor, tão bom se não chovesse. Ah, não chovesse, eu usaria barbicha. Não tivesse chovido eu casava com a Lia e não a Raquel.
Pra onde fogem os sorveteiros quando chove? Se chove, mais difícil enfrentar o vento sul sem perder o chapéu. Homens chegam em casa esfregam o pé no capacho e sentam para comer, dizendo: chuva desgracida.
Uma rosa no teu jardim abre as mil pálpebras do único olho.
O vento despenteia a cabeleira da chuva sobre os telhados.
Mesmo quando para a chuva, as árvores continuam chovendo.
A chuva lava o rosto dos teus mortos queridos.
Namorada
Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque?
A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.
Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.
Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.
Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Morte.
Em guarda no portão, as mãos suadas, fumando. Ela aparece: um caramanchão florido de glicínia azul. Olhinho esquivo que fixa e foge. O sorriso (uma virgem fatal?) na pequena boca fresca.
Um dentinho ectópico no lado esquerdo, onde a palavra tiau esbarra quando sai. Ah, se ela deixar, passa o resto da vida adorando esse dentinho.
Espera outras vezes, fumando aflito, um cigarro aceso no outro. Ele mesmo um cigarro em chamas. A mocinha não quer lhe dar a mão. Como pode, uma santinha disfarçada na terra? Depois, deu.
Brava, ainda mais linda. Toda rosa, o lenço no pescoço, gatinha na janela depois do banho. A curva altaneira da testa, os cachos loiros arrepiados ao vento.
Ai, não, uma pérola na orelha. A pérola da orelha. Uma divina orelhinha esquerda, sabe o que é?
A voz meio rouca: Adivinhe o que eu tenho na mão? “Bem, pode ser tanta coisa.” Bala de mel, seu bobo. Pra você que não merece.
Já esquecido de timidez e feiura: “Sabe o que eu mais quero? É embalar você no colo.”
Pronto, ofendida, lhe negaceou o rosto.
De mal, até amanhã. Amanhã nosso herói vai cultivar uma barbicha.
Desencontro
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
segunda-feira, 9 de dezembro de 2024
Árias Pequenas. Para Bandolim
domingo, 8 de dezembro de 2024
domingo, 1 de dezembro de 2024
Acquainted with the Night
“Longing is not a mind game and that is why I’ve always trusted it. Longing is raw, longing is real; it makes one listen and be attentive to what’s inside. There is mad honesty in longing. So mad that it feels suitable. It is very suitable for me, I’m telling you — I don’t even want to write it or write about it, I want to be it.”
Com o olho que olha e a respiração,
“You come and see me among flowers and pictures, and think me mysterious, romantic, and all the rest of it. Being yourself very inexperienced and very emotional, you go home and invent a story about me, and now you can't separate me from the person you've imagined me to be. You call that, I suppose, being in love; as a matter of fact it's being in delusion.”
''É tarde demais e minhas pálpebras estão agitadas. Sinto-me muito sensível e sinto que tudo vive. Cada coisa grita o seu ser. Vou fazer um balanço. Individualidade exalta minha caneta. Eu. Eu. Eu. Eu. Sou a mulher mais egoísta do mundo. Não só vivo por e por mim, mas exijo dos outros que dêem elementos que em mim não encontro, elementos que se referem a mim, sempre a mim.''
PEDRO HOMEM DE MELLO
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
terça-feira, 26 de novembro de 2024
segunda-feira, 25 de novembro de 2024
“A IMPOSTURA DA LÍNGUA É PRETENDER QUE SE DIZ O QUE NÃO SE ESTÁ A DIZER”
domingo, 24 de novembro de 2024
'' o voo das garças contra a neve''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 373
«Tinha sujidade à volta dos mamilos.»
Yasunari Kawabata. O Som da Montanha. Tradução de Francisco Agarez. D. Quixote., p. 77
''abluções matinais''
Yasunari Kawabata. O Som da Montanha. Tradução de Francisco Agarez. D. Quixote., p. 72
''desilusão carnal''
Yasunari Kawabata. O Som da Montanha. Tradução de Francisco Agarez. D. Quixote., p. 36
sábado, 23 de novembro de 2024
'' o prado em flor''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 310
''flores ainda sem nome''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 298
''Eu sou contra a segregação, sou contra a marginalização, sou contra o desemprego, sou contra a concentração de renda. Sou contra todas as coisas que não deem possibilidade ao ser humano de se desenvolver normalmente e poder chegar a ser, em estado de pessoa adulta, um ser bom. Em cima disso que está a minha cabeça hoje em dia. Quer dizer, cada dia que passa, mais para perto das pessoas. Tentando auxiliar, sensibilizar. Mostrar que viver vale a pena. Realmente, vale a pena.''
'' desmedidos e vazios''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 282
ADÍLIA LOPES
sou a casa-insecto
a mulher-osga
uma colher transformada em faca
para minúsculos riscos
sou uma constante cosmológica
de acelerar galáxias
um telegrama sinfónico
na ausência de tudo
sou a verdade que prefere não sair
do bairro
A RONDA DOS ELEITOS
para aperfeiçoar os ofícios
Apanham pedras e atiram-nas para longe
em silêncio sempre na mesma direção
Os seus cântaros regam o infortúnio
a semente que caiu à beira do caminho
o som vazio do vento
as poças de água onde, às vezes, um peixe se debate
Para si mesmos repetem:
salvam-se apenas os que recusam tudo
até mesmo a salvação
UM CIGARRO A ARDER
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 246
''O poema devolve o inexprimível.''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 200
'' o que dissemos sem uma palavra''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 198
«Gosto do modo como as andorinhas esperam.»
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 197

















