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quarta-feira, 18 de maio de 2011
Heráclito e Filosofia: a vida humana, o destino e a morte
Heráclito também quer apreender o drama concreto da vida humana. São numerosos os testemunhos doxográficos que nos fornecem preciosos esclarecimentos sobre este movimento que conduz do nascimento à morte, e, para além da morte, a novos nascimentos. Ainda que todos estes testemunhos sejam, e devam permanecer sendo, relativamente suspeitos, não deixam de nos esclarecer, ainda que indiretamente. O incansável doxógrafo Aetius escreve: “Heráclito e os Estóicos dizem que os homens começam a atingir sua perfeição por volta dos quatorze anos, época na qual o líquido seminal se põe em movimento”. O gramático romano Censorinus precisa: “Um século é a maior duração da vida humana, que é limitada pelo nascimento e pela morte. Aqueles, por consequência, que reduziram o século a um espaço de trinta anos, cometeram manifestamente um grande erro. É Heráclito que chama este lapso de tempo de ‘geração’, já que ele envolve uma revolução da idade do homem; e ele chama de revolução da idade do homem todo o período durante o qual a natureza humana faz o retorno do semeado à semeadura”. E Plutarco de Querônia: “A duração de uma geração é de trinta anos, segundo Heráclito, espaço de tempo no qual o pai vê seu filho capaz de engendrar”.
Philon de Alexandria confirma: “Em seu trigésimo ano um homem pode se tornar avô. Com efeito, ele chega à puberdade aos quatorze anos, idade em que pode engendrar; e aquele que ele engendrou, vindo ao mundo ao fim de um ano, pode por sua vez, em seu décimo-quinto ano, ter engendrado um ser igual a ele mesmo”.
A criança é um ser incompleto; ela se torna (devém) homem. A verdade do ser humano está em seu desenvolvimento. Quando tem quatorze anos, a criança entra na fase de puberdade e começa desse modo a atingir a perfeição humana; seu líquido seminal está formado. O úmido é sempre o que está ligado ao nascimento, e, como “a alma exala dos úmidos”, o úmido do líquido seminal é o que faz nascer o homem enquanto homem adulto. A partir da puberdade o ser humano pode participar direta e ativamente do movimento do devenir, pois ele é capaz de engendrar. Aquele que foi engendrado pode novamente engendrar no espaço dos trinta anos, que constituem assim os limites extremos de uma “geração”. Duas vezes quinze anos formam uma geração, justamente porque durante este período o ser humano tem o tempo para ser avô; o líquido seminal descreve com seu movimento um círculo e retorna, por assim dizer, a seu ponto de partida, mas em um nível superior: a fivela está afivelada, o caminho para cima “e” o caminho para baixo se unem no círculo.
A duração temporal da vida humana ultrapassa portanto os trinta anos que são apenas uma “geração”. A duração da vida é o período que se estende do nascimento até a morte. Os momentos principais de uma vida humana são então os seguintes: nascimento (começo de uma vida humana), puberdade e capacidade de engendrar e de ter engendrado (quatorze ou quinze anos), revolução da idade do homem, onde aquele que foi engendrado vê por sua vez seu filho capaz de engendrar ( a idade de trinta anos, “geração”, morte (fim da duração da vida humana). As linhas e as cores desse afresco são sóbrias e se restringem ao absolutamente necessário, àquilo que torna possível o correr do rio da vida humana no tempo. No curso desse devenir os contrários se unem; a colocação de uma criança no mundo por um homem já significa o começo da morte desse homem que realizou o estritamente necessário de sua tarefa na tragédia humana. A dialética harmoniosa da vida torna o homem capaz de engendrar um ser que, por sua vez, vai ultrapassá-lo. O tempo total é uma brincadeira de criança. O tempo da vida humana faz o ser humano (dado à luz) passar da infância e da adolescência à idade madura, à velhice (onde o homem retorna à infância) e à morte. Enquanto isso, o homem começa a “morrer” a partir do momento em que seu filho é dado à luz. Este é o jogo do tempo, que brinca com as crianças que são os homens.
