domingo, 19 de junho de 2022

A PAIXÃO DE FERNANDO P. (excerto)

[...] Mais tarde, como a pulsão do desejo e do amor lhe voltasse muitas vezes, pensou noutro género de mulheres. Afinal porque não? Encontrou algumas que o atraíram, mas elas ficaram sempre longe, porque nunca foi capaz de saltar o fosso enorme de se aproximar, sequer de lhes dirigir uma palavra fora de propósito. Tivera uma educação puritana, uma educação inglesa num meio provincial e em fins do século XIX, quando o espírito da Rainha Victória ainda dirigia as etiquetas, as maneiras e sobretudo as consciências.

Não se via ao lado de uma rapariga que fosse também uma senhora, capaz de lhe propor fosse o que fosse ou de ter com ela uma dessas conversas de circunstância, recheadas de alusões sociais e de galanteios velados.

E, depois, na Lisboa do tempo, nos primeiros anos do século XX, embora, as raparigas do seu meio fossem flores de estufa em ambientes muito fechados, só se davam com amigos de infância, farejando os pedigrees dos rapazes que delas se aproximasse com uma intuição rápida e certeira.

Ele era ainda o estrangeiro, afinal. O exilado dividido entre a pátria onde fora educado e a pátria da sua origem e do seu presente, dividido afinal, como alguém viria a dizer, entre dois exílios.

Solitário, tendo vivido anos em quartos alugados e ganhando a vida com traduções e trabalhos de circunstância, Fernando não tinha também muitas ocasiões para frequentar ambientes mundanos ou sequer para conviver. Olhava de longe, divisava vultos por detrás de janelas fechadas, encontrava-se com amigos e conhecidos nos cafés, nas casas de pasto, em restaurantes baratos. Era raro que falasse com alguém nas tabernas e bares que visitava com assiduidade. Não era um igualitário. Desgostava-se das atmosferas ordinárias desses lugares, mas não havia outro remédio porque não tinha dinheiro para bebidas caras, para o porto, para o whisky. Havia felizmente também a aguardente, o bagaço e a ginginha. Fernando P. entrava sem olhar para os lados, dirigia-se de imediato ao balcão, não raro fingia-se estrangeiro, um inglês, emborcava de uma vez só o copo, e logo a seguir o outro, pagava e saia sempre sem olhar para os lados, muito direito, muito digno, restando-lhe, e isto até ao fim da vida, a pequena vaidade de saber que o álcool nunca lhe subia à cabeça, pelo menos ao ponto de ser visível e de fazer tristes figuras.

De verdadeiro, de grande na sua vida, só os seus versos, os seus escritos, as suas prosas só esse universo invisível em que era rei e senhor, em que a solidão se lhe transmutava em grandeza e em que todo o vazio da sua existência exterior se lhe sublimava em paixão criadora, em convicção de que ia mudar os homens, o mundo, a sua pátria, restituindo-os à sua nobreza prometida e ao destino transcendente para que tinham sido criados.

Nos seus períodos mais criadores, no arrebatamento e na elevação do seu espírito, ele próprio escrevera um dia, tinha pensamentos que, se conseguisse realizá-los, acrescentariam uma nova luz às estrelas, uma nova beleza ao mundo e um maior amor no coração dos homens.

Mas havia, no teatro da sua alma, uma assintonia fatal entre o vazio e o pleno platónico, o mundo interior da sua imaginação, a sua pulsão de ascese, a convergência das suas ideias numa vontade de levitação, o seu ser para dentro, vazia, angustiosa e egocêntrica a sua existência de órfão de pai, quase de mãe, homem solitário obrigado a reprimir continuamente a sua saudade da infância feliz.

Só o álcool, o fogo de Dionísio, o aliviava temporariamente dessa doença, dessa contradição, dessa aporia que lhe roubava a paz, a tranquilidade, a entrega total a valores mais e mais altos.

Como poderia curar-se deste padecimento permanente? Antes de conhecer Cordélia sentia-se cada vez mais só e mais abandonado Pouco a pouco quebravam-se-lhe todos os laços.

Em breve ficaria sozinho, pensava muitas vezes.

O seu mundo interior era-lhe bálsamo, era-lhe a razão de viver, mas não chegava. Não era capaz de dominar com pulso de ferro o entrechocar das suas emoções angustiadas de solidão, por vezes desesperadas, ao perguntar-se o que fazia nesta existência, que o rejeitava e onde todas as suas acções, versos, pensamentos não passavam de riscos na areia, que ninguém via, todos pisavam sem um relance, que a primeira onda apagaria.

Não aprendera, a não ser falsamente, pela interposta pessoa de uma das suas criações literárias, a do Ricardo, a sentir-se como um heleno, um apolíneo, um estoico.


Ao vê-lo sereno, suave, de semblante imperturbável, com o seu sentido de humor muito britânico, mal sabiam os seus amigos, mesmo os amigos dilectos, o que eram os seus ciclones nocturnos, as suas intermináveis insónias, a pergunta obsessiva que fazia a si próprio: porquê? Porque me castigaram os deuses com esta inteligência, com esta agudeza, com este talento, com esta intuição metafisica, se foi para eu continuar a ser um pobre abandonado, sedento de um amor utópico, que não está ao seu alcance. Porque, ó Sagrado, escrevera num poema inacabado, sobre a minha vida derramaste o teu verbo? Maldito o dia em que pedi a ciência. Mais maldito o que a deu porque me a deste.

E depois, este obsessivo medo da loucura (em si próprio já uma loucura) que o assolava nos seus instantes mais desvairados. O medo da loucura, o temor do suicídio, a fuga pelo álcool eram as três pragas que nunca o deixavam, como aguilhões aplicados nos pontos mais dolorosos da sua psique.

Por vezes chegara a admitir que o amor, um amor como os outros, um amor simples com uma rapariga simples, poderia salvar a humanidade que nele havia também, aproximando os dois continentes cindidos que em seu ser se degladiavam. Dizem que o amor é a união ou a virtualidade da união. É estulto dizê-lo, porque tudo neste mundo fluí, evoluí, esmorece e degenera. Há contudo uma hora para ser sábio e uma hora para ser ingénuo. A ingenuidade é um baixar das defesas críticas, um ver o universo com olhos de criança, um entregarmo-nos à ilusão sem cuidarmos de saber se é ou não ilusão, um deixarmo-nos tomar pelo nosso ser mais profundo e antigo, antes de nós gerado, para dar um sentido às nossas existências.

Há dez anos, Cordélia, a mulher criança que era a própria essência da ingenuidade e que no entanto sabia o que era o amor sensual, podia dá-lo e inspirá-lo num plano outro daquele, vil, que até então conhecera… Há dez, ou fora há nove anos? Entrara na sua vida, modificara-o de alto a baixo, dera-lhe esperança, prometera-lhe uma plenitude num e noutro hemisfério do seu ser.

Fora em 1920, ele já passara os trinta anos, ela não tinha ainda vinte. Aproximaram-se. Tocaram-se fugazmente. Tinham estado muito perto um do outro. Tinham feitos promessas em comum, tinha parecido possível. Ela já não sabia quem ele era, não conhecia e nunca conheceria a natureza infinitamente complexa do seu espírito. Ainda bem, porque só os diferentes podem ser complementares, ele era um arquétipo do intelectual, devotado à vida do espírito, ela era um ser da natureza, de emoções simples e primárias, espontânea como todas as coisas simples e verdadeiras.

[...]


Excerto do ultimo romance de António Quadros escrito no início dos anos 90 em Vale de Óbidos “A Paixão de Fernando P.”, acervo da Fundação António Quadros

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