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domingo, 24 de julho de 2016



As deusas tinham todas ficado em casa,
por decência
não mergulharam neste lodo onde
circulam os patos e desmaiam as cicatrizes
das árvores.
Não mergulharam na ferocidade de me
ter aqui sentada
em absoluta explosão de mim
em absoluta e violenta sintonia
dos átomos, dos pardais,
da tua lembrança disparada em flecha.


Falei-lhes de abandono.
Falei-lhes de incontrolável.
Podia espetar o lápis no peito e falar só
com os olhos
porque sou a intenção
sou o acolhimento em útero de todas as
mulheres sentadas frias,
e flores.

Quero o que é absolutamente sujo
porque dói.
Sou mais plena quando desaparecem
as últimas gotas limpas e o sol ataca em
uníssono mundo.
Prefiro o que é absolutamente puro
porque mata
devagarinho incontrolavemente,
como um final suspenso na boca à tardinha,
sem deus nem medo.

Falei-lhes da saudade muda e da
destruição dominical
que sou uma vida inteira em melancolia
de um só pé
em desassossegada observação de patos.

As deusas não vieram e neste jardim não
há alma sentada que não me estremeça um
dente.
Falei-lhes de entrar pelo amor adentro com
a vertigem dos afogados e radiosa loucura.
Falei-lhes dos meus dedos que escrevem o
esconso e da minha cabeça inconcreta.

Disse-lhes:
não contrario a vontade do que está morto
mas a minha imaginação dói-me tanto
na boca que me refaz amantes,
incendei-me poemas.
A minha imaginação vive sozinha, sovada,
entre este laguinho lamacento e os subúrbios
do Alto Minho.

Toda esta minha indecência não me deixa
a condição de ser deusa.
Esta minha galopante indecência é a
maravilha que me curva as costas e
a tranquilidade de estarmos sós,
perdidos na consagração da verdade efémera.

E tudo é outro nome que não este.

Cláudia R. Sampaio, pp. 42-44, Ver no Escuro.
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