O movimento do líquido seminal não é de natureza erótica? Sem qualquer dúvida, o Eros no Cosmos é o que mantem unidas entre si as “partes” do mundo, fazendo com que se religuem a despeito de suas lutas antagônicas. “Também a natureza ama os contrários, e é com eles e não com os semelhantes que ela produz o acordo; é assim, por exemplo, que ela une o macho à fêmea, mas não cada ser a seu igual, e que ela efetua a concordância primeira pela união dos contrários e não dos iguais... As uniões são inteiras e não-inteiras, concórdia e discórdia, acordo e desacordo”, lemos no fragmento 10. O movimento do devenir provém, com efeito, da união dos contrários. A união de dois seres opostos assegura a permanência do devenir humano. Com o eros unificador se compõe a guerra inevitável.
O ser humano, enquanto ser cósmico, nasce portanto de um encontro entre dois seres opostos e perpetua, por sua vez, a espécie; o que o impele são as forças cósmicas “e” o movimento de seu próprio líquido seminal, que, sendo uma das manifestações da água e do úmido, torna-se igualmente fogo ao correr do processo das metamorfoses. Toda a dialética é apenas um encadeamento das engendrações; o movimento do nascimento articula o movimento do devenir. O úmido e o fogo do Universo estão estreitamente ligados e alimentam o úmido e o fogo do organismo humano (indissociavelmente psicossomático). Nesta coesão biocósmica se manifestam as potências eróticas. O úmido é o elemento que caracteriza o nascimento, e o fogo está ligado ao desenvolvimento. Os Estóicos, com sua teoria do logos espermático universal, explicitam, extrapolam e racionalizam o que está implicitamente contido no pensamento heraclitiano; eles estabelecem o movimento de potências transformadoras. “Apesar de seu heraclitianismo, o mundo estóico dá mais a impressão de estabilidade que de fluxo contínuo”, conclui com justeza Émile Brehier em seu livro Chrysippe et l'Ancien Stoïcisme. Qual é o significado da vida humana, deste ponto que conduz do nascimento até a morte, passando pela reprodução? Da vida humana dada pela natureza, passamos à vida que os homens se dão. Quando nascem, querem viver e receber seus mortos, ou então repousar; e abandonam as crianças para que nasçam os mortos (Frag. 20). Entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos (49 A). Lutar contra seu coração é difícil; tudo o que ele quer, ele compra ao preço da alma (85). O ethos do homem é seu demônio (110).
O ciclo da vida humana - nascimento, infância, morte - se realiza inelutavelmente; os tons são sombrios. Exprime Heráclito um pessimismo fundamental? É o nascimento considerado como infelicidade e a morte como liberação? Parte de vida (moira) e parte de morte (moros) serão idênticas? Os temas das infelicidades da vida humana aparecem na poesia e no pensamento helênicos muito antes de Heráclito, e não apenas na sabedoria helênica. O homem é fraco e impotente, diz a Odisséia, passa como as folhas, nos ensina a Ilíada. Hesíodo, em O Trabalho e os Dias, não faz outra coisa que por em relevo as infelicidades humanas. O poeta iâmbico Semônides de Amorgos queixa-se que os homens não têm sabedoria, que vivem como animais, sustentados apenas pela ilusão e pela esperança, ameaçados pelas doenças, pela velhice e pela morte. Solon também se queixa do destino, que não pode ser suplantado pelo conhecimento que possamos ter dele, e declara: “nenhum homem é feliz”. E este ditado da sabedoria arcaica: “não considere nenhum homem feliz até que ele chegue à morte” exprime o mesmo ponto de vista sobre a vida. Os Pitagóricos se esforçam apaixonadamente para purificar a vida da infelicidade do nascimento, e os grandes poetas trágicos exprimem no mais alto grau as terríveis (e grandiosas) contramarchas da existência dos mortais. Heráclito retoma, condensa e pensa todas essas meditações com uma intensidade singular, e ele as exprime sob formas lacônicas e radicais. É isso melancolia e pessimismo? Partindo de idéias esquemáticas preconcebidas e imaginando os poetas e pensadores gregos como “belas almas” que vivem sob os encantos da beleza da vida, não chegaremos a compreender do que se trata. O mito feliz da Hélade feliz ignora quase deliberadamente a Grécia de verdade, a Grécia trágica. É um erro de perspectiva que nos faz embelezar o antigo, sob o jugo da infelicidade atual. Os gregos também cometem o mesmo erro, situando a idade de ouro no passado. Toda a obra de Platão não exprime a nostalgia profunda de um horizonte perdido, nostalgia que alimenta o mito da reminiscência da alma?
