quarta-feira, 19 de agosto de 2020

 

Publicação: Fundação António Quadros - Cultura e Pensamento http://www.fundacaoantonioquadros.pt/

02 – AMÁLIA RODRIGUES, 100 ANOS DEPOIS (E ANTÓNIO FERRO, 125 ANOS DEPOIS),
por Mafalda Ferro.


Cem anos depois do seu nascimento, e mais de vinte depois da morte, é revoltante continuar a ouvir discussões e teses sobre se Amália Rodrigues era de esquerda ou de direita, se o regime se aproveitou do seu êxito para fazer propaganda ou se ela se serviu do regime para se promover, se foi bem ou mal tratada depois do 25 de Abril, se pertencia à Pide ou se tinha sido injustamente denunciada à PIDE, acusada de pertencer ao partido comunista.


Tudo isto poderia ser importante se Amália tivesse sido uma activista política empenhada mas, sendo ela, sobretudo, uma intérprete, letrista e compositora musical de primeira grandeza, conhecida, amada e estimada por portugueses e estrangeiros, tudo o resto é ruído.

Na realidade, a sua única política foi levar Portugal aos quatro cantos do Mundo.


A particularidade mais cativante do estilo de Amália consiste em introduzir na melodia pequenos melismas que, não obstante a característica fadistal, nos trazem à ideia uma lembrança recôndita do canto cigano andaluz ou do peregrino canto mourisco.

Frederico de Freitas em «O Fado Canção da Cidade de Lisboa» (1973),
referido por António Pinto Machado, Cônsul-geral de Portugal em S. Francisco, na Califórnia,
a 25 de Março de 1978, na sua palestra «O Fado».


Todavia, como vivemos numa era em que quase todos sabem e falam de tudo, em que se especula sobre as atitudes e as intenções de quem mal se conhece, é bom lembrar, para além do seu talento, presença, reportório e amor ao seu país, a generosidade e sensibilidade, o sentido de gratidão e autenticidade da nossa maior fadista, bem como a forma recta e digna como desempenhou a sua extraordinária carreira. 

 

Mas, quando fizerem a minha história e eu já não for viva para dizer como foi, então, é que se vão fartar de inventar. Mesmo falado por mim, muita gente dirá que não é verdade, que os boatos é que são verdade. Uma pessoa é dona de si própria. Mas sei que a minha história vai ser aquela que escolherem, aquela que é a mais interessante, aquela que não é a minha.

Amália Rodrigues, em “Amália. Uma biografia”, p.198,
por Vítor Pavão dos Santos. Contexto, 1987.

O talento inato e espontâneo de Amália foi crescendo sempre mais para orgulho de todo um povo e, na opinião de quem escreve esta modesta contribuição, o que realmente a motivava era trabalhar em liberdade, cantar, agradar ao público, viajar e saber que podia sempre voltar para o seu cantinho, para o requinte e conforto da sua casa de São Bento, para a sua querida Lisboa, para os carapaus fritos e para os manjericos, rodeada pelos amigos que tanto a amaram e de quem mais gostava.

 

– O que pensa, Amália, quando lá fora, diante duma plateia cosmopolita, é alvo de tão grandes e tão espontâneas ovações?

Ela calou-se um momento e respondeu com um ar de profunda sinceridade:

– Penso que nada daquilo é comigo, que eu estou ali, sim, mas que não sou eu, que estou longe, muito longe, e que estou a cantar, a agradecer e a sorrir como se fosse outra pessoa, como se de qualquer modo estivesse a receber aplausos que não me eram destinados.

A sinceridade da sua voz comoveu-me. Aliás, Amália surpreende-me sempre. Um dia, tendo cortado os cabelos, que usava então pelos ombros, não pude esconder a minha pena e exclamei:

– Oh, Amália, os seus cabelos! Que pena!

Ela sorriu e perguntou-me:

– Estou horrível, não estou?

E acrescentou:

– E agora primeiro que cresçam... Sabe como lhes chamo? «Crime e Castigo»!

Fernanda de Castro, em Ao Fim da Memória, 1987.

 

Muito se tem falado sobre a relação profissional de António Ferro com Amália, se o facto de Ferro ter sido o primeiro a convidá-la e a contratá-la para cantar em França e Inglaterra significa que a usou em prol do antigo regime; a verdade, a simples verdade, é que António Ferro a apreciava, admirava o seu talento e lhe deu oportunidades de trabalho dentro e fora de Portugal.

