Albano Martins
Como um livro
Folheei o teu corpo como um livro
à procura da tua alma : encontrei-a no índice.
Poema para habitar
A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.
Elegia em forma de epístola
A circunstância de sermos homem e mulher
presos por uma aliança tácita
e secreta
do sangue
é que nos prende à vida, meu amor, e nos salva.
Nascemos sem passaporte,
entre fronteiras guardadas
por sentinelas de sal e de silêncio.
O rio da história corre, estrangulado, entre as pedras,
e o cascalho, e os detritos humanos,
e a alegria suicida das coisas limpas e puras
abandonadas e soltas à vertigem da morte.
Construímos
para nossa defesa
um muro de ironia e de sarcasmo
– imponderável cortina
de humana ternura envergonhada
ou, como tu dizes, perseguida.
O silêncio é a corda
que nos prende aos mastros,
a antena vegetal por onde
a vida se insinua,
universal e atenta.
Marinheiros duma pátria
ancorada no tempo,
bebemos o sal dos minutos que passam
e adormecemos, hirtos, de costas para o mar.
de:Coração de Bússola(1967)
Teus ombros de iodo :
germinação carnívora
de água e fogo.
Espaço disponível
Deito-me no teu corpo
como se fosses
a minha última cama
no meu quarto de hóspede dos dias.
Deito-me e velo
a criança lúcida
que dorme reclinada
na orla marítima do silêncio.
Ali onde o tempo
se anula e renova
na substância palpável
dum gesto ou dum olhar
colhidos sobre a água
construo a minha casa,
habito o espaço inteiro
disponível para a vida,
necessário para a morte.
de:Em Tempo e Memória(1974)
Alegoria Segunda
De poetas e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo :
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe : saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as : tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.
Dizias ontem que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo :
o verão não morreu, esta pedra é o verão.
E tudo permanece. E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.
de:Paralelo Ao Vento(1979)
Microscópio
Oásis na penumbra
do rosto. A solidão
mais próxima
e distante.
de:Sob os Limos(1981-1982)
Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tacto.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
Enquanto o amor,enquanto a morte
Enquanto aguardas e as urnas vazias
recolhem a poeira do verão.
Enquanto,
já submissos, os touros
do sol a soturnos
desígnios entregam
seu furor.
Enquanto,
sob a casa, agora
as térmitas repousam, momentanea
mente reverdecem
meus eucaliptos de água
e ouro.
Enquanto
o amor.
Enquanto
a morte.
Enquanto.
de:Os Remos Escaldantes(1983)
Entras
em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio. Horizontal
o mar, a mor
te. Vertical
o desejo. Dêem-me um arco e recriarei a infância,
os tordos sob a neve,
o rio sob as tábuas.
Dêem-me a chuva e a gávea
duma figueira,
a flor dos eucaliptos,
um agapanto de água.
de:Vertical o Desejo(1985)
Aqui começam todas
as doenças. A do feno
e seus alvéolos furtivos, a da lepra
das palavras traídas, nunca
usadas. E as maleitas
da pele, a insanável
maresia da língua. Concitas para os ritos
da noite a pinça
verde dos lacraus.
De há muito
sabes que não há
para o sono outro vício,
outra rasura para a morte.
de:Os Patamares da Memória(1989)
Quatro Perguntas,seguidas de um epílogo ao escultor José Rodrigues
1. Tens na ponta do lápis uma chave
para abrir o poema.
Por onde é que ela o abre? 2. Se um besouro de asas
translúcidas entrasse
agora no poema
– tu deixavas?
3. Sabes
como se esculpe um poema
fechado a sete chaves?
4. E se uma pomba
roçasse o ângulo
raso do poema
– prendê-la-ias?
Tu que esculpes
com mãos de água o corpo
e a sombra dos dias.
de:Entre a Cicuta e o Mosto(1992)
Folheamos agora dicionários
cada vez mais breves.
De noite,
os teus cabelos emigram
como espigas de incenso. Há gerânios
pisados entre os dedos, dálias
virgens sufocadas
na epiderme.
As palavras
só conhecem o limbo, a rigorosa
película da sede.
de:Uma colina para os lábios(1993)
Nem sempre a neve
cai do céu: às vezes,
explode numa flor. O sonho
da lâmina: ser
ao mesmo tempo a bainha.
de:Com as flores do salgueiro(1995)
As palavras em trânsito
Resvalas neste sopro.
Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado
na fissura dos lábios. Hoje, apenas
algumas gotas de sal.
de:O Mesmo Nome(1996)
Fonte: ver aqui

Sem comentários:
Enviar um comentário