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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

«O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 163
«Devia estar bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.
- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado.- Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
 - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima-roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe ao que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
  - Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
    Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 157/158
«Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só depois soube que não pensavam isso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia entre os pinheiros do cerro da Media Luna.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 153
      «Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
    Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Em contrapartida...

« Em contrapartida, ela, habituada à liberdade e ao ambiente aberto das feiras, sentia-se abatida na desolação daquela casa imensa, e elanguescia de prostração. Pois Dionizio Pinzón mantinha-a sempre prostrada no canto da sala, onde permanecia noite após noite, presenciando os jogadores, afastada do sol e da luz do dia, pois a partida terminava ao amanhecer e começava ao cair da tarde. Deste modo, escureciam-se-lhe os dias e em vez de respirar ares diferentes, sorvia fumo e vapores alcoólicos.
   Antes de Dionisio Pinzón ter transformado a sua humildade em soberba, ela colocara as suas condições e impusera a sua vontade. Agora, porém, já decaída a sua voz, mortas as suas forças. não lhe restava senão obedecer a uma vontade alheia e esquecer a própria existência.
   - Ouve-me bem, Dionisio - dissera-lhe quando este lhe propusera casamento, - eu estou habituada a que ninguém mande em mim. Por isso escolhi esta vida...e também sou eu quem escolhe os homens que quero e deixo-os quando me dá na gana. Tu és como os outros, nem mais nem menos. Desde já to digo.
    - Está bem, Bernarda, far-se-á aquilo que tu mandares.
    - Isso também não. Aquilo que eu preciso é de um homem. Não da sua protecção, que eu sei proteger-me sozinha; mas, isso sim, que saiba responder por mim e por ele diante de quem for...E que não se espante se eu lhe der má vida.
     Mas na realidade foi ele quem lha deu a ela. Assim que sentiu o poder que o dinheiro lhe dava, o seu carácter  mudou. Subiu de condição e procurou demonstrá-lo em todas as suas relações. E mesmo quando ela lutou por todos os meios que tinha ao seu alcance para não perder a sua liberdade e independência de vida, ao fim e ao cabo não o conseguiu e teve de se submeter. Mas lutou. (...)»
 
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 349

Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer...

«Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer, numa aldeia qualquer, honrando assim a sua promessa de nunca mais se separar dela.
      Ela não queria matrimónio; mas algo no fundo lhe dizia que aquele homem não era como os outros, e movida pela conveniência de se associar a alguém, sobretudo a um fulano como Dionisio Pinzón, cheia de codícia e do qual estava certa que continuaria com ela, a andar de um lado para o outro, enquanto batessem as asas dos seus galos, concordou em casar, pois assim teria, ao menos, em que apoiar a sua solitária vida.
     Aldeias, cidades, ranchos, tudo percorreram. Ela, pelo seu próprio gosto. Ele, movido pela ambição: por um afã ilimitado de acumular riqueza.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 344
«Na primeira tarde, dos três galos jogados, Dionizio Pinzón só ergueu um vivo. Na segunda tarde, deu «capote» nas três lutas. Descansou um dia; para no quarto dia voltar à cercadura, onde ficou claro que os seus animais não serviam nem para galos de galinheiro pois todos ficaram pendurados no gancho onde é costume deixar que os galos mortos destilem a sua última gota de sangue.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 334

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

«- Vivias morto de fome. Eu vou dizer-to. Sei avaliar as pessoas com uma simples vista de olhos. E tu és daqueles, perdoa-me que to diga, daqueles que evitam o trabalho duro...Não, Pinzón, tu és como eu. O trabalho não foi feito para nós, por isso procuramos uma profissão mais ligeirinha. E qual melhor do que esta jogatana, em que esperamos sentados que a sorte nos mantenha?»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 332

