quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

 SEIS POEMAS CONFIADOS À MEMÓRIA DE NORA MITRANI (*), de Alexandre O'Neill (Lisboa, 19 de Dezembro de 1924 — 21 de Agosto de 1986).

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I
Para ti o tempo já não urge,
Amiga.
Agora és morta.
(Suicida?).
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Já Pierrot-vomitando-fogo
(sempre ao serviço dos amantes)
não entra no nosso jogo
como dantes.
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Mas esse obscuro servidor,
que promovemos uma vez
(ainda eu não te dedicara
“aquele” adeus português...),
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corre, lesto, como uma chama,
entre nós dois (o saltarim!)
e desafia-nos prà cama.
Esperas por mim?
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II
Se eu pudesse dizer-te: — senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar no mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém — Vê se adivinhas…
Então um fértil jogo amor seria.
Não este descerrar a mão vazia!
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III
Sê como és : o sol é bom,
o ar vivaz
Do azul aos azuis, do verde aos verdes,
a terra é menina e o tempo rapaz.
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Também tu és menina
(um bichinho rebelde, de tão natural!)
e correr descalça era mesmo o que querias,
mas seria indecente nesta capital...
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E enquanto, doutro verde possuido,
em versos me explico, bem ou mal,
à primavera corres, já descalça,
por uma relva ideal!
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IV
Passam os anos a caretear...
Com ou sem sorte,
não será tempo de viver, de amar,
de resistir à morte?
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Ouve amor-o-eterno e o que ele diz
a quem se dá.
Não esperes pelo tempo : sê feliz
que a felicidade é já!
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E a felicidade é esse rosto eleito
por ti,
é esse palmo de ternura e o jeito
com que sorri.
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E a felicidade é a melancolia
que nesse rosto existe,
quando te quer dizer que só por ele
é bom estar triste...
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Passem, então, os anos a deitar-nos
línguas de fora...
Se morrermos será de nos amarmos
em cada hora !
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Mais um ano de esperança? Não o queiras
se a esperança é adiar,
e vive-o como se fosse a vida inteira
se tiveres de esperar!...
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V
Eu estava bom p'ra morrer
nesse dia.
Não tinha fome nem sede,
nem alarme ou agonia.
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Eu estava tal como está
esse que perdeu a amiga,
o homem que sofreu já
tanto (nem se imagina!)
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que ficou bem atestado
de fadiga
e copiou-se em alegre,
mas de uma torpe alegria,
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que não era mesmo alegre,
mas alegre se fingia
só para enganar o morto
que dentro de si trazia.
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Este é um modo de dizer
em que ninguém acredita,
mas não sei melhor dizer :
era assim que eu me sentia!
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A solidão o que era?
O amor o que seria?
Já ninguém à minha espera,
para nenhures é que eu ia.
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Eu estava bom pr'a morrer
— e ainda hoje morria...
Assim me quisesses dar
e tirar — só tu! — a vida.
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VI
A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?
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Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!
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A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?
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A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!
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— in “Poemas com endereço”, 1962;
— in “Poesias Completas”, introdução e organização de Miguel Tamen, Assírio & Alvim, 2000, p. 172-175.
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(*) — Nora Mitrani (Sofia, Bulgária, 29 de Novembro de 1921 - Paris, 22 de Março de 1961), escritora e socióloga francesa de origem judaica e búlgara, veio a Lisboa dar umas conferências surrealistas em 1950, altura em que conheceu O'Neill e se apaixonaram. Querendo ir ter com ela a Paris, o poeta seria impedido por uma série de circunstâncias que envolveram a própria família e a PIDE. Pode ler o que ele contou sobre o assunto neste texto de ”Uma Coisa em Forma de Assim”: bit.ly/3kbEEyS.
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Quando O’Neill foi finalmente a Paris, Nora Mitrani já tinha morrido em consequência de um cancro, com 39 anos, suspeitando-se de que possa ter-se antecipado ao fim anunciado.
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