sábado, 19 de janeiro de 2019

«Riu-se a dizer que Shakespeare teria adorado ter Trump como personagem. Menos épico, mais trágico e também mais humorístico do que Camões, como acha que Shakespeare olharia para este presente?

Não sei o que ele diria, o que sei é que este tempo, o tempo preciso em que estamos vivendo é um tempo não só shakespeariano, é ultrashakespeariano. A famosa luta de classes que durante mais de um século foi objecto das nossas considerações e preocupações já não é do mesmo tipo da que foi até à queda do muro de Berlim. De repente, há uma desestruturação das diversas potências que pretendem ocupar o lugar da potência única que cada um deseja. Neste momento, coisa que parecia impossível há 40, há 30 anos, aparece no mundo uma perspectiva apocalíptica que aparentemente é da ordem da ficção, qualquer coisa para filmes de Hollywood. Um deslize, um ataque, uma bomba a mais, um foguetão absurdo a cair no sítio errado — tudo pode levar-nos para um começo de qualquer coisa parecida com o apocalipse. Seria pena, porque a Terra não merece este género de sonhos mal sonhados. Shakespeare é um caso. Foi uma segunda reeinvenção num tempo que em princípio já não era o tempo da tragédia. A diferença é que a tragédia nasceu num mundo em que a invenção cristã ainda não tinha acontecido. Shakespeare aparece e surge para descrever tragédias já no interior do mundo condicionado pela visão cristã. Penso que é por isso que a obra dele não só é fantástica do ponto de vista literário, mas como obra de um profeta moderno. Na nossa cultura, na mais popular, aparecem sempre umas figuras com uma aura, espécie de loucura, santa ou profética, antecipando o futuro. São de algum modo Cassandras, mesmo quando são homens. Hoje quaisquer dos grandes autores são profetas, mas são tão banais, porque são tantos, que não têm o papel que as figuras míticas da antiguidade e mais modernas tiveram. Mas penso que cada geração reencontra outra maneira de reescrever o que Homero, Dante, Camões e outros já escreveram. Como Pessoa. Pessoa é um bisneto de Shakespeare. Ele é incompreensível sem as leituras de Shakespeare. Mesmo se não soubéssemos, bastaria consultar o seu volume de Shakespeare. Tudo está sublinhado. A Bíblia dele foi Shakespeare.»

Eduardo Lourenço, entrevista ao Jornal Público

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