quarta-feira, 27 de maio de 2020

Excertos do livro Cravo (1976),“Mulheres e Revolução”:
“O dia nasce, elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café.
Elas picam cebolas e descascam batatas.
Elas migam sêmeas e restos de comida azeda.
Elas chamam ainda escuro, os homens, os animais e as crianças.
Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os currais.
Elas esfregam o chão de joelhos com escova de piaçaba e sabão amarelo.
Elas põem a tranca no palheiro.
Elas enterram o dedo mínimo na galinha a ver se tem ovo.
Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar.
Elas arredam a coberta da cama.
Elas abrem-se para um homem cansado.
Elas vão à parteira que lhes diz que já vai adiantado.
Elas alargam o cós das saias.
Elas choram a vomitar.
Elas talham cueiros.
Elas untam o mamilo gretado com um dedal de manteiga.
Elas raspam as fezes das fraldas com uma colher romba.
Elas lavam os lençóis com urina.
Elas compram o lápis, a lousa e a pasta de cartão.
Elas espremem as tetas da vaca para um balde apertado entre as pernas.
Elas carregam o cesto de azeitonas à cabeça.
Elas sobem para um caixote, que ainda são pequenas para chegar à bancada de descamar o peixe.
Elas acertam em duzentos casacos a postura da manga onde cravar o botão.
Elas fazem todas as camas e despejos de uma família alheia.
Elas batem à máquina palavras que não entendem.
Elas ficam absorvidas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato.
Elas queriam outra coisa.
Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao Sindicato e à Junta.
Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais, agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era antes.
Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa, a dizer-lhes como é.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas sentaram-se à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.
Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.
Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam. (…)

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