António Ferro era, como se sabe, um extraordinário vedor de talentos – de artesãos, pintores e artistas gráficos, de poetas e escritores, de músicos e cantores – ajudando-os sempre que podia e lhes reconhecia o valor. Com Amália, não foi diferente. Reconheceu-lhe a voz desde menina e, mais tarde, a extensão do seu carisma e o animal de palco que era, a forma  como abrilhantava um espectáculo, um serão, um almoço ou qualquer outra iniciativa particular ou institucional.

Demonstrando essa admiração e apreço, António Ferro entregou-lhe em 1948 o Prémio S.N.I. para a Melhor Actriz do Ano pelo seu desempenho no filme «Fado, História de uma Cantadeira», longa-metragem realizada em 1947 por Perdigão Queiroga. Pela mesma razão, convidou-a a actuar em Lisboa, tanto em sua casa como em festas organizadas em espaços públicos.

Foi também a convite de António Ferro que, em 1949, actuou em Paris pela primeira vez e, posteriormente, em Londres, em festas do Departamento de Turismo e em Lisboa.

 

Primeiro fiz-me Amália Rodrigues em Portugal, depois do público português me ter feito em Portugal, fui a França. Depois, o público de França mandou-me para toda a parte do mundo. Quer dizer, sou uma artista universal mais por causa de França. Hoje há lá muitos portugueses. Quando lá estive pela primeira vez, não tinha ninguém português […]. É que, quando eu fui para Paris, tive a vitória completa porque foi o público francês que eu conquistei.

Amália Rodrigues em entrevista a Adelino Vaz,
publicada na Revista «Macau», n.º 26, Agosto de 1990.

 

Os convites de António Ferro foram muitos; no dia 21 de Novembro de 1951, por exemplo, o casal Ferro organizou a título pessoal, na sua casa de Lisboa, uma recepção de homenagem à cantora e actriz argentina Berta Singerman, convidando Amália a actuar. Estiveram também presentes, entre outros: Margarida Bello Ramos; Cármen Silva Graça; João Salinas Dias Monteiro; António de Meneses; Maria da Graça e Joaquim Paço d’Arcos; João Couto; Natércia Freire; Maria Teresa Silva Passos; Marie e Pierre Hourcade; Viscondes de Carnaxide; Francis Graça; Viscondes da Fonte Boa; Maria Isabel e Orlando Vitorino; J. e Odete Grasset; Sofia de Mello Breyner Andresen; Júlia de Mello Breyner; Maria Amélia Brandão de Carvalho; António Eça de Queiroz.

 

Como é que eles sabiam que eu era contra eles, quando aconteceu o 25 de Abril? Eles não sabem nada! Houve pessoas que tomaram conta dos jornais e de mim não se falava. Tomaram conta da rádio e os meus discos não tocavam. Na televisão eu não podia aparecer. Só o público, é que não conseguiram por contra mim.

Amália Rodrigues, em “Amália. Uma biografia”, p.182,
por Vítor Pavão dos Santos. Contexto, 1987.

 

Em 1949, fui cantar pela primeira vez a Paris e a Londres, levada pelo António Ferro. Sempre gostei do António Ferro, ele sempre me tratou bem, sempre disse que eu era boa artista, achava até que eu era inteligente. Escreveu um artigo no jornal, por volta de 1941, a dizer que estava ali uma rapariga com qualidade artística internacional. Mas o António Ferro não teve nenhuma importância na minha carreira.

Amália Rodrigues, em “Amália. Uma biografia”, p.100,
por Vítor Pavão dos Santos. Contexto, 1987.


Em Fevereiro de 1952, Amália cantou na Legação de Portugal em Berna, também a convite de António Ferro.

Meu querido amigo
Deu-me muita alegria a sua carta!
Irei com muito gosto fazer-lhe uma visita.
A altura do seu amável convite não podia ser melhor pois eu ando um bocado abatida com uma gripe fortíssima que tive e esses ares com certeza me fazem bem.
Já sabe que estou sempre de acordo com o que quiser mas simplesmente para meu governo, peço-lhe que me diga um mínimo com que posso contar.
Cá fico ansiosa por partir ao seu encontro e para lhe agradecer este e outros favores que lhe devo.
Abraça-o com muita ternura sua pequenina amiga Amália.