Os pensamentos pré-heraclitianos e heraclitianos que enfrentam a ferida enunciam verdades evidentes, reconhecidas como tais pela época. Eles não querem levar o homem a se lamentar, mas a suportar com coragem e a viver sua vida. É uma visão dramática e trágica do mundo e da vida; dramática, porque ela exprime os fundamentos das realizações e ações dos homens, trágica porque visualiza o que é fragmentário sob um prisma universal e aprofunda a fenda e as ruturas inerentes à totalidade. E como a arte trágica e arcaica dos séculos 7 e 6 (a. C.) se “individualiza” a seguir, aprofundando a forma e o fundo do destino individual (que ainda assim permanece fortemente ligado ao universal), da mesma maneira este pensamento pré-sofista só tem olhos para o que se situa na dimensão do universal. Isto é particularmente verdade em Heráclito. Seu pensamento abrange a totalidade da vida humana e aponta seu caminho comum. Ele não chora o curso inevitável da existência humana, não deplora a perda do absoluto, pois a necessidade se realiza inelutavelmente, ainda que com maior ou menor perfeição. Ao invés de se fixar nas misérias da subjetividade sofredora, e sem mesmo levar isso em conta, Heráclito observa, a um só tempo com alegria e tristeza, o grande espetáculo da sucessão de gerações sobre a Terra. Se ele considera a morte como repouso, isto não deve levar a uma interpretação cristã. A morte é apenas uma mudança de situação, e nós já sabemos que “tudo repousa na mudança”. (84a).
Serão as escolas socráticas, e sobretudo os filósofos menores, como Hegésias, conselheiro da morte, que nos trarão uma atitude psicologicamente pessimista e melancólica. A filosofia que aconselha a morte é que partirá do princípio do prazer, desenvolverá sua própria negação e se colocará sob o signo da morte, aconselhando o suicídio como meio de chegar a ela. Hoje em dia damos voluntariamente um caráter nostálgico e romântico ao pessimismo; mas todo romantismo está ausente na época que viu nascer o pensamento de Heráclito. Ele repensa os temas da intuição popular no próprio nível dos grandes problemas que concernem a vida e a morte. A sabedoria das nações (filosofia popular) e a filosofia pretensamente eterna (philosophia perennis) são mais interdependentes do que pensam. Heráclito se coloca a igual distância tanto de uma como de outra. Em consonância discordante com a sabedoria de seu tempo e de seu povo, ele questiona os três grandes temas da vida humana e os traz ao nível de questões. O juízo heraclitiano não pode ser designado como melancólico, romântico ou pessimista; o ritmo de seu pensamento é inteiramente dramático e trágico, de acordo com o Mundo.
A vida conduz irresistivelmente à morte. O arco (biós) leva o nome da vida (bíos), mas causa a morte; o rio da vida conduz o homem à morte. Os contrários se unem. A unidade inata da vida e da morte manifesta esta unidade harmoniosa e discordante dos contrários que lutam entre si no decurso do devenir que é rio e guerra. O arco é uma arma de guerra e mortal, e o jogo de palavras (biós-bíos) também traz a marca da morte. A perspectiva da morte ilumina as sombras da vida. O arco, símbolo da harmonia dos contrários e instrumento guerreiro, não é ele também um símbolo de Apolo, o deus da luz? Entre os 130 fragmentos de Heráclito, quinze se referem diretamente à morte. Ensinando-nos o logos do cosmos, nos reconciliando com a justiça da guerra e nos persuadindo da unidade dos contrários, Heráclito nos mostra como filosofar é aprender a viver e a morrer. O homem deve ficar sereno diante do inevitável e reconhecer o inevitável caminho que, enquanto caminho cíclico, leva constantemente da vida à morte e da morte à vida. O homem deve fixar seus olhos no termo fatal de sua viagem, e o pensador não se ocupa em consolar os homens, mas em desmascarar sua situação, destruir suas ilusões. O rio corre como a vida, e a vida é inesgotável como o rio. Ela é sempre cambiante e nós não podemos reviver (NT - revivre. Acho que Axelos queria dizer vivre, viver) duas vezes o mesmo momento, pois nós também mudamos: ao móvel corresponde o móvel. Nós corremos como um rio e nos dissipamos como uma chama, ao decorrer do tempo que é a unidade do passado, do presente e do futuro. Nós somos e não somos, porque a negatividade, que anima o processo de transformações de tudo aquilo que é, nos leva a nos transformarmos em amanhãs diferentes. O segredo de nosso ser é o futuro.
