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sábado, 20 de novembro de 2010

IV Tortura e indústria

Não, isto não é uma prisão. Deve ser uma oficina. Aqui trabalha-se. Não podes deixar de ver grandes ferramentas, guinchos, plataformas elevatórias e potros. Há guindastes em movimento nestes pavilhões, correntes rangem, giram sarilhos e rodas. Ao fundo arde ainda o fogo, o fumo sobe. Parece mesmo que estamos numa forja. Só os pregos além são difíceis de explicar, e as estacas; e aquelas construções de madeira - não sabemos se são andaimes, se patíbulos.
 
As semelhanças entre os instrumentos de tortura de uma época e os seus
instrumentos técnicos.
Primeiro grau, esmagamento dos polegares em tornos com ranhuras ou pon-
tas rombas: a tortura de Bamberg.
Segundo grau, torniquete violento nos braços, feito com cordões de pêlo, e
torção das pernas: o instrumento de Mecklemburgo.
Terceiro grau, alongamento do corpo no potro ou sobre uma escada de mão,
acompanhado de queimaduras nos flancos, nos braços e nas unhas; a lebre
lardeada.
E assim a tortura se manteve nos tribunais alemães até ao fim do século
XVIII, e mesmo depois.
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93
« Um século que pensa em libertação e imagina prisões.»
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93

C. v. L. (1707 -1778)

 Uma loucura diferente da nossa: a loucura de um clássico.
Claro, seco e lacónico. Naquele tempo era tudo mais pequeno.
Era quase um anão, nervoso, impaciente, rodopiante,
mas o olhar cor de âmbar sob a pesada cabeleira
era penetrante e frio: é preciso rejeitar tudo o que sejam
características acidentais. Coleccionar, definir, classificar.
Todas as parecenças obscuras foram apenas inventadas para
vergonha da ciência. Lâminas terminiológicas para extrair
o imutável da carne e de um mundo cego e trémulo.

Inventários, nomenclaturas, reportórios. A natureza,
um quadrado intemporal, uma quadrícula imóvel.
Gravuras coloridas à mão, árvores genealógicas, tabelas.
Na espuma dos fenómenos, esta linguagem não se mexe.
Uma gramática do mensurável: da espessura de um cabelo,
da fundura de um umbigo, com a forma de uma vulva,
espiralada como a concha de uma orelha. Classificando,
minuciosamente e «com sentido». Trabalhando dia e noite,
para não perder um minuto enquanto permanecesse em Upsala.

Num país pobre, no mais miserável dixhuitième:
juventude pedregosa, sem dinheiro para meias-solas, comendo
do prato alheio, uma cama sempre fria, subterfúgios
para obter títulos e táleres. Finalmente, a fuga para o inóspito.
Lá, onde quase nada mais vive, ele quase revive.

Lapónia, 1745: vi verão e inverno num só dia,
atravessei nuvens, busquei o fim do mundo,
os asilos nocturnos do Sol. No frio, floresce o seu
coração seco. Líquenes rangíferos, tundra, liberdade do Ártico.

Depois, regresso aos cortesãos, aos jardins e gabinetes.
Sonhos infernais, meditações, trevas «cheias de sentido».
Nos olhos âmbar o brilho da loucura. Estático.
Finalmente, professor, médico pessoal da rainha (a mão certa
para curar as doenças do peito), presidente da academia.
Condecorado: Estrela Polar com fita preta. Tudo tarde de mais.
Azedume, desconfiança, noites sombrias em estufas,
depois a apoplexia. Os últimos quatro anos com
paralisia parcial, numa triste fraqueza de corpo e espírito.

Ninguém sabia que ele, que tinha encontrado tantas provas
da providência divina entre as coisas naturais, há muitos anos
vinha coleccionando exemplos semelhantes nos destinos humanos;
e que também os milagres, os pecados, obedecem à taxonomia.
Mania das perseguições, alucinações. Paralelamente à histoire admirable
des plantes, a história natural de doenças e vícios:
Nemesis divina, o noctário, guardado num estojo,
cheio de premonições, augúrios, intuições, leitura para Strindberg.
Teologia empírica. O investigador como espião de Deus.

Tudo tem a sua ordem: fogo posto luxúria infanticídio traição
manha e envenenamento. Melander, professor de teologia,
tece intrigas no consistório, até que, às seis da tarde, a sua cabeça
se volta para as costas. Caí, é levado para casa, nunca mais
verá o dia da cura. Deus é um rectângulo intemporal,
a Sua retaliação uma quadrícula, imóvel: execução, fogo
defenestração cabeça cortada. A senhora Psilanderhjelm, leviana
deita-se com um cortesão em Estocolmo. Apanha uma doença do ventre,
morre em breve. Abrem-na, encontram uma pedra no lugar da criança.

E assim tudo se revela. O pecador apodrece em vida.
Um modo de vida bastante monótono. Os castigos
são coleccionados, definidos e classificados. Minuciosamente e «com sentido»,
como o mecanismo da reprodução: estame seco e pólen,
semente estilete e estigma. Systema sexualis: uma obsessão fatal.
A vida não existe; só existem seres vivos.
Cada vez mais pequeno, o grande ancião medita, imóvel,
sobre uma vingança divina que fosse lógica. «Com sentido».
Sem sentido. «Com sentido». «Nós» não fazemos parte da sua loucura.

A flor que traz o seu nome, linnaea borealis L.,
é insignificante, minúscula, e quase toda branca.


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 73-77

B. de S. (1499 - 1590)

«O vaticínio
Dez anos antes da vinda dos Espanhóis,
o primeiro sinal. Era como uma língua de fogo
no céu, como uma chama, como qualquer coisa faiscando
no crepúsculo. Ardia, largo, e disparava afunilando
para as alturas. Foi visto durante um ano, de noite.
E sempre que se iluminava ouviam-se gritos,
todos gritavam, todos batiam com a palma da mão
na boca, todos tinham medo,
se assustavam, esperavam, ficavam apavorados.


(...)

O monte
É uma coisa alta, pontiaguda; afilada em cima,
no cume, em bico, eleva-se e sobressai;
torna-se cómico, redondo; um monte redondo, baixo;
com muitos rochedos, rochoso; escarpado, fendido, rochoso;
feito de terra; com árvores; pastagens; com ervas; com água;
seco; recortado; com gargantas; com cavernas;
e lá dentro há gargantas, blocos de pedra.
Eu subo, escalo o monte. Vivo
no monte. Nasci no monte. Ninguém
se pode tornar monte. Ninguém se transforma
num monte. Por fim, também o monte se desfaz.

(...)

A caverna
Ali estende-se, ali torna-se longa e funda,
abre-se, estreita. É um lugar apertado,
um lugar de angústia. Ali é intransitável, áspera.
É um lugar terrível, um lugar de morte,
um lugar de trevas. Ali é sombria,
escura. A sua boca está escancarada, fauces abertas.
Fauces, largas, fauces estreitas.
Eu vou ficar na caverna.
Entro. Estou aqui. Estou na caverna.»


 Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p.43/45/47
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