Carta de Amália Rodrigues para António Ferro, [s.d.],
PT/FAQ/AFC/01/0368/00005.

 

Ainda em Berna, talvez inspirado pela estadia de Amália, António Ferro termina a peça de teatro em três actos «Je ne sais pas danser», que gostaria de ter levado à cena com João Villaret e Amália Rodrigues nos principais papéis:

A personagem principal masculina [João Villaret] chama-se Carlos Pinto e é um crítico dramático bastante severo, conhecido pela sua probidade e selvageria, tímido ou distante nas suas maneiras e no seu convívio […]. A personagem principal feminina [Amália Rodrigues] é uma actriz de comédia acarinhada pelo snobismo nacional que nutre uma paixão por Carlos Pinto.

Em «Escritos e Actividades de António Ferro»,
acervo da Fundação António Quadros, PT/FAQ/AFC/04/00400

 

António Ferro partiu para Roma, sua derradeira morada, sem levar à cena a peça que, escrita em francês, nunca foi traduzida e, lamentavelmente, por ter estado em contacto com água durante um incêndio ocorrido em sua casa anos depois, o manuscrito de 49 páginas, está parcialmente ilegível.

Nos últimos anos, Amália já não passeava por Lisboa nem subia o Chiado como tanto gostara de fazer e poucas pessoas visitava. No entanto, continuou a frequentar a casa de Fernanda de Castro, enquanto pôde, chegando mesmo a oferecer-lhe um gira-discos e discos seus autografados para que, já acamada e com pouca visão, pudesse distrair-se.

 

Estou com febre!
Com febre e com muita pena de não poder estar ao pé de si!
Gosto tanto de si!
O Ary sabe… Ele também é como eu, seu admirador.
Parabéns e muita alegria!
Vou beber uma ginjinha à sua saúde!
Beijinhos grandes da sua
Amália.

Carta de Amália Rodrigues para Fernanda de Castro,
enviada num dia dos seus anos, a 8 de Dezembro, sem referência ao ano,
PT/FAQ/AFC/01/0368/00004.

 

A amizade e admiração entre Amália Rodrigues e o casal Ferro manteve-se igual até ao último dia de vida de António Ferro em Novembro de 1956, e de Fernanda de Castro em Dezembro de 1994.

 


Imagens da esquerda para a direita:

1: Reconhece-se Amália Rodrigues, António Ferro, Guilherme Pereira de Carvalho, Paulina Ferro, António Quadros e Augusto Cunha, [s.d.; s.l.]. Colecção Particular de Mafalda Ferro.

2: Reconhece-se António Ferro Amália Rodrigues, Tomás de Mello e Guilherme Pereira de Carvalho, [s.d.;s.l.]. Acervo Fundação António Quadros, PT-FAQ-AFC-06-002-0012-02754.

3: Reconhece-se João d'Ávila, João Perry, Edith Arvelos, Fernanda de Castro e Amália Rodrigues, durante o 1.º Festival do Algarve (1964) organizado por Fernanda de Castro. Acervo Fundação António Quadros, PT-FAQ-AFC-06-002-0001-02599.

04: Amália, em Fevereiro de 1952, na Legação de Portugal em Berna, a convite de António Ferro. Acervo Fundação António Quadros, PT-FAQ-AFC-06-001-00013.

05: Dedicatória Minha Senhora e minha Amiga – se eu soubesse que corria o risco de estes quasi versos lhe chegarem às mãos, – não os teria escrito. Embora sabendo da sua benevolência, tenho muita vergonha!... Um grande beijinho da sua Amáliaem «Amália gostava de ser quem era», 1980, disco LP, oferecido por Amália a Fernanda de CastroColecção Particular de António Roquette Ferro. Fotografia por Paulo Ribeiro Baptista.

06: Dedicatória Para o António Ferro que é o terceiro António Ferro que conheço. Do primeiro gostei muito e hei-de gostar de todos Eles. Beijinhos da Amália, em «O melhor de Amália, estranha forma de vida», 1985, disco LP oferecido por Amália a António Roquette Ferro. Colecção Particular de António Roquette Ferro. Fotografia por Paulo Ribeiro Baptista.

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