No decorrer deste futuro que é o tempo, o homem se dá cruelmente conta de que é difícil lutar contra as paixões que, levando-nos na direção da satisfação dos desejos, fazem com que esqueçamos que não somos seres particulares, mas fragmentos da totalidade. Tudo aquilo que queremos é comprado ao preço de uma parcela de nossa alma. A luta, o antagonismo, domina também a existência do homem. A satisfação do desejo, o prazer, leva as almas a se tornarem úmidas, e este prazer úmido é a morte da alma (fr. 77). Por que é então doloroso lutar contra a morte da alma? É tão difícil lutar contra seus desejos porque a violência do desejo (thymos) e a pureza da alma (psyché) estão em relação inversamente proporcional. Se damos livre curso aos nossos desejos o fogo sábio e vivificante da alma se volta contra o animal da umidade mortal. Dar livre curso às paixões do desejo é coisa fácil. A tarefa dolorosa e difícil consiste na luta contra as paixões, porque uma paixão, mesmo vencida, tem repercussões dolorosas sobre nossa alma. Além disso, é penoso lutar contra os prazeres que conduzem a alma na direção da umidade, quer dizer, em direção à morte, porque no fundo é penoso para a alma lutar contra suas próprias tendências mortuais. Nós devemos lutar, talvez, com a morte na alma contra a morte da alma. A proporção thymos e psyché não é algébrica, mas dramática. O homem é este ser situado entre o animal e o deus que tem todas as dores do mundo para edificar um ethos para si, porque as forças que o movem se compensam uma à outra, necessariamente e justamente. A negatividade (origem da negação) está sempre ativa e impede a estagnação do ser vivo. A realização total dos desejos, no limite, é impossível, portanto nefasta; a maior realização possível daquilo que nos ordenam as paixões e os desejos avilta a alma. Portanto é difícil lutar contra seu coração, pois tudo o que ele deseja é comprado ao preço da alma (fr. 85), e ao mesmo tempo é melhor que todos os nossos desejos não se realizem (fr. 110). Tanto a satisfação do desejo como a vitória sobre o desejo afetam profundamente a alma. A integridade da alma é talvez mais bem preservada no infortúnio. A luta contra os desejos particularizadores, quer dizer, o combate claro e não a retirada, se impõe como necessária e dolorosa. O homem, ser que não é unicamente movido por suas próprias forças psicofísicas, pode empreender e manter esta luta, sabendo que é o negativo que nos conduz ao positivo. Repitamos mais uma vez: Heráclito não quer de maneira nenhuma trazer violência à natureza humana em nome da moral ou da espiritualidade; ele apenas se esforça em revelar aos humanos o que é em realidade, em verdade, a natureza humana, em seu devenir.
Assim o homem não deve jamais perder de vista a totalidade de seu problema, e o problema é bastante concretamente o de seu destino. O ethos do homem é seu demônio, nos declara o famoso fragmento 119. O ethos é a natureza profunda do homem e constitui seu ser em devenir, e o demônio é uma potência divina. À representação que vê o destino humano como uma potência exterior, regulando o decurso da vida humana em seus menores detalhes, à concepção da potência total dos deuses e dos demônios e da impotência total do homem e seu demônio, Heráclito opõe sua atitude dramática e responsável diante do futuro. Ele marca o surgimento do homem ocidental que quer agir e reagir em face de seu destino, enquanto o homem oriental parece suportá-lo resignando-se. O pensamento helênico acreditava em princípio que uma Moira, fatal por definição, governa a vida dos homens e a dirige de maneira meio cega; por outro lado, acreditava na onipotência divina, ficando os deuses, alternativamente, dominadores desta Moira e submissos a ela. No pensamento homérico em particular se manifesta uma profunda antinomia: os humanos são como marionetes nas mãos dos deuses, mas cada herói é quase responsável pelo que é; na hora do veredito, à solução imposta pelos deuses, responde, independente, mas sempre correspondente, a resolução assumida pelos heróis. Heráclito dá um passo decisivo ao proclamar: O ser do homem (seu ethos) é um ser divino (seu demônio) (fr. 119). Ao fazer isto ele não considera o homem individual como fundador de seu destino; não torna o destino psicológico, nem mesmo antropológico. O ser do homem (seu ethos) é simplesmente declarado como sendo um ser divino (um demônio). Como o fogo do mundo é seu próprio destino, é o ser divino do homem que constitui o motor interno do devenir humano. Heráclito não diviniza o homem nem humaniza o divino; naturalmente o demônio deixa de ser uma potência exterior, estranha enquanto estrangeira, e se transforma em forma e fundo da vida humana. Assim como a necessidade cósmica e divina do destino forma a estrutura do Universo, o ser divino do homem constitui sua harmonia discordante. Necessidade e liberdade se unem graças à harmonia dos contrários, e a liberdade do homem consiste na aceitação plena de sua natureza demoníaca.