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Bernarda Cutiño

«A tal Bernarda Cutiño era uma cantadeira de fama corrida, de muito brio e que os tinha no sítio; tal como cantava era boa para alvoroços, embora não se deixasse manusear por ninguém, pois se alguém o tentava, era rude e de mau trato. Forte, bonita, expansiva e de génio inconstante, sabia, contudo entregar a sua amizade a quem lhe demonstrava ser seu amigo. Tinha uns olhos faiscantes, sempre humedecidos, e a voz rouca. O seu corpo era ágil, duro e quando erguia os braços os seios queriam rebentar o corpete. Usava sempre amplas saias de fino algodão estampado, de cores berrantes e cheias de folhos, que completava com um xaile de seda e flores nas tranças. (...)»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 329/330
« Enquanto aguardava o regresso do «padrinho», Dionisio Pinzón fixou-se nelas, sobretudo naquela que estava à sua frente e que tinha a certeza de conhecer. Foi-se aproximando até se colocar ao pé do estrado e olhou-a a seu gosto, enquanto ela lançava os versos da sua canção:

Ontem à noite sonhei que te amava,
como se ama uma vez na vida
despertei e tudo era mentira,
nem sequer me lembro de ti...

(...)

...Se te quis, não foi porque te quis,
se te amei, foi para passar o tempo,
aqui te mando o teu triste retrato
para nunca me lembrar de ti...»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 317
«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:
- Não há mais remédio senão liquidá-lo.
E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:
- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.
O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.
Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310
« O galo branco revelou-se «franganote». Aceitou lutar ao ser acareado; porém, já solto na linha, perante as primeiras investidas do dourado, encolheu-se para um canto. E ali se ficou, a cabeça agachada e as asas murchas como se estivesse doente. Ainda assim, o galo dourado foi até onde o galo branco estava à procura da luta; as penas do pescoço levantadas e as patas a pisarem, maciças, a cada passo que dava à volta do galo cobarde. O «franganote» encolheu-se ainda mais na vala, reflectindo cobardia e, principalmente, tenções de fugir. Porém, ao ver-se cercado pelo galo de Chihuahua, deu um salto, tentando livrar-se das investidas do dourado e foi cair sobre o espinhaço cor de girassol do seu inimigo. Bateu com as asas com força para manter o equilíbrio e por fim conseguiu, ao querer libertar-se do enlace em que tinha caído, romper com a afiada navalha do seu esporão uma asa do dourado.
O fino galo de Chihuahua, manco, atacou sem misericórdia o «eriçado», que se retirava para o seu canto a cada investida; mas fazia uso do seu meio-voo ao sentir-se cercado. E assim, uma e outra vez, até que, não conseguindo resistir à sangria da sua ferida, o dourado cravou o bico, estendendo-se sobre o piso da cercadura sem que o branco fizesse a menor menção de o atacar.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 309

domingo, 12 de dezembro de 2010

As flores

 
«Há escritores que se servem delas pelo simples prestígio dos seus nomes, sem prestarem muita atenção ao facto de corresponderem, ou não, ao lugar e à estação do ano. De modo que não é raro encontrar bons livros onde florescem gerânios na praia e túlipas na neve. Em Pedro Páramo, onde é impossível estabelecer de uma forma definitiva onde está a linha de demarcação entre os mortos e os vivos, as exactidões são ainda mais quiméricas. Ninguém pode saber, na realidade, quanto duram os anos da morte.»
 
 
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14
«Eu sempre pensei, por pura intuição poética, que quando Pedro Páramo conseguiu por fim levar Susana San Juan para o seu vasto reino da Meia-Lua, ela já era uma mulher de 62 anos. Pedro Páramo devia ser uns cinco anos mais velho do que ela. Na realidade, o drama parecia-me maior, mais terrível e bonito, se se precipitasse pelo precipício de uma paixão senil sem alívio


Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 13
«Tive uma infância muito dura, muito difícil. Uma família que se desintegrou muito facilmente num lugar que foi totalmente destruído. Desde o meu pai e a minha mãe, inclusive todos os irmãos de meu pai foram assassinados. Vivi, portanto, numa zona devastada. Não apenas de devassidão humana, mas devassidão geográfica. Nunca encontrei até à data uma lógica que explique tudo isto. Não se pode atribuir à Revolução. Foi mais uma coisa atávica, uma coisa de destino, uma coisa ilógica. Até hoje ainda não encontrei um ponto de apoio que me mostre porque nesta minha família sucederam nessa forma, e tão sistematicamente, essa série de assassinatos e de crueldades.»

in Los muertos no tienen ni tiempo ni espacio, diálogo com Juan Rulfo
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