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domingo, 11 de abril de 2021

 MUSA

Aqui me
sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me
o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.
Sophia de Mello Breyner Andresen

 PAISAGEM

Passavam pelo ar aves repentinas
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.
Era o céu azul, o campo verde, a terra
escura.
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.
Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.
Eram os pinheiros onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
A sua exaltação afirmativa.
Era a verdade e a força do mar largo
Cuja voz ,quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen | "Poesia", 1944

 QUANDO

"Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta."
In “Dia do Mar” – 5ª edição revista
Editorial Caminho – 2005
Sophia de Mello Breyner Andresen

Eu busco o rastro de alguém


Eu busco o rastro de alguém
Que o mar reflecte e contém.
Calma que eterniza as suas horas,
Ou tumulto que vibra
Nas marés desesperadas e sonoras.
Eu busco o rastro de alguém
Que ao meu encontro vem
No sonho de cada linha.
Alguém
Que no silêncio dos pinhais caminha,
Rio correndo, chama
Em tudo acesa.
Alguém que me devasta e inflama
Me destrói e me inunda de certeza.
Alguém que me devora,
Ou infinitamente longe me implora
Que venha.
Alguém que se desenha
No perfil dos montes
E sobe do fundo da terra com as fontes.
Sophia de Mello Breyner Andresen

 MAR

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.
Sophia de Mello Breyner Andresen

 AS FONTES

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser
Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Sophia, na Primeira Pessoa


Vídeo/Documentário

Sophia, na Primeira Pessoa: Recorrendo ao espólio pessoal da autora, a imagens atuais de locais onde viveu ou que lhe foram queridos e a imagens de arquivo de televisão e cinema


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Trevas


O que foi antigamente manhã limpa
Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja face me é oculta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas”

Nesta hora


Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo

Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
– Sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste

Sophia de Mello Breyner Andresen,
do livro “Coral e outros poemas”

Cidade


Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
do livro “Coral e outros poemas”

Apolo Musageta

Eras o primeiro dia inteiro e puro
Banhando os horizontes de louvor.

Eras o espírito a falar em cada linha
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.

Sonho e presença
De uma vida florindo
Possuída e suspensa.

Eras a medida suprema, o cânon eterno
Erguido puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.



Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas”

O jardim e a noite


Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra dos canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente
Calaram-se os meus sonhos perdidos.


Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entre a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou pesado e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente

 Sophia de Mello Breyner Andresen
, do livro “Coral e outros poemas” 

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Nasceu a 06 Novembro 1919
(Porto)
BARCELONA

Luz e sol e pintura
Sobre o telhado à noite a lua cresce
Abro os olhos como um barco pelas ruas
No entanto outonece


Sophia de Mello Breyner Andresen | "Ilhas", pág. 25 | Texto Editora, 1989
FÚRIAS

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo estraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contratempo

© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa


FURIES

Banished from sin and the sacred
Now they inhabit the humble intimacy
Of daily life. They are
The leaky faucet the late bus
The soup that boils over
The lost pen the vacuum that doesn’t vacuum
The taxi that doesn’t come the mislaid receipt
Shoving pushing waiting
Bureaucratic madness

Without shouting or staring
Without bristly serpent hair
With the meticulous hands of the day-to-day
They undo us

They’re the peculiar wonder of the modern world
Faceless and maskless
Nameless and breathless
The thousand-headed hydras of efficiency gone haywire

They no longer pursue desecrators and parricides
They prefer innocent victims
Who did nothing to provoke them
Thanks to them the day loses its smooth expanses
Its juice of ripe fruits
Its fragrance of flowers
Its high-sea passion
And time is transformed
Into toil and the rush
Against time

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa


 
PORTRAIT OF AN UNKNOWN PRINCESS

For her to have such a slender neck
For her wrists to bend like flower stems
For her eyes to be so clear and direct
Her back so straight
Her head so high
With such a natural glow on her forehead
It took successive generations of slaves
With stooping bodies and patient rough hands
Serving successive generations of princes
Still a bit coarse still a bit crude
Cruel greedy and conniving

It took an enormous squandering of life
For her to be
That lonely exiled aimless perfection
© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa


© Vertaling: 2004, Richard Zenith


DA TRANSPARÊNCIA

Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres


© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa

quarta-feira, 6 de março de 2019

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos.

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Arte de Maki Horanai)

domingo, 6 de janeiro de 2019

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