A tragédia exprimirá também esta relação entre o ethos e o démon (NT - acho que Axelos gostaria de ter escrito daimon), entre o ser do homem e o ser divino. No Prometeu de Ésquilo não podemos discriminar onde acaba seu ethos e onde começa seu demônio, porque destinação (humana) e destino (divino) se sobrepõe. Para a Antígona de Sófocles é justamente seu ethos que é seu demônio; aqui está precisamente o verdadeiro drama. Draw (NT - lê-se dráo) significa agir, e agir, em sentido profundo, significa realizar um destino e uma destinação. Só o ethos realizador é dramático, no sentido a um só tempo ativo e trágico do termo. Toda a atitude de Sócrates não consistia no esforço desenvolvido para fazer coincidir o ethos do homem e as prescrições de seu demônio? Heráclito teria visto em uma tragédia o princípio de elaboração de seu pensamento, desta apreensão simultânea de ethos e de demônio, que nos faz ver como o ser do homem concorda com seu destino. Ainda mais, os grandes traços da grande tragédia já se revelam em Heráclito: pensamento heraclitiano e tragédia são "inacabados" e fragmentários, porque querem envolver e compreender a totalidade do destino cósmico e humano; estão à procura da unidade e por toda parte encontram ruptura; seu ritmo é dramático, e toda a atividade humana lhe parece livre e alienada, realizando desse modo o acordo discordante entre a liberdade e a necessidade. Os dois lutam apaixonadamente para introduzir luz nas trevas, ainda que a obscuridade esteja instalada no coração do luminoso.
Heráclito ainda unifica destinação humana e destino, sem todavia reduzir a destinação ao destino. A destinação, totalidade formada pelo conjunto da vida e dos atos do homem, tanto positiva quanto negativamente, é o destino, mas supera toda ação e omissão particulares. O destino não se reduz simplesmente ao destino, do mesmo modo como o ser do homem não se reduz a seu caráter, pela boa razão de que o método heraclitiano não é redutivo, mas procura a harmonia escondida - aquilo que liga o homem, cujo ser é um ser divino, ao Todo, cuja significação é o "mesmo" ser divino.
Hoje tendemos a pensar em função das diversas disciplinas do pensamento e das ciências, e é verdadeiramente difícil para nós agir de outra maneira. Ethos nos faz pensar em ética, até em moral, caráter em caracterologia, psyché em psicologia. Em Heráclito, ao contrário, estas "disciplinas" só existem enquanto disciplinas; o ser não se separa do pensamento, e o que é plenamente não se separa daquilo que deve ser. O pensamento heraclitiano permanece sempre "holístico". O ethos é a totalidade do ser do homem, e o démon indica sua parte divina no devenir do grande Todo. Martin Heidegger apreendeu da seguinte maneira o fragmento 119, transpondo-o para a linguagem que lhe é própria e ligando-o ao testemunho de Aristóteles (De part. anim., A 5, 645 a, 17 - D. A. 9), segundo o qual Heráclito queria declarar aos estrangeiros visitantes que pararam quando o viram se aquecendo diante da lareira: "aqui também estão presentes os deuses". Segundo Heidegger, Ethos significa morada, lugar de habitação. Esta palavra nomeia a região aberta onde habita o homem. A abertura (das Offene) de sua morada deixa aparecer o que avança em direção à essência do homem, e nesta chegada se interrompe nas proximidades. A morada do homem contém e guarda a chegada daquilo ao qual o homem pertence em sua essência. É, segundo a palavra daimon de Heráclito, o deus. Diz a sentença: o homem habita, enquanto homem, nas proximidades de deus." (Carta Sobre o Humanismo).
Todavia, o homem se encaminha para a morte. Antes, enfrenta ainda as doenças. A doença (Heráclito não distingue entre doenças somáticas e psíquicas) é uma ruptura da harmonia que mantém ligados os opostos. A doença é causada pela predominância excessiva de um dos elementos da totalidade que é o organismo psicossomático do homem. ela aparenta-se assim estreitamente ao prazer. Ela rompe a unidade dialética do bem e do mal, fazendo predominar o mal. Mesmo a presunção, que indica uma rutura dos laços que ligam o homem individual ao universal, é chamada de doença por Heráclito; mais ainda, é chamada de doença sagrada (fr. 46), porque afeta diretamente o pensamento do homem, cujo corpo pode continuar sendo saudável. E a medicina não pode impedir a si mesma de praticar simultaneamente o bem e o mal, em sua tentativa de restabelecer o equilíbrio perturbado da saúde (fr. 58). O mal e a doença, o prazer e a presunção, são partes da totalidade que se tornaram autônomas, rompendo deste modo o equilíbrio unitário. Nos tratados hipocráticos, e em particular no De Victu, encontramos claramente os traços desta concepção dialética da saúde e da doença.
O homem morre um dia. É prazer ou morte para as almas tornarem-se úmidas. (É um prazer para elas entrar na vida)... Nós vivemos a morte deles e eles vivem a nossa morte (D. 77). Imortais mortais, mortais imortais; uns vivem a morte de outros, e outros morrem a vida de uns (D. 62). A morte é aquilo que despertos vemos, que adormecidos dormimos. Etc...
Com efeito, é prazer para as almas tornarem-se úmidas, pois a umidade, em oposição à secura da alma sábia, significa embriaguez e predominância da sensualidade; a umidade da alma conduz assim à morte final, o que já sabemos pelo fragmento 36. O úmido é a um só tempo a origem e o fim da vida da alma. A alma nasce do úmido (neste estágio o úmido se encontra estreitamente ligado ao prazer) e finalmente volta ao úmido após sua morte. O começo volta à partida - pois a implica desde o início - o fim. Parece-nos ouvir ainda o eco da voz de Anaximandro: "O ilimitado é a origem do que existe (dos seres); ali onde os seres nascem, ali mesmo se faz sua destruição, como deve ser; pois se fazem justiça e expiam uns pelos outros por suas injustiças, segundo a ordem do tempo"(D. 12 B 1). Como a alma nasce do úmido, seu nascimento está ligado ao prazer. Entretanto, a umidade também engendra a perda da alma. A potência do fogo, ao contrário, procura liberar a alma da empresa corruptora e mortal da umidade, conduzindo-a à posse da verdadeira vida que é, não prazer, mas vida conforme o universal. O impulso do prazer que nos faz nascer do úmido procura a todo custo realizar os desejos de nosso coração, conduzindo-nos assim em direção à morte; este impulso é difícil de ser dominado e nos impede de saber para onde vamos, nos transformando neste homem embriagado que é conduzido por uma criança e não sabe para onde vai porque sua alma está úmida. A verdadeira vida, obedecendo ao fogo, exige a sabedoria: o homem que não se afasta dela vive verdadeiramente sua vida, tendo os olhos fixos no termo fatal de sua viagem.
Como podemos viver portanto a morte de nossa alma, e como vive ela sua própria morte? E como os imortais são mortais e os mortais imortais? O movimento da dialética heraclitiana é constantemente cíclico; o caminho para o alto e para baixo é um só e o mesmo. Nascimento e morte, juventude e velhice, morte e imortalidade são contrários dialeticamente unidos; um conduz eternamente ao outro, e o movimento não cessa jamais. Estudando o pensamento teológico e religioso de Heráclito pudemos ver o elo que une os homens ao divino, porque o ethos do homem não reside em sua idiossincrasia, mas naquilo que o liga à universal divindade. Desta maneira, a morte (como falecimento) se encontra superada; o ser e o não-ser se unem no devenir. Nós vivemos efetivamente a morte de nossa alma, e ela vive nossa própria morte, porque no decurso de nossa existência nós podemos apreender o processo da morte de nossa alma, dando-nos conta de nosa marcha em direção à morte que, em verdade, nos habita por toda nossa vida. A alma, por sua vez, vive nossa própria morte, porque ela possui o dom da superação que a liga ao Todo.
O homem, como todo ser cósmico que se move no interior do Universo, segue os dois caminhos: aquele em direção ao alto, conduzindo da terra à água, da água ao ar e do ar ao fogo, e aquele para baixo, conduzindo do fogo ao ar, do ar à água e da água à terra. O caminho para o alto é o do nascimento da alma, e o caminho para baixo é o da morte. Mas, como o caminho para o alto e para baixo é um e o mesmo (fr. 60), e como na circunferência do círculo o começo e o fim coincidem (fr. 103), o caminho para o alto também é o da morte da alma, e o para baixo o de seu nascimento. O nascimento é a um só tempo ascenção e queda, assim como a morte. A terra, começo e fim do processo cíclico, é o verdadeiro lugar do drama humano. A alma humana participa do fogo; assim, após ter sido água e terra, quer dizer, corpo humano, ela volta a ser fogo. Ela era em princípio o fogo que anima o corpo, e quanto mais seca ficava, mais sábia era.
Os mortais são então imortais, porque ligados ao fogo imortal. Os imortais se "encarnam" nos mortais. Vida e morte, morte e imortalidade, intercambiam-se mutuamente e, sendo contrários, se unem no decurso do movimento incessante. O pano de fundo de todos estes pensamentos heraclitianos é constituído pela mitologia homérica, pelas crenças hesiodianas, pelo simbolismo órfico e pitagórico. O pensador de Éfeso despe estes grandes temas de suas vestes multicoloridas e põe a nu seu sentido último. Naturalmente, o problema de saber em que espaço e em que tempo estes processos dialéticos ocorrem fica sem resposta. Nós apreendemos a direção da especulação heraclitiana num clarão, mas o papel concreto dos protagonistas do grande drama quase sempre nos escapa. Será que Heráclito não deixa as trevas, ou nós é que nos perdemos neste jogo de sombra e luz?
Perseveremos então em nosso esforço para ver claro. A morte possui uma potência suprema. Não podemos chegar a ver a significação da morte senão no estado de vigília. Quando dormimos, em troca, não nos damos conta de nada, só fazemos dormir. A originalidade do fragmento 21 consiste na inversão dos termos da comparação; o que se encontra ligado não é a vida e o estado de vigília, por um lado, a morte e o sono por outro. O sono nada mais é que uma situação intermediária entre a vida e a morte. A vida, se ela se desenrola em estado de vigília, nos coloca em face da morte; ela só é até que venha o grande sono, a morte definitiva. Heráclito quer constantemente clarear as trevas, ao ensinar que a vida não é a morte, e até ela nos mergulha na obscuridade. A vida só faz nos encaminhar em direção à morte; os contrários são unidos, sem estarem identificados por causa disso.
Quando o homem dorme, ele está "morto", ainda que continue vivo. O sono realiza provisoriamente a unidade dos dois contrários. "À noite o homem acende uma luz quando sua visão está apagada", nos é dito no fragmento 26. A luminosidade do fogo se manifesta igualmente na obscuridade da noite. Constitui-se ela então na luminosidade indispensável à visão dos sonhos? Não o sabemos. O que podemos compreender é que o ser adormecido é o ser vivo mais próximo da morte, pois ele dorme e sai provisoriamente da vida. O ser acordado também toca o ser adormecido, porque ele próprio não pode escapar ao sono; nem ao sonambulismo, nem ao sono provisório, nem ao sono definitivo. O homem participa duplamente de sua morte: tanto no sono como na vigília. Vida e morte são "estados" muito próximos um do outro; o sono é o signo de sua analogia e torna-se então uma metáfora que, como toda metáfora, transfere as propriedades de um domínio para outro. Além do mais, o homem toca o ser adormecido quando vive, porque os homens não possuem a visão necessária de seu destino mortal e agem frequentemente como pessoas sonolentas e adormecidas. O sono torna-se desta maneira a situação mais aparentada à morte, afastando-nos dela em aparência, pela via do esquecimento em que nos envolve. Os humanos em seu sono fecham os olhos à vida (e à morte); quando se agitam, fecham os olhos à morte (e à vida). A vida torna-se assim um sonho inconsistente para os homens que não sabem olhá-la no rosto para descobrir nela as linhas de força que conduzem à morte.
O que é jovem, vigilante e vivo, envelhece, adormece e morre (fr. 88). A unidade combativa dos contrários e o processo de suas (deles) transformações ocorrem no tempo, e pelo tempo, que constitui o ritmo necessário do devenir. Para que todas estas etapas do devenir possam se transformar em seu contrário, é preciso que já estejam unidas de antemão; com efeito, elas o estão no seio da totalidade cósmica e elas constituem a via antitética do homem. O tempo nos leva de uma estação a outra; nos faz envelhecer e nos faz morrer. O tempo é a alma da harmonia combativa dos contrários, porque a unidade dos contrários é harmonia, já que a passagem de um estado a outro é ao mesmo tempo movimento e repouso. O sono é apenas um pequeno repouso, o repouso é a morte. Toda mudança é um repouso; "transformando-se ele repousa", havíamos aprendido no fragmento 84. Os homens, não podendo interromper o curso inevitável do devenir, tentam ainda assim escapar à fadiga, recusando a luta e o combate; isto é impossível e ultrapassa a medida de suas possibilidades. Durante toda sua vida eles apenas se transformam, indo de uma posição à outra, pela luta inevitável; eles repousarão quando pararem de viver. O ritmo do destino humano é inelutável, e o tempo é todo-poderoso. O pensamento verdadeiro pode ajudar os homens a viver sua vida sem esquecer sua morte. Ao procurar a estagnação e o repouso imóvel eles se esquivam do curso do Mundo e são mal sucedidos na vida. Estar aterrorizado com a morte não significa coabitar com a morte; continuando a viver pela metade, os homens apenas fecham os olhos antes da hora. Enquanto que aquilo que o pensador ensina deve levar todos que o querem escutar a viver sua vida como homens acordados, ligados ao universal e enfrentando com sabedoria sua morte.
O homem morre definitivamente. O que se torna seu corpo e o que se torna sua alma?
Esperam os homens após sua morte, o que eles não esperavam nem se imaginavam (D. 27). Os cadáveres devem ser mais rejeitados do que estrume (D.96). As almas umedecem no Hades (D.98). Ele fala também de uma ressurreição da carne visível, na qual nascemos, e sabe que Deus é o autor desta ressurreição, falando assim: (lá, diante daquele que é, eles se levantam e) tornam-se guardiães daqueles que vivem acordados e dos defuntos (D. 63).
Heráclito não deixa de avisar que devem sempre saber esperar o inesperado e esperar reencontrar o inesperado (fr. 18). A incredulidade pura e simples denota um espírito obtuso e fechado ao enigma do Mundo. Assim como os homens não pensam em sua vida e em seu termo fatal, também não pensam no que os espera depois de sua morte.
A sorte do corpo morto é rapidamente regrada: é para ser rejeitado. O cadáver não exprime mais o homem; formado de terra e água, só lhe resta reganhar a terra, sobre a qual o homem vivo dá seus passos. A alma também morre? Entendamos, não se trata da alma pessoal e de sua sobrevivência individual. Não há traços de uma doutrina da imortalidade (pessoal) da alma (individual) no pensamento autêntico de Heráclito.A alma que vive, não sendo de modo nenhum subjetiva, como poderia ela, após a morte do homem que ela animava, sobreviver individualmente? A alma é um fragmento do Universo. Aetius escreveu (IV, 7, 2 - D.A. 17): "Heráclito diz que a alma é indestrutível, pois ao deixar o corpo ela retorna à alma do Universo, com a qual é homogênea".
As almas farejam talvez no Hades os aromas do fogo divino e eterno, e, como Hades é o mesmo que Dionisyus (fr. 15), elas continuam a viver para além de sua morte, mas não num além evangélico. Pode ser ainda que as (almas) daqueles mortais que morreram pelo fogo, heroicamente, e sabiamente se tornem imortais; os heróis e os sábios seriam assim os "guardiães" dos vivos e dos mortos. As estrelas mortas também animam o Universo. A vida e a morte, a parte e o Todo, os mortais e os imortais, sendo e não sendo idênticos, continuam assim a constituir as etapas e as esferas do devenir que, se modificando eternamente e se transformando em seu oposto, dão desta maneira um sentido ao movimento.
O fragmento 63, tirado dos escritos de Santo Hipólito, deforma o pensamento heraclitiano cristianizando-o; não há ressurreição da carne nem Julgamento final para o Efesiano, ainda que assim o pense o bispo de Roma. Heráclito permanece pagão e pensa que a alma humana - depois de haver animado o corpo de um homem que vive, tem um destino e morre - junta-se de novo à Totalidade cósmica que nunca deixou de a englobar.
Extraído de AXELOS. Kostas.
Héraclite et la Philosophie
. Seção IV – Capítulo II. Les Éditions de Minuit. França, 1962, 2ª. Edição de 1968. Tradução de Pedro Lourenço Gomes
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